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reportagem cultural

- Publicada em 15 de Abril de 2021 às 21:31

Músico Jerônimo Jardim passa a limpo 50 anos de carreira

Artista gaúcho narra trajetória e faz balanço de obra autoral

Artista gaúcho narra trajetória e faz balanço de obra autoral


ACERVO JERÔNIMO JARDIM/MARCELLO CAMPOS/DIVULGAÇÃO/JC
Marcello Campos, especial para o JC*
Marcello Campos, especial para o JC*

Prestes a completar 50 anos de uma sólida carreira, o músico Jerônimo Jardim faz o balanço de uma obra autoral que alcançou projeção nacional ao derrubar cercas e erguer pontes entre o regional e o universal na música popular gaúcha.

Um vídeo postado recentemente pelo compositor na rede social Facebook esbanja emoção, mesmo com o protagonista calado na maior parte do tempo - uma ironia e tanto para quem sempre fez da voz uma de suas armas. Ao volante pelas ruas da Porto Alegre que o recebeu em definitivo em 1971, o músico gaúcho de 76 anos e olhos marejados só quebra o silêncio ao mencionar "mais um rito de passagem", enquanto a câmera do celular pilotado pela esposa percorre dois violões deitados em seus estojos no banco traseiro, rumo ao novo dono - o neto Pedro, 7 anos.
Nome fundamental em uma geração que desatou nós na cultura popular do Rio Grande do Sul, o autor e coautor de relíquias como Côto de Vela, Purpurina e Astro Haragano tomou a difícil decisão de largar de mão as lides de cantor, instrumentista e homem dos palcos justamente no momento em que completa cinco décadas de carreira. Resta "apenas" o compositor, cuja obra está distribuída em sete discos próprios e dezenas de gravações por outros intérpretes - assim como a resiliência, a gentileza é uma de suas marcas.
Ele perdeu a conta dos remédios, cirurgias e temporadas em leitos hospitalares nos últimos 13 anos. Culpa dos efeitos de uma artrite reumatoide, doença inflamatória, crônica, autoimune e de origem genética que afeta membranas, articulações e órgãos internos. "Não quero mais fazer música, já deu o que tinha que dar", decreta ao comentar as dissonâncias de sua saúde. "Mas aí ouço pela janela algum ruído vindo da rua, pode ser uma freada de carro, o barulho de um ônibus ou o canto de um passarinho, e isso me basta para disparar o gatilho criativo."
Advogado, professor, publicitário, escritor, funcionário público, ativista, empresário e até aspirante a jogador de futebol, esse multifacetado personagem nascido e criado na Fronteira-Oeste do Rio Grande do Sul traz em seu alforje o sucesso e a rejeição, o aplauso e o apupo: "As vaias me perseguem", reitera, como se mostrasse em seu esmerado acervo de recortes (quase 10 imensos álbuns) as cicatrizes das feridas artísticas, três das quais foram decisivas em uma trajetória vitoriosa desde a época das primeiras "canjas" nas noites da Capital em 1971.
Esses tantos Jerônimos coabitam em um velho guri gaúcho sem fronteiras, talhado na combinação entre campo, asfalto e concreto, sementes, raízes e estrelas, sonhos, acordes e letras. E que antes do recrudescimento da pandemia escancarou à reportagem do Jornal do Comércio a porteira de seu apartamento no bairro Floresta, junto com a fiel escudeira Clair, para rodar o pião em uma entrevista - na verdade, um punhado delas: singular e plúrimo, o tanto que construiu nestas cinco décadas de carreira jamais caberia em uma só conversa, mesmo em viva voz.

A arte de costurar caminhos

Em 1957, encantado pelos livros, Jerônimo Jardim também fez carreira no Direito e Propaganda

Em 1957, encantado pelos livros, Jerônimo Jardim também fez carreira no Direito e Propaganda


