"Um lugar ideal para pessoas sem frescura e atrás de diversão, na faixa dos 20 aos 40 anos", resumia o texto de um dos tantos guias da noite que circulavam na Porto Alegre da segunda metade da década de 1990, com seus roteiros recheados de sugestões - das modestas às sofisticadas. Pois essa havia sido justamente a ideia de três sócios ao criarem o Dr. Jekyll, um misto de bar, boate, espaço de shows e exposições inaugurado em 29 de outubro de 1996 no número 76 da Travessa do Carmo, borda da Cidade Baixa com o Centro Histórico, e que seria foco de convergência boêmia até fechar as portas, exatos 15 anos depois.
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De fato, a configuração geral se mantinha relativamente despojada desde a época em que os menos de 200 metros quadrados de área útil da velha casa de 1916 abrigavam os restaurantes com música ao vivo Tívoli 2 (1980-1981), com matriz na avenida Protásio Alves, e Pulperia (1982-1995), um dos redutos gaudérios da Capital. Essa simplicidade teria prosseguimento, mediante uma série de ajustes, após a chegada do trio de novos inquilinos, com trajetórias entrelaçadas e afinidades que incluíam a disposição para desafiar prognósticos de que o bairro não comportava mais uma casa noturna de sucesso além do Opinião, na rua José do Patrocínio.
Parceiros de infância na Vila Assunção (Zona Sul), o produtor cultural Paulo Audi e o instrutor de mergulho Maurício Pinto haviam retornado de temporada na Alemanha, trazendo na bagagem a experiência do trabalho em bares e algumas economias para investir em negócio próprio. A ideia inicial de uma empresa no ramo de turismo submarino não avançou e o radar se direcionou para o entretenimento noturno, motivando Audi a trazer para a sociedade o amigo e xará Paulo Pio, cria da Cidade Baixa e de larga quilometragem como dono do lendário bar Zellig (1985-2013), na rua Sarmento Leite. Cada qual teria contribuição decisiva já na largada do projeto.
O primeiro obteve empréstimo junto à irmã para completar o investimento - R$ 30 mil (R$ 200 mil em valores corrigidos), somados à mesma quantia tomada via financiamento. Do segundo veio o nome da casa, inspirado no livro The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde (O Médico e o Monstro), publicado em 1886 pelo escocês Robert Stevenson. A história do cidadão que vira outra pessoa após ingerir uma poção fazia sentido. "Apesar de ter ido eventualmente a bares quando mais jovem, nunca fui muito chegado à noite e quase não bebia, porque o álcool me transformava", diverte-se Maurício, 60 anos, hoje artesão forjador especializado em facas artesanais.
Credite-se ao terceiro elemento da tríade a descoberta do ponto a ser ocupado. "De carro, a caminho do Zelig, notei a placa de 'aluga-se' e uma reforma em andamento no lugar onde o Pulperia havia funcionado antes de sofrer um incêndio", conta Pio, 60 anos e morador da zona rural de Maquiné (Litoral Norte), onde mantém cabanas turísticas para locação. "Assumimos o espaço já recuperado, providenciamos nova instalação elétrica, ar-condicionado, mezanino com pista de dança e cabine para DJ com sistema de som caprichado, além de outras melhorias. Sabíamos que a empreitada tinha tudo para dar certo, mas não imaginávamos o quanto."
Um lugar cult, mas sem afetação
Sucesso desde a inauguração, Dr. Jekyll virou opção concorrida entre o público alternativo na noite da Capital
/ACERVO PAULO PIO/REPRODUÇÃO/JC
A definição de um perfil para o bar e boate Dr. Jekyll contou com a ajuda de um parceiro de primeira hora: o ator, cantor e compositor Antônio Carlos Falcão, amigo de ambos os Paulos e que, tempos antes, havia recorrido aos serviços de Audi na produção de uma das turnês do antológico espetáculo Maria Bethânia, a Doce Bárbara. Em seu apartamento na confluência da rua Marechal Floriano com Demétrio Ribeiro (Centro Histórico), a cinco minutos de caminhada até a futura casa noturna já sob reforma, improvisou-se durante um mês o escritório informal e laboratório de ideias, pragmáticas e criativas, em território neutro para os três sócios.
