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Tradição de 'memoricídio' se perpetua no Brasil, diz Seligmann-Silva
PERFIL
MARCO QUINTANA/JC
Paula Coutinho
Neste 10 de dezembro, faz um ano que o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi apresentado, e, no entanto, a maioria das recomendações ficou pendente de encaminhamento. "Era uma comissão para inglês ver", lamenta o historiador Márcio Seligmann-Silva, doutor em Teoria Literária e especialista em temas como testemunho, trauma e memória.
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Neste 10 de dezembro, faz um ano que o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi apresentado, e, no entanto, a maioria das recomendações ficou pendente de encaminhamento. "Era uma comissão para inglês ver", lamenta o historiador Márcio Seligmann-Silva, doutor em Teoria Literária e especialista em temas como testemunho, trauma e memória.
Segundo ele, o governo brasileiro perdeu a chance de estabelecer um marco histórico para a inscrição da memória da violência no País. A opção por um formato "mais de gabinete e de pesquisa já mostrava essa tendência de ser uma comissão sem um grande impacto", observa Seligmann-Silva. Sem força política, a CNV acabou por produzir um resultado aquém da expectativa: "O Brasil já tem o seu relatório, mas não é o relatório que nossa ditadura, com sua violência enorme, merecia".
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, o pesquisador observa ainda que a não memória da violência está relacionada não apenas ao período da ditadura, mas faz parte de uma lógica conservadora que é anterior a ele e que se perpetua. "A tradição de 'memoricídio', de assassinato da memória de nossa violência social, sempre aconteceu. O Brasil é um país extremamente violento, extremamente racista, onde justamente não existem espaços de locais de memória para se lembrar do genocídio dos africanos que vieram para cá, e dos indígenas, que foram e ainda são dizimados."
Jornal do Comércio - Está completando um ano desde que a CNV entregou o relatório final dos trabalhos, mas a repercussão foi tímida, diferentemente de processos ocorridos em outros países da América Latina. A que atribui isso?
Márcio Seligmann-Silva - No Brasil, a gente tinha tudo para ela não dar certo. É uma comissão que saiu a "fórceps", por pressão internacional, sobretudo da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a lidar com essa questão do Araguaia, esses crimes contra a humanidade. E um país que tem essa dimensão econômica, política e diplomática não podia ficar como o único da América Latina que não foi atrás dessa questão. Então, a gente fez a Comissão da Verdade, mas era uma comissão, lamentavelmente, para inglês ver. Evidente que a comissão tinha pessoas maravilhosas, que lutavam muito para fazer um relatório que é muito bom e tem muita coisa nova. Eles despertaram para essa questão do genocídio indígena, do campo... mas, por exemplo, achei decepcionante, no relatório, quando vão elencar os mortos, não colocam os indígenas e o pessoal do campo. E a alegação é aquela velha de não haver os dados precisos. Mas nunca vai se ter esses dados precisos. Justamente a lógica das ditaduras e dos genocídios do século XX é a de apagar os rastros. Mas, evidentemente, há testemunhos. Tanto é que eles levantam que deve ter alguns milhares de indígenas assassinados nesse processo, centenas de camponeses. Se, talvez, o relatório tivesse sido formulado de uma maneira mais polêmica e impactante, talvez tivesse gerado mais comoção. Na verdade, ele foi publicado, e a mídia também fez um trabalho pesado de anular aquelas recomendações, que são muito boas, do relatório, e não aconteceu nada de realmente importante com relação a nossa política de direitos humanos no Brasil.
JC - Foi diferente na África do Sul, que conseguiu encaminhar um processo de Comissão da Verdade com outro caráter, outro modelo...
Seligmann-Silva - A nossa opção por um tipo de comissão da verdade mais de gabinete e de pesquisa já mostrava essa tendência de ser uma comissão sem um grande impacto. Na África do Sul, foi o exato oposto. A ideia era criar uma comissão que teria um papel político fundamental, como um ritual de transição. A possibilidade de, através da confissão... é uma ideia cristã, protestante e também católica, criar aquela comunidade dentro dessa nova verdade que seria revelada de uma maneira clara. Essas pessoas seriam, inclusive, perdoadas juridicamente. No Brasil, você tem o perdão jurídico, mas não teve a revelação da verdade toda. Nunca, evidentemente, a verdade é toda revelada, mas os arquivos desaparecidos, os principais, a comissão não conseguiu levantar esses arquivos, não teve força política.