ACERVO JERÔNIMO JARDIM/DIVULGAÇÃO/JC
O sujeito de fala tranquila e olhos sonhadores que mira um ponto-de-fuga pela janela com vista para um trecho do Guaíba tem uma história pessoal que não difere da saga de muitos gaúchos de sua geração que trocaram o Interior pela Capital. Ao menos nas linhas iniciais. Nascido em 19 de novembro de 1944 na cidade de Jaguarão, Jerônimo Osório Moreira Jardim, o mais velho dos cinco filhos do major José Osvaldo e da dona de casa Aida morou em Santo Ângelo, Três Passos e Bagé, antes de a família seguir para Rio Grande.
Na cidade portuária do Litoral Sul, o pioneiro Sport Club local ganhou - e logo perdeu para os cadernos e agendas extracampo - um promissor lateral-esquerdo e centroavante de 17 anos. "Eu quase morri de difteria aos 6 meses, tive hepatite aos 9 anos, asma aos 11 e mesmo assim virei atleta", vangloria-se. O azougue dos gramados, entretanto, logo amargaria um período no banco (o Nacional do Comércio, não o de reservas) como chefe da carteira de descontos, enquanto estudava para o vestibular de Direito.
Havia também a arte a costurar futuros caminhos na música. O clique tinha sido disparado na adolescência, quando o pai - um bageense de origens rurais - cruzou a porta de casa com um violão, tocando modas pantaneiras. "Eu então comprei um libreto de acordes, com bobagens que nem vale a pena lembrar, ainda que representem um primeiro passo", reconhece. Vendo que o filho levava jeito, o velho acionou um professor do instrumento para aulas particulares que se estenderiam por dois anos.
Em paralelo a notas e acordes, um Jerônimo de 13 anos só queria tocar, cantar e jogar bola, até que certa tarde de chuva o trancafiou em casa, entediado. "Era costume as residências terem na sala um armário repleto de livros e na minha não era diferente, então arrisquei As Aventuras de Alice no País das Maravilhas [romance de 1865 do inglês Lewis Carroll] e aquilo me abriu a mente para um mundo novo", recapitula. "Comecei a ler sem parar, com vontade de que chovesse sempre."

Placa da banca da carreira de advogado em 1969

Placa da banca da carreira de advogado em 1969


ACERVO JERÔNIMO JARDIM/DIVULGAÇÃO/JC
Esses e outros temperos intelectuais acabaram ampliando em qualidade e destemor o processo criativo do jovem prodígio em formação na família Jardim. Alguns anos depois, arvorando-se em voz e violão nas serenatas com o mano José “Bebeco” Osvaldo (hoje veterinário e professor na Universidade Federal de Santa Maria), o avanço foi de sem-pulo para as composições próprias. “Até a Zero Hora noticiou, na época, o ‘Chico Buarque de Bagé’, em uma fase que me deixou relativamente famoso na região mas que era meio brega”, diverte-se.
A tabelinha entre futebol e música teve alterada a sua dinâmica aos 21 anos, quando se ergueu a placa anunciando a substituição: saía de campo o atleta e seresteiro para a entrada do marido, corretor imobiliário e acadêmico de Direito. Formado pela Universidade Federal do Rio Grande (Furg) em 1968, o bacharel e já advogado do Unibanco passaria a desempenhar uma função que ele próprio define como "folclórica": defensor público de criminosos comuns. Foram cinco júris, com derrota em apenas um caso - na segunda instância.

Como advogado, no tribunal do júri nos anos 1960

Como advogado, no tribunal do júri nos anos 1960


ACERVO JERÔNIMO JARDIM/DIVULGAÇÃO/JC
Alguns dos réus bem que mereciam um conto, crônica ou canção. “Houve ocasião em que representei um velho senhor negro que, aos 80 anos, havia decepado o braço de um rapaz de 25 em duelo a facão, por questões de honra. Muito religioso, ele se negava a mentir em depoimento e acabou condenado”, recapitula. Anel de doutor e aliança de casamento, Jerônimo retornou para Bagé, dividindo escritório com a esposa Mara Ferreira, ex-colega de faculdade e depois mãe de Thaís (1970) e Flávio (1974).
O começo da década seguinte seria de bifurcações na estrada, com viagens frequentes a Porto Alegre, onde brechas na agenda advocatícia ensejavam incursões pela boemia local, com seus cenários e personagens. Dona Maria. Varanda. Copacabana. Batelão. Lupicínio Rodrigues. Túlio Piva. Adão Pinheiro. Luiz Mauro. Wanderley Falkenberg. Giba Giba. Ivaldo Roque. E um sujeito tão polivalente quanto decisivo nos rumos que a vida daquele candidato a músico popular tomaria dali em diante: Luiz Coronel.
Advogado, publicitário, poeta e compositor, ele visitava a sua terra Bagé quando deixou algumas letras para o amigo, como um "merengue" ao craque que se aproxima da grande área - Porto Alegre. O primeiro gol da dobradinha saiu em maio de 1971, com duas das 20 canções do show coletivo Rio Grande do Som, organizado por Coronel no Theatro São Pedro. No palco, Glênio Fagundes, Marco Aurélio Vasconcelos, João Palmeiro, Ana Mazzotti, Lúcia Helena, Kleiton Ramil e um tal Jerônimo Jardim.