"Foi algo super espontâneo! Era maravilhoso receber o pessoal e eles também curtiam demais aquela junção, sendo que eu me valia da experiência como profissional de teatro e frequentador da noite para contribuir com sugestões. Obviamente, nem todas foram aprovadas, como a de fantasiar de criatura de Frankenstein um dos seguranças na recepção aos clientes durante a festa de abertura", rememora Falcão, 68 anos e ainda morador do endereço. "Mesmo tempos depois de encerrada essa etapa de encontros, meu telefone ainda tocava a todo momento, como se fosse um contato do próprio bar, com diversas pessoas pedindo informações sobre o Jekyll."
Tudo pronto, em 29 de outubro de 1996 - uma terça-feira - cerca de 250 pessoas (400, se considerado o entra-e-sai) esgotaram a lotação do novo point, atraídas por notas generosas nos jornais e anúncios na rádio Ipanema FM. O movimento se tornaria corriqueiro dali em diante, com filas pela Travessa do Carmo até a esquina com a José do Patrocínio, no embalo de atrativos certeiros: cerveja barata para os padrões da época, estacionamento gratuito no Largo da Epatur (renomeado Zumbi dos Palmares em 2002) e um dos melhores cardápios musicais da cidade, com altas doses de pop, rock e outros gêneros, em som mecânico ou com bandas ao vivo.
"Também havia uma galera órfã desde o aperto da repressão policial aos agitos do bar Ocidente e de outras casas no bairro Bom Fim, então, acabamos absorvendo parte da demanda, até porque nem todo mundo era alternativo o suficiente para curtir o Garagem Hermética (na rua Barros Cassal, entre Cristóvão Colombo e Independência), por exemplo, e para muitos o Opinião já não era exatamente uma novidade", acrescenta Paulo Pio. "Não por acaso, uma reportagem da Zero Hora nos colocou entre os 'herdeiros' dessa lacuna. E ainda tínhamos muitos contatos nos mais variados meios, o que serviu como gatilho extra a nosso favor."
Com sua planta-baixa similar à de uma caixa de sapatos, com 5 metros de largura por 20 de profundidade, pé-direito alto e praticamente sem divisórias, o empreendimento primava pela simplicidade também nos serviços, a cargo de uma equipe de 10 a 15 pessoas suando a testa de terça-feira a sábado. Da cozinha nem um pouco gourmetizada saíam apenas batata chips e picados de queijo, azeitona e salame, enquanto o balcão fornecia drinks e principalmente cerveja em garrafa long-neck, mediante contrato de exclusividade com fornecedor das marcas Brahma e Miller - no auge, a casa chegaria a vender 18 mil 'ampolas' por mês (média de 3,6 mil por noite).
Bastaram poucas semanas para que o Jekyll entrasse no mapa cult de universitários, artistas, profissionais de classe média e executivos. A própria clientela ajudou a moldar o esquema convencional com jeito de alternativo, focado em quem estava a fim de beber, dançar ou partir para a azaração em um ambiente sem a afetação que muitas vezes dava o tom em circuitos como Moinhos de Vento-Auxiliadora, mais elitizados. "A paquera acontece até nas escadarias que levam ao mezanino e à pista no segundo andar: o contato é inevitável e da espera pode nascer um bate-papo", observou o repórter de uma das edições do suplemento cultural Veja RS.
