A manhã era de sol e um vento fresco soprava do mar, amainando o forte calor que já fazia no Sul do Estado às vésperas do verão. Uma espécie de névoa invisível, porém, deixava o clima pesado naquele dia 12 de dezembro de 2016. Centenas de pessoas disputavam o ar quase irrespirável, contaminado pela revolta que circulava na entrada do Estaleiro Rio Grande.
Sem aviso, ao chegarem para cumprir seu turno, 3,2 mil trabalhadores foram demitidos. Outras dispensas já vinham acontecendo em todo o polo naval e havia suspeita de que um desligamento de grandes proporções era possível, mas ninguém queria acreditar que chegaria a tanto.
Homens choravam, gritavam ameaças, prometiam resistir. Era o fim de um sonho. O polo naval gaúcho, cujas promessas de prosperidade superavam as mais otimistas expectativas menos de dois anos antes, chegava ao fim de forma abrupta e traumática.
O que se viu em Rio Grande naquele fim de ano é um retrato acabado da desolação que ficou no lugar da esperança. Gente indo embora com uma pequena mala na mão, outras tantas fazendo enormes filas em busca das escassas vagas de emprego. O comércio e os serviços, apesar da proximidade do Natal, não comemoravam. Ninguém entrava nas lojas, comia nos restaurantes ou dormia nas camas dos hotéis. O que um dia não muito distante havia sido uma espécie de Eldorado, agora parecia uma cidade fantasma, estagnada e muito, muito amargurada.
Quatro anos depois, a cidade ainda se ressente dos tempos de abundância, mas a mágoa vai, aos poucos, ficando para trás. Novas perspectivas e projetos animam. A regra agora, no entanto, é a cautela: pode haver recuperação, mas a antiga pujança do polo naval nunca retornará na mesma proporção.
Pela cidade, todo mundo tem uma explicação para o fenômeno. Foi a corrupção descoberta pela operação Lava Jato, dizem uns. Foi o governo, que desistiu dos investimentos, afirmam outros. Foram as empresas, que desperdiçaram dinheiro, foi a falta de eficiência, foi a China, foi castigo divino. Compreender o curso daqueles intensos acontecimentos, porém, é mais complexo. "Um avião não cai por uma única razão. É uma confluência de erros e circunstâncias que levam a um desfecho fatal. Foi o que aconteceu aqui", explica o diretor do Arranjo Produtivo Local Marítimo (APL), Arthur Baptista.
Para explicar essa avalanche, é preciso retroceder ao começo dos anos 2000. Ativa no Brasil desde os tempos coloniais, a indústria naval passou a ser tratada oficialmente como uma questão de Estado a partir da criação da Lei do Fundo da Marinha Mercante, em 1958. O objetivo era recolher recursos, a partir da movimentação de cargas em águas e portos do País, para a recuperação, ampliação e renovação da frota mercante nacional. Um fundo milionário foi se formando ao longo das décadas, a partir do recolhimento do Frete para Renovação da Marinha Mercante, cobrado dos armadores.
Anunciada desde o início dos anos 2000, a intenção do governo federal de reativar a indústria de construção naval brasileira contou com a alteração, entre 2003 e 2004, da lei que destinava os recursos desse fundo, possibilitando seu uso no financiamento de estaleiros e na construção de plataformas de petróleo. Na prática, abriu-se um cofre abundante para financiar a construção de plataformas e embarcações de apoio para a exploração de petróleo em território nacional.
Outro conceito importante para entender o processo trata-se do conteúdo local. É a exigência de utilizar insumos, serviços e equipamentos produzidos no País, que os exploradores de recursos naturais, nesse caso o petróleo, precisam cumprir. A legislação foi alterada e os percentuais pularam de quase zero para mais de 80% em dois anos - o que demandou uma rapidez frenética da recém-nascida indústria local.
"Os consórcios que ganharam as licitações para a construção das plataformas não tinham experiência em construção para exploração de óleo e gás. O Brasil sequer tinha esse setor estruturado. Não havia mão de obra qualificada. As fusões com empresas estrangeiras, que poderiam aportar expertise, não deram certo justamente por essa baixa eficiência", relembra Baptista.