A alma do negócio

Como publicitário, Jerônimo Jardim dirigindo comercial em 1975

Como publicitário, Jerônimo Jardim dirigindo comercial em 1975


/ACERVO JERÔNIMO JARDIM/DIVULGAÇÃO/JC
O Direito estava fadado a ficar para trás com o desembarque definitivo na Capital (a família o seguiria em um segundo momento), atraído por outra proposta, capaz de segurar as pontas: o trabalho com propaganda. Na meia-cancha desse esquema estava, mais uma vez, Luiz Coronel. Redator da agência Letra 3 (1967-1975), fundada por Avremiro "Nenê" Zimmermann, Plínio Rocha e José Blanco em um casarão no bairro Rio Branco, ele viu no novo parceiro um comparsa também para os jingles.
O resultado seria ouvido em reclames da Casa Louro, Café Pacheco, joalheria Scarpini, loja Saco & Cuecão e supermercados Zaffari. De freelancer a sócio, ele acabou abraçando funções de redator e contato comercial. "Nos tempos da Rádio Continental, os anunciantes veiculavam peças maravilhosas do Coronel com o Jerônimo, um publicitário original e autêntico em um ramo no qual nem sempre se diz a verdade", enaltece Nenê, 76 anos, hoje colunista em um site sobre comunicação.
Quando Luiz Coronel partiu para a criação da Êxitus Publicidade, em 1972, Jerônimo prosseguiu em sociedade com Avremiro por mais um ano, até vestir nova camiseta, com braçadeira de capitão: a RN, house agency (escritório interno de propaganda) da Rainha das Noivas. O projeto - pioneiro no Rio Grande do Sul - ajudou a espraiar de três para 11 os endereços do magazine de cama-mesa-e-banho, sem que o cantor e compositor abandonasse planos de se aventurar como músico no Rio.
Atento, o imigrante judeu-polonês Jayme Wainberg (1917-1992), dono da rede, antecipou-se à eventual perda de um divulgador tão brilhante, oferecendo uma beirada permanente de 0,25% no faturamento das lojas. Irrecusável. "Nunca ganhei tanto dinheiro", contabiliza Jerônimo. Nenê acrescenta: "Jayme era fã dele, principalmente com o sucesso estrondoso da campanha em que o empresário aparecia na TV, falando emocionado sobre a perda de estoques no incêndio de uma de suas filiais do Centro".

