Ao contrário dos adultos, crianças têm sido menos infectadas pelo novo coronavírus, apresentam sintomas muito mais leves e raramente desenvolvem formas graves da doença. E, apesar de ainda não haver estudo conclusivo a respeito, a explicação para isso pode estar na combinação entre sistema imunológico mais maduro, poucas comorbidades e a proteção natural' dos pequenos.
De acordo com a pediatra, alergista e imunologista Helena Velasco, do Hospital Moinhos de Vento, apesar de as crianças se contaminarem e transmitirem Covid-19, estudos sobre a carga viral desse grupo ainda são inconclusivos e, embora recentemente pesquisa de Harvard tenha apontado a possibilidade de concentrarem carga viral mais alta que a dos adultos, isso não significa maior capacidade de contágio ou de risco de serem infectadas.
Pelo contrário, é provável que crianças se beneficiem do fato de terem a imunidade mais robusta, resultado de uma série de vacinas que tomam ao longo da infância. "Crianças têm um sistema imunológico mais treinado para responder aos vírus, como ao da Covid, e estão mais protegidos por entrarem em contato com outras doenças e estarem mais imunizadas", aponta a médica.
Outra hipótese pode estar relacionada à enzima conversora de angiotensina 2 (ACE2), que facilita a entrada do SARS-CoV-2 (coronavírus) nas células e tem expressão limitada na infância, período em que os pulmões ainda estão em desenvolvimento, o que acabaria por proteger as crianças de formas graves da doença. "Uma das hipóteses das crianças terem menos sintomas seria terem menos receptores ACE2, que facilitam a entrada do vírus nas células", explica Helena.
Em todo o mundo, menos de 10% do casos de Covid foram registrados em pacientes menores de 19 anos. No Rio Grande do Sul, até sexta-feira (28), representavam 8% dos casos totais na faixa etária de 0 a 20 anos, segundo dados do Painel Covid do governo do Estado. "De fato é uma doença na qual o vírus parece não infectar tão bem as crianças como os adultos. As crianças têm uma proteção natural, que é a enzima conversora de angiotensina, e anticorpos para outros vírus. Por isso, quanto menores, menos riscos terão", reforça o infectologista pediátrico da Santa Casa, Fabrizio Motta.
Tradicionalmente, homens têm níveis mais altos de ACE2 em comparação às mulheres, o que também pode explicar a gravidade dos desfechos da Covid-19 em pacientes masculinos, como levanta estudo sobre "As características intrigantes da Covid-19 em crianças e seu impacto da pandemia", publicado no Jornal de Pediatria pelo médico Marco Aurélio Safadi, da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.
A análise também destaca, entretanto, que apesar de assintomáticas ou de apresentarem formas leves da doença - geralmente apenas casos ambulatoriais e tratáveis em consultório-, crianças podem ter alta concentração de carga viral, como destacado na pesquisa de Harvard, o que é visto com parcimônia pelos especialistas, diante da falta de estudos conclusivos a respeito. "Crianças pegam muito menos Covid que adultos e têm casos menos graves do ponto de vista de riscos. Mas o fato é que não se sabe com certeza sua capacidade de transmissão", analisa o pediatra José Paulo Ferreira, representante da Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul (Sprs).
Associada à Covid-19, doença rara que acomete crianças e jovens já tem registros no RS
Muitos pacientes com a síndrome apresentam teste ou anticorpos positivos para o novo coronavírus
TARSO SARRAF/AFP/JC
Ao longo do mês de agosto, como se não bastasse a pandemia, uma síndrome rara e que acomete crianças e adolescentes até 19 anos começou a ser noticiada no Brasil e alertada pelo Ministério da Saúde como provável de estar associada ao novo coronavírus: a síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica (SIM-P). Similar à Doença de Kawasaki - que causa inflamações pelo corpo, principalmente nos vasos coronarianos-, a enfermidade é induzida por outros tipos de vírus, como o Sars-CoV-2, transmissor da Covid-19 , e também responsável por ocasionar vários processos inflamatórios nos organismos afetados.
Os primeiros casos da doença foram noticiados na Europa e na América do Norte entre abril e maio, e associados à infecção pelo novo coronavírus. Em comum, os pacientes apresentavam reação hiperinflamatória, que pode levar ao choque e à insuficiência de múltiplos órgãos. No Brasil, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) publicou em seu site, no dia 7 de agosto, nota de alerta com orientações do Ministério da Saúde para a necessidade de notificação obrigatória dos casos de SIM-P, já registrados em estados como Ceará, Rio de Janeiro, Piauí, Pará e, inclusive, no Rio Grande do Sul.