Sucesso de produção é conquistado em menos de uma década
Situação poderia ser revertida, afirma Danilo Giroldo
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Apesar das adversidades, não se pode dizer que o polo naval não deu certo. Apesar de alguns atrasos, foram entregues 10 plataformas em menos de uma década, algumas delas apenas montadas, outras construídas do zero. O maior de todos os contratos também foi o mais problemático, que acabou virando o símbolo do auge e do fim do polo.
Erguido para construir oito cascos replicantes (chamados assim em função do projeto, que é replicado no estaleiro para construir estruturas idênticas), o Estaleiro Rio Grande nasceu com um contrato de US$ 3,5 bilhões. Era o maior do tipo na história, nenhuma outra empresa do mundo havia assinado contrato semelhante.
A Petrobras precisava dos cascos para explorar as bacias do pré-sal e a Ecovix, braço de construções oceânicas da Engevix, era a responsável pela obra no estaleiro e pela entrega dos cascos. Constantes aditivos com a Petrobras para cumprir as exigências da licitação, baixa produtividade, falta de mão de obra especializada e atrasos constantes já sinalizavam, desde cedo, os problemas que viriam. Na segunda encomenda, a estatal passou a importar componentes da Ásia, para minimizar os atrasos. Ao final, somente quatro dos oito cascos previstos foram entregues.
Foi em 2014 que os problemas começaram a ficar mais evidentes, principalmente no ERG. Nesse mesmo ano, um fator externo ajudou a agravar ainda mais a situação: quedas bruscas no valor do barril de petróleo no mercado internacional corroíam os lucros e a capacidade de investimento da Petrobras. Segundo dados da Fundação Getulio Vargas, o segundo semestre foi de declínio acentuado: o barril, que custava US$ 114 em julho de 2014, despencou para US$ 46 em janeiro de 2015. Um ano depois, o barril chegou a valer US$ 27, derrubando a valorização da estatal e desestabilizando a previsão de investimentos.
No meio disso, as delações da operação Lava Jato chegavam cada vez mais perto dos diretores das empresas que atuavam em Rio Grande. Muitos investigados e alguns presos depois, o compliance das companhias se deteriorou, afugentando as parcerias com players internacionais, que seriam fundamentais para a aquisição de tecnologia e para o aprimoramento das operações. Ao mesmo tempo, investigações e denúncias apontavam má gestão, desperdício e sobrepreço. Era conversa corrente nas ruas da cidade anedotas como a descarte de discos de corte e equipamentos de solda praticamente novos, ou então o valor elevado que eventualmente se pagava por insumos ou serviços prestados no polo. A partir de 2014, as fontes de crédito foram secando na mesma medida em que as denúncias de corrupção avançavam.
O golpe fatal, porém, veio dos gabinetes governamentais. Pressionado pelos investidores que explorariam o pré-sal, o governo dá uma guinada na política de conteúdo local para a exploração de petróleo, que hoje não passa de 25%. Com a chegada de Michel Temer à presidência, ocorre uma mudança profunda no comando da Petrobras. Sob a batuta de Pedro Parente, a estatal encerra os contratos com os estaleiros brasileiros, transferindo para a Ásia a construção das plataformas e cascos pendentes e executando operações de leasing para alugar estruturas de outros países.
"A preferência da Petrobras por encomendar e afretar seus bens em estaleiros asiáticos e a drástica redução dos índices de conteúdo local dos contratos de exploração e produção de óleo e gás nas bacias de Campos e Santos, principalmente no pré-sal, foram decisivos para a paralisação tanto da indústria naval e offshore brasileira quanto de seus fornecedores", atesta o presidente do Sindicato Nacional da Indústria da Construção e Reparação Naval e Offshore (Sinaval), Ariovaldo Rocha.