O desaforado Pentagrama

Jerônimo Jardim e grupo Pentagrama na Rua da Praia em 1975

Jerônimo Jardim e grupo Pentagrama na Rua da Praia em 1975


ACERVO JERÔNIMO JARDIM/DIVULGAÇÃO/JC
A mesma grana que segurava o enxoval em Porto Alegre sustentaria (literalmente) uma entrada de sola nas canelas da gauderiada: o grupo Pentagrama. Sob a batuta de Jerônimo e do catarinense Ivaldo Roque (1939-1985), artista da noite, professor de violão e linotipista do Correio do Povo, o time havia começado em trio com a cantora Lúcia Helena, dando de relho em estereótipos de forma e conteúdo - a valsa campeira Cobra Luz, inspirada na lenda do M'Boitatá, ficou em 3º lugar na Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana de 1973.
O pranchaço, mesmo, foi como quinteto. Sem Lúcia porém incrementado pelo baixista Tenison Ramos (1950-2008), a pernambucana Loma Pereira (cantora de jingles e recepcionista na gravadora Isaec) e a espanhola Yoli Planagumá (crooner e baterista de bandas e bares), ambas radicadas na cidade desde a adolescência. O conjunto era uma espécie de primo menos pop dos Almôndegas e cuja abordagem arrojada é definida pelo pesquisador Arthur de Faria como "mistura muito foda de harmonias vocais e polirritmias, sob influências afropampeanas".
A química fantástica do Pentagrama foi capturada em um só LP, de 1976. Na capa, todos empoleirados - de jeans e tênis - em um portão de estância no Parque da Expointer, em Esteio. Dentro, 12 faixas de um dos mais espantosos discos gaúchos, incluindo a milonga Coto de Vela, calcada no Negrinho do Pastoreio e hostilizada pela plateia da 4ª Califórnia de Uruguaiana (1974). "Veado!", ouviu Jerônimo em sua primeira grande vaia, puxada pelos paladinos do "autêntico nativismo".
Em paralelo, Jerônimo e Ivaldo batalhavam em palcos como o do bar Vinha D'Alho e criavam sambas-enredo para a Academia Praiana, de Porto Alegre. De graça. Sabotagens internas (por suposto excesso de intelectualização) não impediram a vitória de No Tempo da Vovó como melhor composição no Carnaval de 1974. As tensões chegaram ao auge no ano seguinte, culminando na decisão da dupla em pular fora da Escola às vésperas do desfile - as pazes só seriam seladas em 1979.
Folias à parte, o intrépido grupo mantinha o roteiro de shows e lenha no fogo para um segundo disco. Até que a busca de projeção passou a incorporar esboços de um possível êxodo para São Paulo, mas Jerônimo cortou os naipes: "Não teríamos sustento longe de casa, já que eu era o patrocinador e isso dependia de meus rendimentos de publicitário". A relação azedou, a estrela de cinco pontas se desfez e em 1977 cada qual seguiu a sua vereda, com itinerários de amizade que ainda hoje se cruzam.
“Foi mágico! De início eu nem curtia muito o som do Pentagrama, no entanto acabei maravilhada com a qualidade e a liberdade criativa, tudo tão novo sofisticado”, depõe a catalã Yoli, 70 anos, cuja carreira solo abrange quatro discos. Mesmo número de álbuns, aliás, da ex-colega Loma, 67, que corrobora os elogios: “O envolvimento era total, com ensaios, viagens e experimentações. Jerônimo é artista, ativista, amigo e irmão. No Rio, ao saber de meu perrengue financeiro, ele enviou um gibi embrulhado para presente. Por entre as páginas, encontrei várias notas de dinheiro”.

Uma carreira sólida

Jerônimo Jardim tocando no aniversário de Lupicínio Rodrigues de 1972

Jerônimo Jardim tocando no aniversário de Lupicínio Rodrigues de 1972


/ACERVO JERÔNIMO JARDIM/DIVULGAÇÃO/JC
Os meses seguintes seriam de afastamento dos palcos, até aceitar um convite para apresentar no bar Encontro (Cidade Baixa) o show individual Suor & Sal. Também voltou a participar do festival de Uruguaiana, em dezembro, com a falsa milonga Seis da Manhã, defendida pelo parceiro Zezinho Athanazio. Resultado: vitória na categoria Projeção Folclórica - Jerônimo repetiria a dose no certame seguinte, como intérprete de Sementes de Pedra (Geraldo Flach/Kenelmo Alves).
No segundo semestre de 1978, começavam na Isaec os preparativos de um novo capítulo fonográfico: o álbum solo Jerônimo Jardim, lançado sob o embalo do espetáculo Gira da Ganja no Teatro da Assembleia Legislativa. Dentre as 12 faixas, a retomada da parceria com Ivaldo na balada Moda de Sangue acabou chamando a atenção da também gaúcha Elis Regina, radicada no Centro do País, com radar apontado para novidades.
Muito contribuiu para tal interesse a propaganda corpo-a-corpo de Jerônimo. Aproveitando a temporada de Essa Mulher no Teatro Leopoldina, em outubro daquele ano, ele e Raul Ellwanger haviam entregado os seus respectivos LPs à cantora no hotel Plazinha (Centro), por meio do marido e pianista César Camargo Mariano. A retribuição se deu com dois telefonemas. No primeiro, por meio de um assessor, convites e acesso ao camarim – sim, ela havia escutado os discos.
Alguns dias se passaram até que Ayres Potthoff atendeu uma ligação no escritório da Isaec, dentro da Igreja Luterana na rua Senhor dos Passos. Do outro lado da linha, a voz de Elis soava como mais um trote, passatempo que divertia e aporrinhava o pessoal daqueles tempos. “Pois aqui é o Papai Noel”, reagiu o músico e produtor, antes de recolocar o aparelho no gancho. Novo trimmmm soou, com uma gargalhada inconfundível: “Quero falar com Jerônimo Jardim!”.
O fato de o artista estar no Rio divulgando o disco não foi problema. Ela tratou de achá-lo, com um aviso estupendo: Moda de Sangue seria incluída em seu futuro espetáculo Saudades do Brasil, de 1980 (também acabou entrando no álbum duplo com versões de estúdio do repertório levado aos palcos e na trilha nacional da novela global Coração Alado). As cancelas começavam a se abrir para Jerônimo fora do Rio Grande do Sul. De quebra, Elis se ofereceu para produzir o segundo disco do amigo.