Segundo o Centro de Operações de Emergência do Estado (COE-RS), foram contabilizados oficialmente três casos de SIM-P. O primeiro, notificado no dia 9 de agosto, foi de uma menina de seis anos, de Novo Hamburgo, internada um dia antes, que testou positivo para Covid-19. Nove dias depois, em 18 de agosto, houve a segunda notificação, uma menina de 2 anos, de Passo Fundo, que aguardava resultado de exame de contágio do novo coronavírus. O terceiro paciente foi identificado um dia depois, em 19 de agosto, menina de 6 anos, de Porto Alegre, que também testou positivo para Covid.
Pela nota técnica do Ministério, as crianças e adolescentes que manifestam sintomas da SIM-P são habitualmente saudáveis, mas podem apresentar alguma doença crônica. Pelo que se sabe, a identificação da síndrome ocorre em períodos que podem variar entre dias e semanas após infecção aguda pelo novo coronavírus, com características clínicas semelhantes às da Kawasaki. A SIM-P se baseia no desenvolvimento de inflamações que têm outras infecções como gatilho, como é o caso da Covid-19. Recentemente, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) descobriram, após analisar o caso de uma menina de 11 anos acometida pela enfermidade, que o Sars-CoV-2 atingiu as células cardíacas da menina, que acabou não resistindo a uma miocardite, inflamação do coração.
Segundo orientação do Ministério da Saúde, crianças e adolescentes podem apresentar rápida progressão para formas graves da SIM-P, com insuficiências respiratória e cardíaca, doença renal aguda, hipotensão arterial e até choque. Desta forma, o tratamento tem se mostrado eficiente e busca diminuir o estado inflamatório e restabelecer o funcionamento adequado de órgãos e sistemas, com a finalidade de diminuir a incidência de sequelas. A pediatra e imunologista Helena Velasco reforça que cada vírus tem sua especificidade, mas que a SIM-P é uma resposta inflamatória possível de acontecer com outros vírus, como o da Covid.
A doença é chamada de multissistêmica por envolver pelo menos dois órgãos e sistemas, como cardíaco, renal, respiratório, hematológico, gastrointestinal, dermatológico ou neurológico. Dentre seus sintomas destacam-se alterações cardiovasculares, renais, respiratórias, hematológicas, gastrointestinais como dores abdominais, vômito e diarreia, alterações oculares e nas mucosas, conjuntivite não purulenta, lesões cutâneas ou inflamações muco-cutâneas (oral, pés e mãos), além de febre alta persistente.
Quando diagnosticada precocemente, no entanto, tem alta possibilidade de diminuição e bloqueio do processo inflamatório, e a maioria das crianças consegue se recuperar bem da doença, mediante tratamento adequado, como alerta o infectologista pediátrico da Santa Casa, Fabrizio Motta. "Quanto mais tardio for o diagnóstico, maiores os riscos de alterações cardíacas. Mas são raros os casos de óbitos", explica.
Segundo ele, a associação à Covid-19 está sendo feita pelo fato de muitos dos pacientes acometidos pela síndrome apresentaram teste ou anticorpos positivos para o novo coronavírus, mesmo que permaneçam assintomáticos, com sintomas leves ou apenas tenham tido contato com pessoas contaminadas. "A doença é rara e os números são baixos em relação à Covid, estima-se que apenas 0,5% das crianças com coronavírus, que já são em número pequeno, desenvolvam a síndrome. A Covid atua como gatilho nesses processos inflamatórios, mas não há risco de transmissão e não afeta adultos", complementa o médico.
No Brasil todo, de acordo com o médico pediatra José Paulo Ferreira, representante da Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul (Sprs), foram 132 casos notificados, o que reforça o caráter raro da enfermidade. Estima-se que cerca de 10 casos já tenham sido identificados no Rio Grande do Sul - apesar de oficialmente o governo ter o registro de apenas três. Dos casos gaúchos, três foram atendidos pela equipe da Santa Casa, dois pacientes eram meninos de 5 e 6 anos, que já tiveram alta, e o outro uma menina de 11 anos, que ainda está em tratamento, mas já tem previsão de alta.
