Aos 29 anos, Alice Caymmi nasce de novo. Na capa de Electra, seu quarto álbum, ela surgiu de cabeça raspada à máquina 2: "Uma coisa meio recém-nascido". A postura segura lhe distancia da menina lourinha que apareceu no final dos anos 2000 cantando na Lapa. A mudança foi aos poucos, traduzida em seu fazer artístico, nos discos: Alice Caymmi (2012), pleno das referências marítimas que inspiraram o avô, Dorival; Rainha dos raios (2014), em que assumiu forte personalidade teatral; e Alice (2018), um mergulho fundo no universo pop.
Mas a transformação de agora é "um corte". E, para encará-lo, Alice precisou se escorar na persona do título do novo CD. Em vez do mito grego, que induz o irmão a assassinar a mãe para vingar a morte do pai, a cantora empunha a faca - com que aparece na imagem - para matar dores internas que não queria mais levar em sua caminhada. Desejava deixar o peso do sobrenome para tentar ser quem é. "Me transformei como indivíduo independente, e superei questões. Em vez de negar, quis tratar desses assuntos. Parti da minha crise para falar da crise ética e moral do mundo. O disco trata de violência", diz.
Foi, aliás, usando essa palavra que Alice rebateu críticas de sua tia Nana Caymmi. Em março, Nana declarou em entrevista: "Tinha muita esperança de que ela fosse para o meu caminho. Achei que Alice ia dar mel, mas não deu". A sobrinha, por sua vez, usou as redes para dizer que passou por "rejeição e violência" e não pedia a aprovação de ninguém. A brutalidade não vinha só da família: "Foram 10 anos tendo que responder como é ser neta do Caymmi".
Os versos que agora canta, com propriedade, pareciam entalados na garganta (o disco foi gravado em apenas dois dias): "Pouco importa se tudo hoje em dia/ se baseia na diplomacia" (Diplomacia, de Maysa); ou "medo, alimento dos covardes" (Areia fina, de Lucas Vasconcellos). "Palavras são instrumentos de cura. Estou falando sobre existência, perdão, vida e morte. As pessoas te decepcionam de maneira sem volta. Sofri essa morte da decepção, voltei e renasci."
Com a mesma dramaticidade de seu canto, Alice mete o dedo na ferida até sangrar e critica a sociedade de aparências: "As pessoas estão superficiais, nesse lugar de autoajuda, de ser fofinho, sempre agradável. Se você é o tempo inteiro correto, passa por tudo e não erra, quem é você? Todo mundo se expõe nas redes mas, ao mesmo tempo, nada é verdadeiro".
Talvez por sentir falta dessa verdade, a artista afirma compreender Nana. "A tristeza fica. Mas é preciso perdoar. Não dá para fingir que não há uma trajetória. Pouco se sabe do que ela passou, sua luta como mulher, cantora e mãe", observa. "Ela é assim, não tem filtro. É de outra geração, não iria pegar um celular e fazer um tuíte. Tia Nana e Tio Dori são para o lado da vovó Stella. Eu e meu pai (Danilo) somos como meu avô, que pensava muito antes de falar."
Desde pequena, Alice foi vidraça. No tempo de escola, o sobrenome ilustre, o físico fora dos padrões e a personalidade excêntrica da menina que ouvia ópera, música francesa e assistia ao seriado Babar, o rei dos elefantes em vez de Xuxa provocavam piadas.
Ela chegou a fazer vestibular para Direito, mas a aventura acadêmica durou dois semestres. O teatro veio em seguida (formou-se na PUC) e construiu muito de sua personalidade artística. O que se verá nos shows do disco, sob direção de Paulo Borges e figurino de Alexandre Herchcovitch, não foge a essa linguagem teatral. "Música para mim é música, moda e comportamento", diz ela, que tem como referências Björk ("artista completa") e Caetano ("só faz o que quer"), e anda estudando teatro japonês como butô e kabuki. "Não tenho espaço para pudor, ainda mais no palco. É entrega total. Tenho uma superpreocupação estética, mas não com a minha beleza como mulher."
Até porque Alice nem quer ser enquadrada na binaridade de gênero. Diz que gosta do "é menino ou menina?" que a cabeça raspada traz. "Curto a silhueta menos definida, que pensem sobre a figura por trás da voz. Por isso sempre tive uma questão com bandeiras: elas definem. Não vou virar uma hashtag", critica ela, que prefere não declarar sua opção sexual. "Luto pelo direito de todo mundo ser o que quiser."
Alice é dramática, mas tem senso de humor e gargalhada solta, ama a atriz Vera Holtz e o cineasta Lars von Trier. Às vésperas de completar 30 anos, deixou empresário, assumiu a própria carreira e tem certeza de que vai fazer cada vez menos concessões na vida: "Se não for para desafinar o coro dos contentes em vários momentos, não sei o que eu estou fazendo aqui".