Município conquistou avanços que permanecem
Onde antes havia mais emprego do que gente, agora há trabalhadores ainda tentando se recolocar. "Estamos sempre aguardando novos contratos, na esperança de que projetos possam minimizar o sofrimento de quem ficou sem nada. Ainda tem soldador profissional cuidando de carro no centro da cidade", afirma o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Rio Grande e São José do Norte, Benito Gonçalves. As cicatrizes, segundo ele, são visíveis e doloridas para quem enfrenta um custo de vida ainda alto, salários defasados e informalidade que só cresce.
A falta de planejamento não permitiu que a cidade se preparasse para o volume gigantesco de investimentos que ocorreu curtíssimo período. "O tempo de que precisávamos para treinar as pessoas e para preparar a estrutura da cidade era diferente do tempo da Petrobras. A consequência foi que a sociedade sofreu muito com isso tudo jogado de uma vez só. Injeção de dinheiro é bom, mas a retração é pior", comenta Arthur Batista, diretor do APL Marítimo.
Apesar do duro golpe, a cidade não ficou completamente estagnada, de acordo com o prefeito Alexandre Lindenmeye, uma vez que reteve avanços importantes, e que perduram. "Houve muitos investimentos que começaram naquela época e trouxeram ganhos importantes para a região, como a duplicação de rodovias, a criação do parque eólico e a ampliação da universidade federal", diz.
A construção civil se qualificou muito e o comércio se modernizou. A oferta de serviços também foi ampliada", destaca, ao alertar para a importância de seguir buscando alternativas para a utilização da estrutura do polo, o que pode trazer um crescimento ordenado para todas as cadeias no município.
Cicatrizes e sonhos que marcam as ruas
Movimentação no porto repercutia em todas as atividades econômicas, mas a derrocada atingiu em cheio o comércio
/Sadi Machado/Divulgação/JC
A metáfora do tsunami é frequentemente utilizada para descrever o começo e o fim do polo naval de Rio Grande. Um movimento que chegou de repente, transformou a dinâmica da cidade e desapareceu com a mesma rapidez, deixando atrás de si um rastro - quase sempre - de destruição. A cidade, que cresceu a uma média de 20% ao ano entre 2008 e 2014, segundo o IBGE, precisou lidar com a interrupção repentina desse ciclo.
O comércio local foi um dos setores mais impactados - para o bem e para o mal. Ao mesmo tempo em que ganhou muito com a chegada dos trabalhadores e com a injeção de recursos provenientes do polo, perdeu na mesma proporção com o fim abrupto.
"O comércio ficou desestruturado e até hoje não se recuperou. Saímos de uma circulação de dinheiro muito intensa para um cenário de desolação, de desemprego em massa. Falar do polo naval ainda é difícil para muita gente", afirma Carlos Zanetti, atual presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas de Rio Grande e que, na época, era proprietário da mais tradicional rede de lojas de material de construção da cidade. Depois de abrir duas filiais em função da demanda do polo, acabou fechando todas as unidades. "Em cinco meses, as vendas caíram 40%".
Um dos maiores dramas do comércio era a mão de obra, que ficou escassa do dia para a noite. Com salários muito mais altos, a indústria atraía a força de trabalho em massa. O supervisor de Marketing da rede de supermercados Guanabara, Luciano Canteiro, relembra que em 2013 a rotatividade de funcionários chegou a 70%.
"Um dos maiores investimentos é em treinamento. Conseguíamos manter uma base de 60% a 70% das equipes qualificadas, mas com uma rotatividade dessas, a coisa saiu do controle e tivemos muitos problemas. Chegava ao ponto de parar uma van na porta do supermercado para recrutar gente. Não tinha como competi", revela.
A situação começou a estabilizar em 2014, quando as contratações no polo diminuíram. A rede também enfrentou dificuldades para planejar os investimentos em estoque, já que não se sabia o quanto mais a cidade poderia inchar. No auge, estima-se que o polo naval tenha abrigado mais de 24 mil trabalhadores, a maior parte deles de fora da cidade. Essa migração intensa foi responsável por uma reviravolta no setor imobiliário, talvez o mais afetado. Empresário do ramo há 35 anos, Flávio Bastos viu seus negócios explodirem.