"A Covid não é grave na pediatria, mas essa síndrome é e precisa ser tratada para evitar processo inflamatório intenso e que possa ocasionar problemas cardíacos. E, embora não haja estudo conclusivo sobre a prevalência da SIM-P em pacientes Covid, surgem casos em observação e que nos levam a acreditar podem sim ter relação com o coronavírus", reforça o Ferreira.
Retomada das aulas requer cuidados redobrados com higiene, distanciamento e uso de máscara
Volta das atividades escolares deve ser encarada com muita responsabilidade
PRISCILA PILLETTI/DIVULGAÇÃO/CIDADES
Mantidos em casa há mais de cinco meses, quando as aulas presenciais foram suspensas em todo o Rio Grande do Sul, crianças e jovens têm sido privados de suas rotinas e do convívio com amigos, avós e familiares, mas podem vir a retomar gradualmente as atividades escolares, já que o Executivo gaúcho planeja divulgar nesta terça-feira (1º) o calendário de retorno das aulas em sistema híbrido, que mescla esquema presencial e remoto.
Embora polêmica, a questão tende a avançar para uma volta diferente ao ambiente escolar, marcada por processos que impliquem em redução de turmas e horários e cuidados redobrados com protocolos de higiene e distanciamento, além, claro, do uso obrigatório de equipamentos de proteção individual. Nos consultórios dos pediatras, a volta às aulas é um dos temas mais questionados pelos pais. Os profissionais ouvidos pela reportagem são unânimes em dizer que as famílias que quiserem e puderem manter os filhos por mais tempo fora da escola, deveriam fazê-lo, mas também concordam que essa não é uma possibilidade fácil nem real para a maioria. Diante disso, aconselham cuidados redobrados e muita conversa com as crianças e jovens diante do retorno iminente.
"Não se sabe o que é mais correto, se voltar agora, em dezembro, ano que vem, e isso angustia a todos. O que precisa é de uma organização multiprofissional para a tomada dessa decisão. O que vejo entre os pais é o desejo de poder optar pela volta ou não das crianças à escola. É complicado, por isso que a decisão deve ser individualizada, pois depende de cada caso familiar, se há pessoas do grupo de risco na casa, da condição da criança, etc. A abertura deve ser vista com muito jogo de cintura", opina o pediatra José Paulo Ferreira.
Na mesma linha, a pediatra Helena Velasco destaca que não há nenhum estudo conclusivo sobre a conveniência ou não da volta às aulas, assim como não há evidência científica de que deixar a criança totalmente isolada resolva. Por isso, pra ela, o retorno das atividades escolares é um tema que requer cuidado. "Em um mundo ideal, onde as crianças não estivessem sofrendo de outras maneiras com o isolamento, o melhor seria não voltar às aulas, mas essa retomada precisa ocorrer, de uma maneira segura e pensada multidisciplinarmente", comenta.
Já o infectologista pediátrico Fabrizio Motta avalia que, uma vez que a tendência é de ritmo de queda da pandemia, seria inevitável não avançar para a volta dos alunos ao ambiente escolar. Ele aponta, no entanto, que essa decisão deve estar bem embasada cientificamente para a definição das faixas etárias desse retorno inicial, bem como para alinhar a estrutura de ensino às medidas de higiene e protocolos necessários. "Também, a essa altura, devemos pensar ainda nos danos psicológicos que mais privação das crianças de convívio com os colegas e professores poderá causar", comenta ele.
Os médicos lembram ainda que orientação recente da Organização Mundial da Saúde aponta que crianças menores de cinco anos não devem usar máscara, pela dificuldade de utilizá-las corretamente e até para evitar riscos de sufocamento nos menores. No entanto, a proteção é sempre recomendada sob a supervisão de um adulto.
Na faixa etária de seis a 12 anos, no entanto, o equipamento já é sugerido, também sob supervisão, mas obrigatório mesmo apenas para crianças acima de 12 anos. "Se a criança consegue usar, seria importante mantê-la. A máscara evita o contato com grandes partículas de saliva, por exemplo, é uma proteção parcial e que deve ser mantida junto com o isolamento social e a higiene correta das mãos", explica Ferreira.
Ele ressalta ainda que cabe às pessoas manterem o bom senso neste momento e seguirem adotando as condutas de proteção necessárias. "Principalmente porque uma vacina para o coronavírus não deve aparecer antes do prazo de um ano no Brasil. Então, teremos de seguir usando máscara e aprendendo a circular nos locais com cuidado e responsabilidade", reforça o representante da Sprs.