'Purpurina' na cabeça

Em 2012, veterano artista fez show alusivo ao sucesso da balada do festival de 1981

Em 2012, veterano artista fez show alusivo ao sucesso da balada do festival de 1981


MARCO QUINTANA/JC
Mas a virada veio a galope, depois de reencontrar no Leblon um casal de cantores e compositores cariocas que conhecera na residência do pianista Geraldo Flach em Porto Alegre: Ivan e Lucinha Lins. A amizade evoluiu para a colaboração em Purpurina, balada defendida pela cantora no festival MPB Shell de 1981 e que rendeu 1º lugar, US$ 300 mil ao autor e a sua segunda grande vaia - a turba no Maracanãzinho preferia Planeta Água, de Guilherme Arantes.
A expressão de êxtase no semblante do gaúcho ("um Toddy no ego", diria ele), capturada pelos fotógrafos, em meses daria lugar à testa franzida pela invasão do novo rock brasileiro. Boa parte do espectro mais convencional da MPB acabaria escanteada: "Tomando chopp com Kleiton e Kledir, notei que as caixas de som do barzinho só rolavam aquele som e comentei que, em breve, o jeito seria aderir ou fazer as malas".
Em 1982, o compacto com o xote Eu Vim do Sul (clipe no Fantástico) e Vento e Pó (inscrita no MPB Shell com vocais das filhas de Chico Buarque e João Gilberto no coro infantil), sob coprodução de Ivan Lins, não evitou proposta da Polygram para o cabeludo charrua aproveitar a "pinta de roqueiro" e gravar no gênero. "Recusei, não era minha praia. Acabei recebendo um 'bilhete-azul' e, no verão seguinte, vim embora."
O residual de sucesso foi aproveitado na Capital com um bar de música ao vivo para chamar de seu: o Purpurina, aberto em março de 1983 na rua Nunes Machado, no bairro Azenha. com dois sócios de Bagé. As atrações incluíam Jerônimo, Totonho Villeroy e Pedrinho Figueiredo, em um ótimo lugar que durou só dez meses. "Foi sucesso, com filas na calçada", conta o ex-sócio Ciro Vaz. "O problema é que o lucro ficava difícil com 12 mesas e clientes que atravessavam a noite com uma caipirinha."
Fora dali, os shows iam minguando - menos mal que a gravação de alguns jingles ajudava a salvar a pátria em 1984, ano para mais um disco, Terceiro Sinal, e reencontro com a advocacia, além de um ativismo político efetivo, com adesão ao PDT e o movimento "Diretas Já".
Se a arte começava a dividir terreno com outras ocupações, em 1985 um episódio crucial fez com que a música se tornasse mera coadjuvante para Jerônimo por mais de uma década: a terceira grande vaia. "Embora a rejeição pelos puristas não fosse novidade, essa me magoou porque Astro Haragano era uma das melhores composições minhas", lamenta. O autor e intérprete fala da milonga alusiva à passagem do cometa Halley, que brilha entre as mais lindas peças da canção brasileira. Delicadeza incompatível com a plateia da 15ª Califórnia, que reagiu com gritaria e pedras após o anúncio da campeã. Na saída, sob escolta da Brigada, deu para ver um idiota com uma corda em nó-de-forca.
Mas o mundo dá voltas. Por insistência do radialista Chico Alves e do ex-cantor Jorge André Brittes (jurado do Festival em 1985 e gerente da RBS Discos), Jerônimo topou fazer o show de encerramento da edição de 1996, com sinal-verde à pedida de cachê ("altíssimo, para que rejeitassem") e ovação geral, inclusive em Astro Haragano. “Foi emocionante testemunhar esse momento na história de um compositor tão diferenciado”, relembra Brittes, 62 anos, hoje produtor cultural. 