"Era muita gente que precisava se instalar. Os aluguéis bateram nas nuvens, chegava a 1,5% dos imóveis, até mais. O preço das casas mais do que dobrou", destaca. Os imóveis disponíveis na cidade foram adaptados para abrigar trabalhadores, mas não era suficiente. Quando não havia mais imóveis em Pelotas, as pessoas começaram a construir alojamentos, com a garantia de ocupação. Os investimentos foram altos, já que as instalações obedeciam regras do Ministério do Trabalho. O fenômeno se repetiu em quase todos os setores. Ainda se ouve histórias de gente que investiu o que tinha e perdeu tudo quando o polo naval acabou.
Retomada da atividade no Brasil depende da adoção de uma política industrial definida
Citando o exemplo da Noruega, que, depois de descobrir petróleo em suas águas, também estimulou a indústria local de construção naval, o vice-reitor da Furg, Danilo Giroldo, comenta que a retomada da atividade no Brasil pode ser extremamente positiva para a economia em muitos sentidos. Essa retomada, no entanto, depende da construção de uma política industrial definida, que preveja as muitas mazelas a serem enfrentadas no caso de retorno.
A concorrência com os países asiáticos, por exemplo, não pode ser medida somente em termos financeiros, mas deve considerar a compensação social que a atividade pode deixar nas regiões onde se instala. "Na época do polo, a cidade se transformou. Apesar dos problemas, houve uma melhora na condição de vida das pessoas. Os usuários de Bolsa Família, por exemplo, caíram em 35%. O PIB aumentou, a renda cresceu. Isso tem que ser levado em conta antes de mandar as obras para a China em busca de um preço final menor", enfatiza.
Quem conhece o assunto não hesita em cravar: qualquer passo em direção à retomada precisa passar por uma política industrial que preveja a exigência de conteúdo local para a exploração de petróleo. "A regra do conteúdo local deveria valer enquanto houver óleo para extrair das bacias brasileiras", destaca Arthur Baptista, diretor do APL Marítimo.
Para Giroldo, os percentuais estabelecidos abruptamente pelo governo foram exagerados e não contribuíram para um crescimento sustentável da cadeia - segundo ele, qualquer percentual acima de 40% de conteúdo local já viabilizaria a indústria nacional. Com potencial para reaquecer todo o segmento industrial gaúcho, o destino do polo naval é acompanhado de perto por lideranças, empresários e trabalhadores.
Denominado à época de "Nova Economia do Rio Grande do Sul" pela Fiergs, seu fechamento afetou de maneira direta e indireta todo o setor industrial, pela extensa cadeia de fornecedores que vinha se expandindo. "Sempre defendemos que as políticas industriais devem ser de longo prazo, pois há necessidade de planejamento. Também defendemos um patamar de conteúdo local compatível com as características de cada segmento em relação ao mercado internacional", completa o coordenador do Conselho de Infraestrutura (Coinfra) da Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (Fiergs), Ricardo Portella Nunes.
Um sopro de esperança vem da margem oeste da Lagoa dos Patos, do município de São José do Norte. Lá está o EBR, estaleiro cuja construção começou quando o polo naval já estava em produção, mas que não fechou completamente com o cancelamento dos contratos da Petrobras. Apesar dos reveses, a empresa nunca ficou ociosa, o que tem permitido o funcionamento ininterrupto da estrutura.
Na primeira semana de dezembro, uma notícia encheu de alegria quem está em busca de trabalho: o estaleiro abriu 100 vagas de emprego temporário para soldador. São 30 vagas para soldador de estrutura e 70 para soldador de tubulação de ligas especiais - ambas funções que exigem conhecimento técnico específico e experiência. O EBR ainda não confirma qual projeto absorverá esses profissionais, mas já se sabe que os salários ficam entre R$ 3,5 mil e R$ 4 mil.
