"As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis", dizia o poeta Manoel de Barros. E para que os nossos olhos possam nos auxiliar a sermos menos racionais, eles precisam ser expostos à diversidade. Pensando nisso, o doutor em Antropologia pela Ufrgs, Mário Eugênio Poglia, capitaneou a iniciativa de digitalizar as obras de arte da Oficina de Criatividade do Hospital São Pedro para acesso público e virtual.
O projeto Salvaguarda e Memória - Artistas do Fora na Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro reúne profissionais da museologia e artes visuais para higienização, catalogação, digitalização e acondicionamento de 200 obras de quatro artistas frequentadores da oficina. Por muitos anos, o Núcleo Transdisciplinar de Arte e Loucura Tania Mara Galli Fonseca, do curso de Psicologia da Ufrgs, esteve em contato com a Oficina, pesquisando e estudando as artes e seus artistas; e mais recentemente o interesse surgiu, também, do curso de Museologia para institucionalizar essas obras. A partir dessa aproximação, construiu-se as pontes necessárias para a iniciativa.
A Oficina de Criatividade foi fundada nos anos 1990 por Barbara Neubarth, Rosvita Bauer, Luiza de Paula Gutierrez e Luciana Machado. Inspirado nos ensinamentos da psiquiatra Nise da Silveira, o espaço utiliza as artes como meio de reabilitação psicossocial de moradores, frequentadores, pacientes internados em grupos hospitalares e membros da comunidade. Há 30 anos, são oferecidas atividades desde o bordado, a colagem e a pintura, até modelagem em argila e oficinas de escrita, entre outras.
"Na minha época de estudante, eu fui para o São Pedro e pensei que nunca ia trabalhar lá dentro, porque eu achava muito triste. Daí eu conheci o trabalho da Dra. Nise da Silveira e pensei que o caminho era por aí. Resolvi voltar e trabalhar com a arte com aqueles pacientes", explica Barbara, uma das fundadoras da Oficina. Na arte, ela viu um caminho para estimular a expressão pessoal, a liberdade e a autonomia de quem sempre foi colocado numa posição de quietude.
Os quatro artistas a terem suas obras digitalizadas são Cenilda Ribeiro, Frontino Vieira, Luiz Guides e Natália Leite, que, segundo a também curadora Barbara Neubarth, foram os que mais participaram das produções durante esses 30 anos. "Escolhemos esses quatro porque são pessoas que trabalhavam com mais frequência na Oficina, têm um trabalho mais consistente, que foi "evoluindo", se transformando ao longo do tempo", explica. Posteriormente, o material estará disponível online, por meio da plataforma Tainacan, desenvolvida para acervos museológicos.
Barbara relembra que, no início do seu trabalho na instituição, mais da metade dos mais de 200 moradores não tinham sequer certidão de nascimento. "Eles eram conhecidos por um número, ou por um apelido. Eles eram 'O Ignorado Sorriso', 'A Ignorada Maria Muda'. Então foi feito um trabalho junto à assessoria jurídica para dar uma certidão de nascimento para eles, para que pudessem passar dessa condição de ignorado, para uma condição de cidadão, com direitos e desejos".
É para que a Maria não seja mais ignorada, e nem muda, que se fazem tão necessários projetos como este, que produzem novos imaginários, possibilitam novas interlocuções e ampliam as vozes dos considerados 'diferentes'. "Tenho um interesse ético de fazer resistência. Fazer com que essas pessoas, que muitas vezes são conhecidas apenas pelo seu diagnóstico, se expressem em primeira pessoa", explica o idealizador do projeto, Mário Poglia.
Pessoas consideradas desviantes do resto da sociedade foram, ao longo da história, trancadas longe do corpo social. Afastar do convívio com os seus iguais desumaniza e faz adoecer mais. Tranca-se sua vida, suas ações, seus sonhos e seus desejos. A pessoa institucionalizada se transforma em seu diagnóstico: louca. E tudo o que ela faz é, por consequência, loucura. E nós, do alto da nossa alegada normalidade, não queremos entrar em contato com tudo isso.
"Essa conexão de arte e loucura é muito interessante pela ideia de que a loucura rompe com algumas normativas a que estamos acostumados. Essas expressões da chamada loucura podem abalar as convicções das nossa pretensa razão", comenta Mário. Oportunizar que essas pessoas expressem seus pontos de vista, relatem as suas vivências, se coloquem enquanto sujeitos de suas próprias histórias é o caminho para uma nova sensibilidade, uma nova percepção sobre o que são e o que fazem. Eles, que sempre foram limitados à semântica da palavra 'objeto', agora são o seu antônimo: sujeitos.
"As obras são importantes porque as pessoas que estavam nessa condição exclusivamente subjetiva, na condição de pacientes, mostram, por meio dessas obras, que observavam esse espaço, eram capazes de sonhar, de produzir novas construções. Portanto, não eram apenas passivas, mas sim, criativas: produziam uma resistência, no sentido de explorar o potencial criativo do ser humano", elucida Mário.
Na oficina, os artistas não são chamados de pacientes. Eles têm nome. E história, sonhos e desejos. Não se busca a cura, mas o bem-estar e uma boa vida. "Essas pessoas não vão passar pela vida sem serem reconhecidas", enfatiza Barbara.