Som na caixa
DJs garantiam a ação na pista do Dr. Jekyll, intercalando novidades e clássicos do pop
/ACERVO MAURICIO PINTO/DIVULGAÇÃO/JC
A trilha sonora era outro item apreciado no Jekyll, cuja abertura dos trabalhos mais cedo (22h ou mesmo antes) proporcionava certa vantagem em relação à concorrência. DJ titular nos cinco primeiros anos, Gaudencio Orso entregava novidades e o melhor do pop das duas décadas anteriores. "A cabine de som (na porção maior do mezanino, ao fundo) ficava acima do bar e de frente para a pista, porém, de costas para o térreo, sendo depois transferida para a ponta próxima à entrada", explica Gaudêncio, 56 anos.
Ele adiciona um detalhe curioso: "A Luciana Pinto, irmã de um dos proprietários e que trabalhava na administração da casa, cursava Joalheria na unidade de Moda do Senac, ali pertinho, na Coronel Genuíno. Até aquele momento, eu só havia trabalhado na noite, então fui convencido a também me matricular. Um ano depois, virei professor na mesma unidade e segui carreira de ourives, que mantenho em paralelo à discotecagem".
Até 1998, a "jaula" tinha suas pick-ups ocupadas às sextas-feiras por Dante Longo, produtor de turnês do Nenhum de Nós. "Eu era desconhecido do grande público mas ali, fazendo aquele bico, recebia tratamento de rei", constata o profissional de 59 anos. "No início ganhei carta-branca para promover sessões especiais às terças-feiras, rodando muito soul, funk, acid-jazz, lounge e psicodelia. O conceito não atraiu tanta gente e mal chegou a durar uns três meses, mas, de qualquer forma, plantei a semente de uma ideia que depois daria muito certo no Zelig."
A fórmula do Jekyll seguiu em alta mesmo após a saída de Paulo Pio, em setembro de 1998, para dar maior atenção ao Zelig e à primeira de suas duas filhas. Ele seria sócio no Garagem Hermética pelos dois anos seguintes, antes de somar ao currículo a gerência do sítio-pousada de Renato Borghetti em Barra do Ribeiro e a abertura de outro bar na Travessa do Carmo, o Carmelita (2012-2019). Coube a Maurício e Audi segurar as pontas, em meio a concorrentes próximos - embora nem sempre diretos - como Opinião, 8 1/2 Bar (na Aureliano de Figueiredo Pinto), Pé Palito (na João Alfredo), InSano e Cult (Lima e Silva).
Empresários do ramo, aliás, visitavam (ou conferiam à distância) o Jekyll, tentando entender tamanha movimentação - até o rei da noite Pedro Melo (1954-2016) deu suas voltas de carro por ali. Êxito que Audi atribui ao calor humano: "O fato de todos se conhecerem e a presença dos donos no balcão fazia a diferença. Clientes que exageravam na bebida, por exemplo, eram entregues aos cuidados de um taxista parceiro nosso". Paulo Pio emenda: "Na fila do lado de fora, o pessoal recebia cerveja no verão e vinho no inverno".
Em um espaço com média de duas mulheres para cada três homens, as gurias se sentiam à vontade. Que o diga a bibliotecária Luciana Grings, 42 anos. Ela não só fez do endereço o seu preferido de 1998 a 2001 como descolou trabalho no caixa às sextas e sábados de seu último ano na faculdade. "Foi uma segunda casa para mim", emociona-se. "Ao trocar Porto Alegre pelo Rio de Janeiro depois de formada, eu trouxe camisetas, convites, adesivos e fotos, além de um dos quadros expostos no Jekyll, que pedi de presente. Só não guardei a coleção de guardanapos com telefones e cantadas que recebia no balcão."
Outra presença feminina constante, a atriz Raquel Alfonsin foi frequentadora do início ao fim, não raro aparecendo mais de uma noite por semana, no embalo da amizade com os irmãos Audi desde a infância na Zona Sul, do ambiente eclético e do espírito de descontração. “A gente bebia muita cerveja, fumava horrores (a proibição estadual à prática nesse tipo de ambiente é de 2009), passava o rodo nos ‘crushes’ e se acabava na pista de dança até alta madrugada”, gargalha, aos 52 anos. Seu aniversário de 27, aliás, foi comemorado na boate, com uma festa de música setentista e figurino temático disponibilizado pela casa em uma arara de roupas.