Região pode crescer ao aproveitar estruturas
Fernando Estima diz que estaleiros fazem parte de um arranjo econômico
/MARCO QUINTANA/JC
Trazem melancolia as cenas do embarque das peças e chapas de aço vendidas como sucata pela Ecovix desde 2017. A matéria-prima para a fabricação das plataformas P-71 e P-72 já estava comprada, estocada no Estaleiro Rio Grande, quando os contratos foram rompidos.
A venda, então, faz parte do processo de recuperação judicial iniciado no final de 2016, para sanar as dívidas da empresa. Os embarques seguem até hoje, e ainda há muito aço a ser vendido. Mas essa não é a única alternativa para as gigantescas estruturas que dormem à margem da Lagoa dos Patos.
Recentemente, a possibilidade de um contrato para a construção de um navio de apoio antártico no Estaleiro Rio Grande animou quem há muito espera por uma oportunidade. A Ecovix, no entanto, não se pronuncia sobre o andamento das conversas com a empresa chilena que seria parceira na empreitada. Enquanto a atividade metalúrgica não retorna, o Porto de Rio Grande utiliza o cais do ERG para embarcar gado vivo e produtos florestais.
"Ajustamos com a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antac) para utilizar a estrutura do Estaleiro, que é muito boa, tem capacidade para dois navios simultâneos e possui um calado de 14 metros, enquanto o calado do porto público, por exemplo, é de 10,5 metros. Já embarcamos 21 navios pelo ERG até agora", comenta o superintendente do Porto de Rio Grande, Fernando Estima.
Representante do governo do Estado nas conversas sobre a reativação do polo, Estima diz que há atividades promissoras, como a utilização da estrutura do ERG para reparos em grandes embarcações e também para a desmobilização de plataformas de petróleo, ou seja, o desmanche da estrutura ao final da sua vida útil.
O Porto também participa de um diálogo entre a QGI e outras empresas contratantes para a fabricação de módulos de plataformas. Caso essa negociação não avance, o Estado deve solicitar a área de volta, com base no interesse portuário. Há ainda o EBR, localizado em São José do Norte, que ao contrário das estruturas em Rio Grande, segue em operação, em fusão com a Toyo Setal.
Em 2018, entregou a P-74 com 84 dias de antecedência, eficiência que valeu reconhecimento internacional ao estaleiro. Outra possibilidade é aproveitar as instalações para a indústria metalúrgica, na fabricação de grandes estruturas como pontes e caldeiras.
"Hoje, Rio Grande se caracteriza por ter uma economia do mar consolidada, com o terminal de contêineres, os embarques de celulose, as fábricas e terminais de fertilizantes e a indústria naval. Os estaleiros não vão ser mais o centro de tudo. Vão ser parte de um arranjo econômico voltado para as potencialidades da cidade, que tem vocação marítima. Isso será melhor para a cidade e para as empresas", afirma Estima.
Entenda a trajetória do polo naval de Rio Grande
2003
A Agência Nacional do Petróleo passou a alterar as rodadas de exigência de conteúdo local para a exploração de petróleo nas bacias brasileiras. O percentual, no início, era próximo de zero. Nas rodadas 5 e 6, entre 2003 e 2004, já variavam de 30% a 70%. Da rodada 7 em diante, a partir de 2005, esses percentuais partiam de 37% e podiam chegar a 85%, o que gerou uma demanda gigantesca para a indústria nacional.
2004
Diante do ambiente favorável à retomada da indústria de construção naval para o setor de óleo e gás, o conglomerado norueguês Aker anuncia a construção de um grande estaleiro em Rio Grande, ao custo estimado de US$ 100 milhões e com o objetivo de fabricar até 22 navios petroleiros para a Petrobras. O governo do Estado chega a liberar a área no Porto, mas o negócio não se concretiza e a Aker desiste do investimento.
2005
Um ano depois nasce a QUIP, fusão das empresas Queiroz Galvão, Ultratec e Iesa, criada especialmente para operar no ainda embrionário polo naval da cidade. Sob muita desconfiança das lideranças locais, a Petrobras garante o projeto da P-53 para Rio Grande em dezembro e as obras no cais começam.