JC - A CNV acabou esvaziada, ainda que houvesse o interesse de ocupar um assento no Conselho de Segurança da ONU.
Seligmann-Silva - Há interesses políticos fortes, internacionais. O Brasil já tem o seu relatório, mas não é o relatório que nossa ditadura, com sua violência enorme, merecia. Muito menos o impacto. A questão da anulação da Lei de Anistia não avançou, isso entrou na pauta de uma maneira muito tímida e logo foi tirado. Existem poderes muito grandes. O Brasil tem uma característica muito sui generis na América Latina. Nossa transição foi totalmente organizada pelos detentores dos poderes da ditadura. O nosso primeiro presidente, (José) Sarney (PMDB), era pilar da ditadura. Então, não teve transição como aconteceu nos demais países. A Argentina teve a guerra das Malvinas, que foi um corte, acabou com a força dos militares. O Brasil não teve isso. Então, os militares e seus aliados, era uma ditadura civil-militar, organizaram a transição e também essa não memória ou falsa memória dos tempos da ditadura. É uma memória encobridora, como se diz na psicanálise. Se fala de milagre econômico, de grande progresso etc, quando na verdade, no Brasil, a ditadura acaba muito por uma crise econômica terrível. Eles não conseguiram de modo algum fazer esse milagre econômico que propagandearam.
JC - Na África do Sul, houve a opção de fazer uma transição política...
Seligmann-Silva - Pública e televisionada. Era aquele teatro catártico.
JC - Quando menciona esse teatro catártico, pode-se dizer que essa opção foi feita no caso do julgamento do mensalão?
Seligmann-Silva - Exatamente. O mensalão, a Lava Jato, aí são jogos, são elites políticas e econômicas que estão se digladiando. Uma tem interesse de dar uma rasteira na outra e explicita esses crimes e etc. A gente sabe que, se for cavar fundo, lamentavelmente, poucos partidos hoje em dia realmente não vão estar ligados a algum tipo de corrupção. A nossa estrutura permite isso. Então, na verdade, o que a gente tem que saber aqui é que são grupos de elite distintos, um querendo prejudicar o outro para tomar o poder, tomar a máquina para si. Mas isso não tem nada a ver com uma mudança genuína do modelo político. Tanto é que as tentativas de reforma política não vão adiante. Isso não acontece.
JC - Assim como a reforma tributária, que poderia ter algum efeito estrutural, também não avançou.
Seligmann-Silva - Pelo contrário, estamos tendo um retrocesso. O Brasil é um país muito conservador no panorama latino-americano, a gente está indo na marcha à ré. As nossas leis tramitando no Congresso são terríveis.
JC - A eleição passada formou o Congresso Nacional mais conservador dos últimos tempos, com muita força das bancadas ruralista, da bala e da bíblia.
Seligmann-Silva - Essa continuidade em relação à ditadura e agora também é longuíssima. A tradição de "memoricídio", de assassinato da memória de nossa violência social, sempre aconteceu. Tanto é que se criou e vendeu para o mundo essa imagem do Brasil carnavalesco, de democracia racial, que é uma construção profundamente ideológica e mentirosa. Um país extremamente violento, extremamente racista, onde justamente não existem espaços de locais de memória para se lembrar do genocídio dos africanos que vieram para cá, dos indígenas, que foram e ainda são dizimados. É uma continuidade. Os antropólogos dizem que este governo agora da Dilma (Rousseff, PT), lamentavelmente, é um dos piores com relação às populações indígenas. E quando pensávamos no PT há 30 anos, pensávamos que seria um partido que lutaria pelos oprimidos. Lamentavelmente, não é isso que está acontecendo.
JC - O genocídio continua, da população negra, pobre...
Seligmann-Silva - Exatamente. Eles que estão na prisão, eles quem são assassinados. No ano passado, foram 58 mil assassinatos no Brasil. Houve uma naturalização da violência. Quem é assassinado são justamente os negros favelados que são excluídos da nossa visibilidade. Matar pobre e favelado é uma coisa normal. Isso é um terror. Aqui no Brasil, essa guerra já está instalada desde sempre, e não conseguimos romper com essa lógica da nossa visão de mundo conservadora, da nossa política conservadora. Mesmo quando há partidos que têm um projeto, que seria de transformação, são totalmente cooptados pela estrutura da política que é tomada pela lógica do mercado.