"Nem por decreto!"

Músico conversou com reportagem durante a pandemia, em seu apartamento no bairro Floresta, junto da fiel escudeira Clair

Músico conversou com reportagem durante a pandemia, em seu apartamento no bairro Floresta, junto da fiel escudeira Clair


MARCELLO CAMPOS/DIVULGAÇÃO/JC
Na esfera pessoal, a guaiaca já estava mais folgada na primeira metade da década de 1990, com as atividades de professor de Direito Processual na Furg (1991-1994) e analista concursado do Judiciário (1994- 2004), função da qual se aposentou com nota de louvor pela então presidente do Tribunal Regional do Trabalho, Rosa Weber, hoje ministra do Supremo. Tempo, também, de estreia como escritor: desde 1986, são sete livros nos gêneros infantil, infantojuvenil e romance, três deles transpostos para o teatro.
"Shows, nem por decreto!", bradava, enquanto se reconciliava com o violão em 1992. "Canjas" foram preparando terreno para o regresso aos eventos, festivais e circuito noturno, até Jerônimo cruzar novamente a porta de um estúdio, com o CD Digitais (1997). Nos capítulos seguintes, os registros ao vivo Quando a Noite Vem (2003), De Viva Voz (2011) e Singular e Plúrimo (2015), além de participações e parcerias com velhos e novos camaradas - duas coautorias aparecem em Tresavento, CD do cantor Marcelo Delacroix indicado ao Grammy Latino de 2020.
“Como fã e aprendiz, é uma honra ser também parceiro de um dos mestres da música brasileira contemporânea, com uma marca inconfundível nas harmonias, melodias e letras refinadas, em uma obra que sempre buscou construir pontes sólidas entre o regional e o universal”, elogia Delacroix, 54 anos.
O jornalista e crítico Gilmar Eitelwein, 61 anos, segue em linha parecida: “Jerônimo tem papel importante no enfrentamento entre tradição e modernidade na cultura popular gaúcha, criando uma ‘MPB urbana’ típica do Sul sem se envolver em discussões estéreis”.
Uma personagem tem sido essencial nesse percurso: Clair Fofonka, 56 anos, com quem Jerônimo está casado desde 2005. Misto de musa, assessora e anjo da guarda a escoltá-lo pelos bons momentos e outros nem tanto, ela não esquece a ocasião em que um entrou na vida do outro. "Nos conhecemos em 2002 na Companhia dos Sanduíches [bar com música ao vivo que funcionou de 1987 a 2016 no bairro Menino Deus]", menciona a veterinária e agente municipal de saúde. Ele interrompe: "Sem ela, eu nem estaria mais vivo".
E se a desistência de colocar voz e instrumento a serviço da música parece um trilho só de ida, no comando do trem há um criador sensível e antenado, de olho na próxima estação. "Ele se defende muito bem e, quando desafiado, é capaz de fazer seis composições em um dia", garante Clair.
Padrinho de casamento, Luiz Coronel, 82 anos, reforça os adjetivos: “Em tudo o que ele faz, há um talento resplandecente desde quando eu o via de gravata e violão em Bagé. Jerônimo Jardim é um homem valente e lastreado por amizades, como foi o seu pai”.

Produção na literatura e na música


ARTE/JC
 

* Marcello Campos é formado em Jornalismo e Publicidade (Pucrs) e Artes Plásticas (Ufrgs). Tem seis livros publicados, incluindo biografias de Norberto Baldauf (2006) e Lupicínio Rodrigues (2015). Há quase duas décadas, dedica-se ao resgate de locais, fatos e personagens porto-alegrenses.