Segurança zen-budista
Tipos exóticos e festas temáticas eram duas das principais características da casa noturna
/ACERVO MAURICIO PINTO/REPRODUÇÃO/JC
O número 76 da Travessa do Carmo foi cenário de episódios pra lá de inusitados. Briga entre cadeirantes. Um cliente cego e gato que consultava a turma do balcão sobre a beleza das mulheres no entorno. A frequentadora que se aproveitou de um blecaute para tascar beijo na boca de um sujeito acompanhado, mas acabou denunciada pelo retorno da luz antes do previsto. O já setentão roqueiro carioca Serguei (1933-2019) palestrando na escada do mezanino após um show na casa. Estrelas da Rede Globo circulando pela casa como se fossem habituês, em folgas de gravação da minissérie A Casa das Sete Mulheres ou do filme O Homem Que Copiava (2003).
“Eu tava fumando perto do caixa quando uma guria me pediu cigarro. Era aquela atriz, a Luana Piovani, e ficamos ali conversando!”, corrobora o educador físico Marcelo Laranja, 48 anos. “Outra vez, fui convidado a me retirar por estar brigando com um cara, mas avisei que só sairia se ele também fosse expulso. Aí os seguranças me imobilizaram e esse cidadão se aproveitou para me chutar, mas deu tempo de soltar um dos braços e segurar a perna dele, que acabou arrastado comigo para fora, onde continuamos com algumas porradas. Mas no geral era tranquilo, tanto que conheci no Jekyll minha primeira noiva e também a segunda, com quem casei.”
De todos os personagens nos 15 anos da casa, o mais singular extrapola qualquer clichê: João Batista Bandeira, então integrante do Batalhão de Choque da Brigada Militar e que de 1998 a 2003 fez do trabalho na segurança uma oportunidade para praticar o zen-budismo. Hoje aos 57 anos e aposentado da polícia, ele atende por monge Dengaku, responsável pela comunidade Tai-Heieji, em São Francisco de Paula (serra gaúcha). "O Dr. Jekyll foi um portal de iluminação onde profano e sagrado se encontravam, e também confessionário no qual aprendi muito com pessoas incríveis, como os três sócios, por quem tenho muito carinho", resgata.
Ele prossegue: "À base de muito diálogo e empatia, felizmente jamais precisei usar a força para resolver conflitos. E foi com esse sentimento que escolhi a boate, em 2004, para a cerimônia oriental de meu casamento com Rosângela, ex-colega de colégio, massoterapeuta e que eu havia reencontrado quatro anos antes, ao organizar a fila do lado de fora da boate. Após o divórcio, continuamos juntos e hoje ela me acompanha no templo, como monja Shoden. Em minhas palestras, sempre menciono o exemplo do Jekyll como espaço de arte, sinceridade, encontros e alegria para quem soubesse aproveitar os momentos encantadores".
Palco movimentado
Palco improvisado do Dr. Jekyll foi, durante anos, um dos principais espaços para novas bandas do rock gaúcho
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A agenda de bandas era intensa. Maurício, que tocava a parte administrativa e publicitária com as irmãs Luciana e Patrícia em escritório locado a poucos metros do Jekyll, preserva uma clipagem de jornais que dimensiona a importância do pequeno palco improvisado na parte térrea, junto à porta de entrada. Em meio a nomes hoje obscuros, a lista contempla nomes fundamentais como Júpiter Maçã, Frank Jorge, Wander Wildner, James Liberato, Bebeco Garcia, Júlio Reny, Flu, Pedro Tagliani, Graforréia Xilarmônica e Rosa Tattooada. E então novatos como Ultramen, Video Hits, Pata de Elefante, Cachorro Grande, Bidê ou Balde, Apanhador Só e Sombrero Luminoso.
