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Teatro

- Publicada em 03 de Agosto de 2018 às 01:00

Denúncia e estética

Estreada durante o festival Palco Giratório deste ano, A mulher arrastada teve uma única apresentação, na semana passada, abrindo as atividades do projeto Cenas diversas, da Casa de Cultura Mario Quintana. O texto original, de Diones Camargo, baseia-se em caso real, ocorrido numa favela carioca, em que integrantes da PM balearam, ao que parece gratuitamente, uma mulher negra e, depois de colocar seu corpo no camburão, acabaram por arrastá-la por cerca de 350 metros, porque a porta do carro abriu e o corpo caiu, sendo arrastado pela viatura. O caso foi filmado por um anônimo, o vídeo foi parar nas redes sociais, causando revolta e comoção - houve procedimento judiciário, que deu em nada.
Estreada durante o festival Palco Giratório deste ano, A mulher arrastada teve uma única apresentação, na semana passada, abrindo as atividades do projeto Cenas diversas, da Casa de Cultura Mario Quintana. O texto original, de Diones Camargo, baseia-se em caso real, ocorrido numa favela carioca, em que integrantes da PM balearam, ao que parece gratuitamente, uma mulher negra e, depois de colocar seu corpo no camburão, acabaram por arrastá-la por cerca de 350 metros, porque a porta do carro abriu e o corpo caiu, sendo arrastado pela viatura. O caso foi filmado por um anônimo, o vídeo foi parar nas redes sociais, causando revolta e comoção - houve procedimento judiciário, que deu em nada.
O texto de Camargo pode ser aproximado ao chamado teatro pós-dramático. A personagem, já morta, dialoga com o público e relata, em flashback, o que ocorreu consigo. Mas a ação ganha uma presentificação e uma dramatização importantes na medida em que o contraponto do júri do soldado, acusado de ter disparado contra a mulher e sequestrado seu corpo, também se acha em cena, mas longe de se defender ou justificar, como afirma em certo momento, "não se arrepende de nada", pressupondo-se que faria de novo, como, aliás, parece que já teria feito antes. A estrutura da obra me lembrou o Brecht de A exceção e a regra, em que um comerciante acusado de ter assassinado um carregador chinês é inocentado porque, dizem os juízes, tratando tão mal a seus carregadores, seria normal que um deles decidisse matá-lo. Portanto o gesto inesperado do carregador, ao alcançar ao outro o odre, sendo interpretado como uma agressão que teria gerado o revide do comerciante e a morte do carregador, foi uma exceção que apenas confirmava a regra. Aqui, é a mesma coisa: mulher pobre, negra, carregando um saco com pães, num domingo pela manhã, numa viela da favela, seria uma exceção se não fosse uma meliante, e assim foi tratada e assassinada.
A direção de Adriane Mottola é simplesmente brilhante. E Celina Alcântara, vivendo a assassinada, tem seu melhor momento em toda a sua carreira, porque juntou à indignação da cidadã mulher negra a competência da atriz e a mão segura e firme da diretora, num desempenho impactante porque, ao mesmo tempo, emocionado e equilibrado, evidenciando as suas qualidades como intérprete, na movimentação corporal, no correto uso da voz, no movimento cênico. Pedro Nambuco, que vive o soldado, faz um contraponto tão humilde quanto eficiente, para o contraponto idealizado pelo dramaturgo e pela diretora.
O espetáculo, contudo, ganhou consistência com a contribuição de Felipe Zancanaro, na trilha sonora, criada à medida do amadurecimento do próprio espetáculo, e de Ricardo Vivian, na iluminação, que concentra fortemente a atenção do espectador nas personagens, apresentadas alternadamente em cena.
A cenografia de Zoé Degani completa essas intervenções decisivas para a qualidade final do trabalho: um espaço relativamente asfixiante, porque se reduz a uma mesa de crematório e um espaço entorno. A Sala Carlos Carvalho foi transformada num espaço de arena, o que faz com que nos sintamos num júri para julgar os acontecimentos. O soldado, contudo, raramente fica dentro do círculo, o que evidencia que ele e sua ação, em si, não estão em julgamento, porque fogem ao controle social (o que a peça pretende denunciar, mas sem maniqueísmo): o que concluímos e nos leva à revolta é justamente o fato de que a sociedade brasileira ainda enfrenta tais percalços e contradições. A polícia, que é necessária e deve agir em proteção ao cidadão, eventualmente é a grande responsável justamente por sua insegurança.
O impacto final do espetáculo - relativamente curto, menos de uma hora, mas suficientemente longo, porque dura toda uma vida (ou uma morte) - é fantástico. O público custa a sair do clima dramático para aplaudir. O espaço absolutamente lotado da sala ajudou a criar essa comunhão que só o teatro, quando bem feito, é capaz de criar. Um dos melhores momentos da cena porto-alegrense neste ano, sem dúvida. Teatro de combate, mas, acima de tudo, teatro.
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