"Todo este cenário nos ajuda a ver em que pé estamos e, repito, é uma situação de estabilização." A frase do secretário da Saúde de Porto Alegre, o médico Pablo Stürmer, é dita pela primeira vez em cinco meses, desde que estourou a atual crise sanitária, e expressa um diagnóstico com base em dois dados. Houve recuo na velocidade da ocupação de leitos de UTI, que tem sido o indicador mais decisivo para o "fecha, abre e fecha".
Até a última sexta-feira, 308 doentes com Covid-19 estavam internados em leitos de terapia intensiva, um quadro semelhante ao fim de julho. O pico foi de 342 casos há uma semana. A ocupação se mantém, porém, em quase 90% da capacidade das UTIs, por isso, um olho precisa estar nas medidas de retomada das atividades econômicas e outro, bem aberto, na capacidade de atendimento em saúde.
Outro fator para descrever o momento é a queda no ritmo de novos casos, de mais de 2 mil até 3 mil, nas semanas anteriores, para pouco mais de mil nesta semana. A Capital tinha quase 20 mil registros e mais de 560 óbitos até o fim de semana.
E daqui para frente? Stürmer, que assumiu o posto em janeiro de 2019, é cauteloso em dizer que tudo vai depender do impacto das flexibilizações recentes, que poderá ser medido até esta semana. Isso definirá novas liberações, como abrir negócios à noite e em fins de semana, reivindicadas por entidades empresariais, mas tudo indica que o ritmo será a conta-gotas. Mas se acelerar a contaminação, o risco de fechar setores volta à cena, avisa. "Sabemos que é importante (reabrir), mas precisamos chegar lá com prudência e com a realidade da pandemia permitindo."
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, também ponderou a possibilidade de retomada escalonada das aulas presenciais. "É mais um passo a ser planejado no processo de reabertura. É verdade que o coronavírus tem poupado as crianças, mas é preciso lembrar que elas não chegam à escola sozinhas e não ficam na escola sozinhas."
Jornal do Comércio - Qual é o quadro da pandemia neste momento?
Pablo Stürmer - Identificamos a consolidação que vínhamos observando há cerca de 20 dias, desde o fim de julho. A evolução da ocupação de leitos de UTI estabilizou de forma bastante considerável nos últimos sete dias. Estamos inclusive com menos pacientes internados do que na semana anterior, e verificamos uma diminuição progressiva ao longo da semana de casos novos e um comportamento semelhante na busca das pessoas com síndromes gripais nas tendas de atendimento. Isso tudo aliado a uma contínua ampliação da nossa capacidade de testes, com a disseminação de pontos de testagem especialmente de exames RT-PCR, que é o melhor para detectar a doença no momento da pandemia e determinar ações de contenção, e de testes sorológicos de quem teve contato com o vírus há mais tempo para saber se tem imunidade. Todo este cenário nos ajuda a ver em que pé estamos e, repito, é uma situação de estabilização.
JC - Esse diagnóstico significa que passamos pelo pior e daqui para frente a tendência é de redução da pandemia?
Stürmer - Este é o desejo de todos e é a dúvida quando temos um cenário de estabilização. No contexto que tínhamos de circulação de pessoas e de atividades mais restritas, chegamos a um ponto de saturação naquela configuração, conseguimos controlar o avanço da pandemia, o que permitiu fazer as flexibilizações recentes. Mas ainda é muito cedo para dizer que as aberturas que fizemos antes do Dia dos Pais e consolidamos na semana passada não tiveram impacto nas UTIs. Por mais que seja uma notícia positiva que permita manter o que foi flexibilizado e olhar para o futuro e ter perspectiva de mais reabertura, todos os cuidados seguem sendo muito necessários, como evitar aglomerações, manter distanciamento de dois metros e higienizar as mãos, evitar tocar o rosto e usar as máscaras. Eles vão continuar a ser importantes por muitos meses, enquanto não tivermos clareza de controle da pandemia.
JC - Esses hábitos de cuidados vieram para ficar?
Stürmer - Não tenho dúvida de que estamos passando por uma mudança cultural. Daqui para frente, contatos e reuniões presenciais ficarão mais escassas. Também quem tiver sintomas de problemas respiratórios terá de ficar mais tempo afastado para cuidados. Quando tudo isso passar, vamos voltar a um ponto diferente de onde começamos a pandemia.