Distribuída em projetos semanais, a programação de música ao vivo atraía nos dias úteis um público que muitas vezes só ia embora sob relógios marcando 5h ou 6h, deparando com bancas montadas para a tradicional feira do Largo em frente à Epatur. Segunda-Feira Maluca, Juventude Transviada, Segunda Mutante, Pocket Literário, Movie Cartoon, Quinta Independente, Sarau Erótico, Jekyll Village Jazz foram alguns dos agitos, além das Segundas Irredutíveis – com shows de rock seguidos de bate-papo entre músicos, produtores, jornalistas e público. E muitas festas temáticas: Chalaça Glam, Noite da Corja, Baile Psicodélico e Rock Horror Picture Show e Mulher Solta Não Paga.
Dentre os eventos mais lembrados está A Festa do Bebê Monstro, que celebrou em grande estilo o primeiro aniversário de atividades da casa com megaevento no Armazém B do Cais, em 14 de novembro de 1997, uma sexta-feira. No pavilhão decorado por imensos painéis, mais de mil belas e feras sacolejaram com os DJs Gaudencio Orso e Dante Longo, mais o grupo norte-americano The Boogie Knights, especialmente “importado” de Los Angeles para um show repleto de covers de discomusic e outros hits retrô. “O pessoal foi à loucura”, testemunha o publicitário Marcelo Amaral, 49 anos. “Eu nunca tinha ido a uma festa tão boa em toda a minha vida.”
Espaço para a cultura
Paulo Audi (esq), Renato Morozolli e Maurício Pinto (dir) tomando uma dose de Captain Morgan
ACERVO MAURICIO PINTO/REPRODUÇÃO/JC
As mesmas paredes de pé-direito alto onde o povo se escorava de copos em punho para a charla e o flerte igualmente serviram a exposições e concursos de pintura, desenho, gravura, ilustração digital e cartum, em um esquema levado muito a sério pela organização. Com ampla divulgação por assessores como as jornalistas Sílvia Abreu e Vera Pinto, as mostras contavam com editais de seleção, prêmios em dinheiro e coquetéis de lançamento, balizando em nível a qualidade do material enviado por dezenas de candidatos, sob o crivo de um júri formado por integrantes do “staff”, especialistas do ramo e profissionais de imprensa.
Também serviu de ponto de vanguarda para eventos como saraus, workshops, sessões de autógrafos, intervenções teatrais, performances de dança, desfiles de moda (até maiô pintou na jogada), lançamentos de videoclipes e projeções de filmes – incluindo o primeiro festival independente Cine Esquema Novo, atualmente em sua décima-quinta edição. O espaço mobilizou, ainda, produtores e fãs de revistas alternativas e publicações de histórias em quadrinhos: o Dr. Jekyll editou um fanzine próprio, intitulado com o nome da casa e que em seu Nº 1 teve ilustrações do paulistano Angeli, um dos mais famosos cartunistas brasileiros.
Também serviu de ponto de vanguarda para eventos como saraus, workshops, sessões de autógrafos, intervenções teatrais, performances de dança, desfiles de moda (até maiô pintou na jogada), lançamentos de videoclipes e projeções de filmes – incluindo o primeiro festival independente Cine Esquema Novo, atualmente em sua décima-quinta edição. O espaço mobilizou, ainda, produtores e fãs de revistas alternativas e publicações de histórias em quadrinhos: o Dr. Jekyll editou um fanzine próprio, intitulado com o nome da casa e que em seu Nº 1 teve ilustrações do paulistano Angeli, um dos mais famosos cartunistas brasileiros.