JC - O Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou a ação de revisão de Lei da Anistia, proposta pela OAB. Depois, a Corte Interamericana considerou que as leis de anistia não são válidas, pois estariam perpetuando as injustiças.
Seligmann-Silva - O STF deu essa resposta de antemão antes que viesse a condenação, como que dizendo "a gente não vai mudar essa lei".
JC - Não acredita que a revisão possa prosperar então?
Seligmann-Silva - A Lei Maria da Penha é o caso de uma lei que também foi introduzida no Brasil por conta de um processo que acabou caindo na Corte Interamericana, reverberando na criação de uma lei. Então, às vezes, a pressão internacional tem um efeito positivo. Mas, no caso da superação da Lei da Anistia, não acontece por haver interesses tão grandes que não se deixam abalar inclusive pela imagem internacional do Brasil. Passam por cima de tudo isso. Ao menos a médio prazo, não vejo uma mudança nisso.
JC - Um dos ministros do STF justificou que se deve "olhar para o futuro, não para o passado", como que reforçando a ideia de esquecimento.
Seligmann-Silva - É uma construção ideológica no passado. Mas o presente que não olha para essas violências perpetua essas violências. Por isso, acho que é sempre importante falar dessa violência da ditadura, falar dessa postura de continuidade dela. A gente continua torturando, tendo desparecidos. Nossos Amarildos (o pedreiro Amarildo de Sousa desapareceu no dia 14 de julho de 2013 após ser levado por policiais militares para a base da UPP Rocinha) estão por aí todos os dias. Se tivesse havido um processo jurídico em relação àquela violência da ditadura, teria sido exemplar para os que são a favor dessa militarização do enfrentamento da violência. A gente não pode mais torturar, nem matar suspeitos. No Brasil, se matam centenas de suspeitos por semana. Que país do mundo se mata suspeito? Isso é uma execução sem qualquer julgamento. Então, existe pena de morte no Brasil. Pode não ser oficial, mas ela é cotidiana. É assustador.
JC - Em depoimento à Comissão Estadual da Verdade, aqui em Porto Alegre, Nilce Azevedo Cardoso, perseguida e torturada, disse que, para "virar a página" da ditadura, era preciso completar as muitas lacunas desse "livro".
Seligmann-Silva - Não foi escrito. Para você virar a página, tem que escrever, está praticamente em branco. Mesmo com esse trabalho maravilhoso da comissão, inclusive tem um volume que acho genial, que traz a vida das pessoas, dos desaparecidos. Essa parte, essa biografia, é uma das partes mais interessantes por ter uma função didática, é muito interessante. Deveria ser lido nas escolas, está disponibilizado on-line, para adolescentes do final do Ensino Médio. Isso permite uma identificação com essas figuras. As pessoas que estão desaparecidas eram jovens de 20 e poucos anos. Eram idealistas, estavam dando a vida por um ideal de liberdade. Cria uma empatia. É uma pena que não se explorou esse dispositivo do testemunho. Se a gente pensa nas catástrofes do século XX, nos campos de concentração nazistas, no massacre de Ruanda, nas guerras genocidas, elas produziram uma grande quantidade de testemunho, e as ditaduras latino-americanas também. No Brasil, a gente não soube explorar até agora essa questão da verdade testemunhal. Se diz: "não tem os documentos". Mas há os testemunhos. Em qualquer tribunal, se aceita testemunho como uma fonte de verdade. Mas aqui, não se criou uma cultura do testemunho. É uma fonte de identificação, e uma fonte muito viva para conhecer a história.
Perfil
Márcio Orlando Seligmann-Silva, 51 anos, nasceu na cidade de São Paulo. Professor titular de Teoria Literária na Unicamp e pesquisador do CNPq, graduou-se em História pela PUC-SP (1986), tem mestrado em Língua e Literatura Alemã pela USP (1991), é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Freie Universität Berlin (1996) e pós-doutor pelo Zentrum Für Literaturforschung Berlin (2002) e pelo Department of German, Yale University (2006). Tradutor e revisor da obra de Walter Benjamin, é um dos maiores especialistas no filósofo, crítico literário e tradutor alemão. O primeiro contato com a obra do autor foi ainda na graduação, na década de 1980, por meio do professor de História Nicolau Sevcenko, falecido no ano passado. Recentemente, publicou, de Benjamin, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (L&PM Editores, 2014). Também foi vencedor do Prêmio Jabuti de Melhor Livro de Teoria e Crítica Literária 2006 com O local da diferença - ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução (Editora 34, 2005).