JC - Será que vai ter de ser alterado o calendário letivo para evitar que no inverno, principalmente as crianças, tenham menos exposição a riscos? Ou é absurdo pensar nisso?
Stürmer - Não é tão absurdo assim. É algo que temos pensado. Todos os anos fazemos Operação Inverno na Secretaria da Saúde, com ampliação da estrutura de atendimento, com mais profissionais e leitos, como em UTI pediátrica. As crianças sofrem muito no frio com as doenças respiratórias e doenças transmissíveis. Todos esses hábitos que adotamos desde março, no começo da pandemia, mudaram a curva. Tivemos um inverno totalmente diferente. Quem tem crianças em casa sabe que elas costumam ficar gripadas todo mês. Quem sofre com asma também. Certamente, isso não ocorreu este ano. Mesmo adultos com problemas respiratórios e enfisema que ficam descompensados estão tendo outro inverno. Algumas pessoas ainda acham que a lotação que temos em UTIs, sendo que metade são confirmados ou suspeitos de Covid-19, é a habitual na estação. Não é verdade, a ocupação é muito mais intensa de quadros respiratórios que não do novo coronavírus. Mudamos completamente o mapa do inverno. Não achatamos só a curva da pandemia, mas de todos os vírus respiratórios. Não tenho dúvida que vamos ter de discutir o calendário escolar. Temos hoje 60 dias de férias no verão e 15 dias no inverno. Quem sabe se distribui melhor, com 30 ou 40 dias na estação quente e os outros no frio. Felizmente, o coronavírus não ataca muito as crianças, mas os outros sim. É algo a pensar, pois podemos direcionar os recursos públicos a outras ações e ter crianças mais saudáveis que se desenvolvem com muito mais potencial.
JC - É possível projetar a volta das aulas presenciais?
Stürmer - É um ponto que recomeça a ser pautado no comitê, após um período de suspensão pelo avanço da pandemia. É mais um passo a ser planejado no processo de reabertura. Certamente (a volta), será escalonada devido ao grande volume de pessoas envolvidas. É verdade que o coronavírus tem poupado as crianças, mas é preciso lembrar que elas não chegam à escola sozinhas e não ficam na escola sozinhas - ou seja, tem um notável impacto na movimentação de pessoas e, consequentemente, na circulação do vírus. Por isso, a volta as aulas será realizada com a devida cautela.
JC - Em que momento a gente vai perceber o efeito da recente reabertura?
Stürmer - O efeito de um formato de circulação nas UTIs leva entre 12 e 20 dias. Por quê? Em 23 de março, suspendemos quase todas as atividades e fomos estabilizar a curva de ocupação dos leitos de terapia intensiva em 8 de abril, 15 dias depois, o que possibilitou depois reabrir. Tivemos uma grande reabertura em 20 de maio e 12 dias depois tivemos reflexo nas UTIs, que se manteve (com ocupação alta). Esses 12 a 20 dias é o tempo da pessoa contaminada circular, infectar outra pessoa. O vírus fica incubado cinco a sete dias até desenvolver a doença e depois, se agravar, mais sete dias. O que temos visto é que nenhuma reabertura é igual a outra. Reabrimos agora depois de longo período de restrição. Se tivermos impacto a partir deste fim de semana, podemos atribuir ao aumento da circulação, mas se não ocorrer isso, não significa que não teremos. Estamos trabalhando com esta semana e a próxima para dizer qual será o impacto da última abertura.
JC - O fato de ter mais pessoas com anticorpos reduz este ritmo de contaminação?
Stürmer - Os gráficos de projeção têm um desenho de um sino, com subida acelerada, estabilização, pico e redução. Este é o desenho de um agente infeccioso chegando a uma comunidade, contaminando e indo embora Mas isso é quando não se faz nada para mudar a história da doença, que não é o nosso caso. Fizemos muitas coisas, desde suspender reuniões, adotar medidas de higiene e até fechar atividades econômicas. Março tivemos decolagem da infecção, estabilizamos, reabrimos e voltou a subir. Não sabemos como está a contaminação. Mas não temos como ter certeza se a nova reabertura pode gerar mais um degrau de aumento.