Fim de papo
Dr Jekyll vive a perspectiva de reabrir as portas em um futuro não muito distante, no mesmo icônico local que ocupou durante 15 anos na Cidade Baixa
/ACERVO MAURICIO PINTO/DIVULGAÇÃO/JC
O desafio de manter uma casa noturna por tanto tempo esbarrou em múltiplos obstáculos. Para começo de conversa, Paulo Audi passara a engrossar a concorrência ao deixar o Dr. Jekyll para abrir, com seu gêmeo Cesar, o bar Cabo Horn (2007-2009), na Rua da República, antes do gerenciamento de lojas de brinquedos da irmã Débora em São Paulo e da montagem do pequeno Cine Café (2017-2020), também com o mano, na Travessa dos Cataventos da Casa de Cultura Mario Quintana. Ele ainda trabalharia com vendas para depois embarcar rumo à Alemanha, em julho passado, como produtor cultural de um grupo brasileiro de jazz.
Na condição de sócio remanescente da trinca original, Maurício Pinto manteve o Jekyll por mais dois anos, em meio ao desgaste pessoal e profissional por impasses burocráticos na tentativa de obter o alvará municipal definitivo - jamais concedido. "Trabalhávamos com liberação provisória do Corpo de Bombeiros, em uma lengalenga interminável com arquitetos, advogados, fiscais, dono do imóvel etc, sem que a situação avançasse", lamenta. "A prefeitura interditou a casa por dez meses, obtivemos liminar e reabrimos. Mas eu já estava de saco cheio e, com três filhas pequenas, em outubro de 2011 decidi dar um basta."
Ficou na saudade. Em crônica na edição do jornal Zero Hora de 25 de agosto de 2018, o jornalista David Coimbra (1962-2022) perguntou qual o teria sido o melhor bar da cidade. Ele próprio se encarregou de responder no mesmo texto, balizado por critérios assumidamente particulares e aqui parcialmente reproduzida: “Ah, o velho Doctor Jekyll está na minha lista (...). Uma noite, eu estava parado debaixo da onça (uma cabeça estilizada do felino, resquício de instalação artística mantido por longo período em uma das paredes do térreo) quando chegou uma morena e me disse, sem nem se apresentar. ‘Vamos sair daqui agora!’. Saí”.
A construção centenária passou a ser ocupada em 2012 pela cervejaria Malvadeza Pub, fundada cinco anos antes pelo empresário Marlon Muhlbach na vizinha rua João Alfredo e que permaneceria na Travessa do Carmo até migrar para o 4º Distrito (Zona Norte) no primeiro semestre de 2020, já com a pandemia de coronavírus a mil. Desde então, o imóvel de tantas contribuições à cultura musical e boêmia de Porto Alegre permanece à espera de novos capítulos, com direito a um elemento surpresa. Os detalhes ficam por conta de Paulo Audi, que revela em primeira mão um plano do qual ex-clientes e amigos mais chegados sequer desconfiam:
"Com o ponto novamente disponível, algum tempo atrás eu consegui investidor interessado em levar adiante meu plano de remontar o Dr. Jekyll exatamente no mesmo local. Mas uma visita à casa mostrou que todo seu interior estava bastante descaracterizado, exigindo um aporte de dinheiro acima do que calculei inicialmente. E como eu já havia engatilhado minha atual temporada de trabalho, em Munique, na Alemanha, deixei para pensar melhor o assunto, conversar com o Maurício Pinto e outras pessoas lá por abril ou maio, quando retornar a Porto Alegre". Esta notícia deve ser suficiente, por si só, para que muitos doutores voltem a virar monstros.
* Marcello Campos é formado em Jornalismo, Publicidade & Propaganda (ambas pela Pucrs) e Artes Plásticas (Ufrgs). Tem seis livros publicados, incluindo as biografias de Lupicínio Rodrigues, do Conjunto Melódico Norberto Baldauf e do garçom-advogado Dinarte Valentini (Bar do Beto). Há mais de uma década, dedica-se ao resgate de fatos, lugares e personagens porto-alegrenses.