Quem procurava estada em Porto Alegre pela plataforma de hospedagem Airbnb até o início desta semana encontrava uma opção com a seguinte descrição: “linda casa de época moderna”. As fotos de ambientes aconchegantes e decoração requintada escondiam uma história que faz parte de um capítulo trágico da cidade. No endereço exposto no site, rua Santo Antônio, nº 600, no bairro Bom Fim, funcionava o Dopinho, primeiro centro clandestino de detenção do Cone Sul, onde pessoas foram torturadas pelo regime militar (1964-1985).
O valor para passar uma noite no local, que poderia abrigar seis hóspedes, era de R$ 700,00. A estrutura para aluguel contava com três quartos, quatro camas e quatro banheiros. O Airbnb, no entanto, retirou a opção do ar depois que o assunto se tornou público pelo Facebook.
Uma usuária postou na rede que, ao buscar opções de locais para se hospedar na capital gaúcha, se deparou com a residência. A partir disso, o assunto virou tema de debate.
“O Airbnb desativou a referida acomodação para reservas enquanto avalia o caso. O Airbnb tem regras e políticas que determinam como a comunidade deve usar a plataforma para criar uma experiência em que as pessoas se sintam em casa em qualquer lugar e está comprometido a aplicar suas políticas para proteger a comunidade”, afirmou o Airbnb em nota enviada ao Jornal do Comércio nesta quinta-feira (4).
Suzana Lisboa, viúva de Ico Lisboa, que passou a dedicar sua vida à causa dos familiares de mortos e desaparecidos pela ditadura, se surpreendeu com o uso que foi dado ao imóvel. “Esta casa é assombrada pelos gritos dos torturados. A impunidade dos crimes cometidos pela ditadura nos faz vivenciar situações de terror como essa. Quem passaria férias em uma casa de torturas? Memória, verdade e justiça para que nunca mais aconteça”, pede ela.
O Dopinho, que foi desativado em 1966 com paredes manchadas de sangue, era oferecido no Airbnb pela usuária Maria Laura, membro da plataforma desde 2019. A reportagem tentou contato com ela, mas não obteve retorno.
Na rua Santo Antônio, não tem como esse registro passar despercebido. No chão, em frente à casa, uma placa instalada na calçada, em 2015, conta os detalhes dos episódios violentos, iniciativa que integra o projeto Marcas da Memória.
Em 2013, membros da comunidade pediram a desapropriação do imóvel para que ele fosse transformado em um Centro de Memória. O prefeito José Fortunati e o governador Tarso Genro participaram da cerimônia na época, mas o objetivo não foi alcançado. O vereador Pedro Ruas, que diz ter sido o primeiro a entrar no endereço, em 2011, lamenta que o espaço não esteja aberto ao público, mas avisa que não desistiu disso.
“Tentamos, mas não conseguimos. Isso não significa que tenhamos aberto mão. Continuamos com a ideia de torná-lo um centro de memória. Qualquer outro uso que não seja esse, realizado pela área privada, não oferece nada de proveitoso para a sociedade ou para nossa história”, interpreta.