JC - Se voltar a crescer, o que terá de ser feito?
Stürmer - Infelizmente, a única forma de reduzir a circulação do vírus de forma eficaz é restringindo a movimentação de pessoas. Se tiver escalada do novo coronavírus que ameace a assistência em saúde, precisamos considerar a possibilidade de retomar as restrições.
JC - O prefeito disse que, se continuar como está, voltaríamos ao "novo normal" em dois a três meses. Isso depende de quê?
Stürmer - Isso reflete a soma de dois fatores. Precisamos abrir de forma gradual, o que é preconizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), para ter maior controle sobre o avanço do vírus, e este é um período de exposição às pessoas e certo esgotamento dos mais suscetíveis. Com a desaceleração, atinge-se o pico, começa a reduzir.
JC - O senhor projeta quando seria o pico? Algumas estimativas falam em outubro.
Stürmer - Não arriscaria dizer quando é ou quando será o pico. Vários modelos preveem o pico há meses. A maioria deles vai errar porque tem um fator que não conseguimos medir que é o efeito da intervenção da sociedade, mudanças de contato e circulação. Sem saber como isso modifica essa curva, é difícil estimar o pico.
JC - Como o senhor percebe a reação das pessoas na atual volta às atividades frente às anteriores?
Stürmer - Tenho a sensação que esta está mais lenta e, ao mesmo tempo, que as pessoas estão muito mais cuidadosas. Depois de tanto tempo restrito, além do impacto na economia e na capacidade de manutenção dos negócios, as pessoas perceberam a gravidade da pandemia. No último pico e grande volume de casos em fim de julho, certamente todos tiveram algum conhecido no bairro onde residem ou colega de trabalho que adoeceu de forma mais grave ou até faleceu pela doença. Demos o primeiro passo de retomar, mas abrir à noite e nos fins de semana, pedido pelos setores, precisamos fazer com cuidado, pois vai gerar movimento. Sabemos que é importante, mas precisamos chegar lá com prudência e com a realidade da pandemia permitindo. Isso ainda exige mais alguns dias para avançar.
JC - A partir do aprendizado com essa crise sanitária desde março, o senhor diria que estamos passando pelo momento mais decisivo e que qualquer atitude agora vai definir como vamos encerrar o ano?
Stürmer - Nestes mais de 150 dias de pandemia, é o que mais fazemos diariamente, que é buscar o equilíbrio entre a assistência aos casos e outras demandas de cuidados. Temos dados preliminares que Porto Alegre é a capital acima de 1 milhão de habitantes que em 2020 teve menos mortes que em 2019. Esse é um resultado excelente que mostra o equilíbrio, pois não adianta dizer que somos a que teve menos óbitos por Covid-19, mas tivemos mais por outras causas. As vidas são vidas independentemente da doenças que estão se combatendo. Também estamos buscando o equilíbrio na economia que não afete a saúde. Este é o desafio diário que tem sempre de ter sensibilidade. Como integrantes do comitê do coronavírus nos apegamos tanto a dados, evitando crenças ou responder simplesmente para trazer as respostas que sejam as melhores para a cidade e o interesse público, que nem sempre é o de pequenos grupos.
Perfil
O médico de família e comunidade Pablo Stürmer, 37 anos, é casado com a médica endocrinologista Vanessa e pai de Bruno, com oito anos, e a pequena Beatriz, de dois anos. O porto-alegrense se graduou em Medicina na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) em 2006 e fez residência logo depois em Medicina de Família e Comunidade pelo Hospital Nossa Senhora da Conceição, do Grupo Hospitalar Conceição (GHC). Stürmer tem uma trajetória profissional na rede de Atenção Primária de Porto Alegre, logo após se formar, e atuou em seis das oito gerências distritais de saúde da Capital. Em 2010 e 2011, foi professor substituto do Departamento de Medicina Social da Ufrgs. Também foi consultor do TelessaúdeRS em dois períodos, entre 2009 e 2011 e entre 2014 e 2017. Stürmer assumiu como secretário municipal da Saúde, pasta da qual era adjunto desde 2017, em janeiro de 2019, depois da saída do ex-secretário e médico Erno Harzheim para atuar no Ministério da Saúde no governo de Jair Bolsonaro, do qual não faz mais parte.