2006
No início do ano, uma área de 200 mil metros quadrados que sediava uma antiga fábrica de fertilizantes foi cedida para o primeiro canteiro de obras do polo naval. Os primeiros cursos de capacitação começam a ocorrer, mas ainda com pouca eficiência. Trabalhadores começam a chegar de todas as partes do país. Em agosto, enquanto os módulos da P-53 são fabricados na Quip, começa a construção do Estaleiro Rio Grande, a obra monumental que até hoje é o símbolo da pujança do polo. A empresa WTorre comanda um orçamento de R$ 840 milhões.
2007
No final deste ano, o navio petroleiro Setebello chega à área do polo para ser convertido no casco da plataforma P-53. A estrutura veio de Cingapura e seria lembrada como um marco para a cidade e para o Estado. Era a conclusão do primeiro projeto do polo naval gaúcho, que nascia.
2008
Um ano depois de ter atracado em Rio Grande, a P-53 deixava a barra da Lagoa dos Patos rumo ao Campo de Marlim Leste, onde opera na extração de petróleo até hoje.
2010
Em outubro, ocorre um dos momentos mais emblemáticos da história do polo naval rio-grandino, com a visita do então presidente Luís Inácio Lula da Silva para a inauguração do Estaleiro Rio Grande. A Petrobras acertou a encomenda de oito cascos replicantes, que somavam US$ 3,46 bilhões. A WTorre então vende o ERG-1, que passa a ser administrado pela Ecovix Construções Oceânicas, subsidiária da Engevix Engenharia.
2011
O ano começa com o anúncio do investimento de cerca de R$ 1 bilhão a ser feito na cidade vizinha de São José do Norte pela Estaleiros do Brasil (EBR). Na área de 1,5 milhão de metros quadrados, o estaleiro teria capacidade para processar 110 toneladas de aço por ano e sediaria a construção das plataformas P-74 e P-76. A P-74 seria entregue em fevereiro de 2018, com 84 dias de antecedência, e a P-76 foi produzida no Paraná. O estaleiro segue em operação.
2012
O casco da P-55 é rebocado desde o Estaleiro Atlântico Sul, em Pernambuco, até Rio Grande, para receber os módulos. Essa seria a primeira plataforma semissubmersível totalmente fabricada no Brasil. A operação de içamento foi inédita no mundo, erguendo 17 mil toneladas a uma altura de 52 metros. Ainda neste ano, a Petrobras anuncia encomenda de três navios-sonda para exploração de petróleo em profundidades de até 10 mil metros, em um contrato estimado em US$ 2,36 bilhões. Para atender a demanda, Ecovix acelera ampliação do ERG e começa a construção de um novo pórtico, que nunca chegaria a ser concluído.
2013
O ano começa com a chegada do casco da P-63 a Rio Grande, vindo da China, para ser reconvertido em plataforma. Neste momento, a P-58 e a P-63 ficam atracadas lado a lado. De muitos pontos da cidade, é possível ver as colossais estruturas sendo montadas no cais.
2014
O ano começa com problemas em toda a indústria de construção naval brasileira. A P-66, montada em Rio Grande, se encaminhava para registrar um ano de atraso e alguns módulos da P-67 já haviam sido encomendados da Ásia, para evitar ainda mais complicações com prazos. Pela primeira vez, a Petrobras sinaliza a possibilidade de repassar encomendas para estaleiros fora do país em função por problemas de ineficiência. Em julho, a então presidente da Petrobras, Graça Foster, visitou Rio Grande para fiscalizar o trabalho no polo. Apesar do clima de incerteza, o mês de dezembro começa com a retirada do casco da P-66 do dique seco do Estaleiro Rio Grande, uma operação de engenharia naval que repercutiu em todo o mundo. É o primeiro casco replicante da série de oito plataformas que seriam produzidas inteiramente no Brasil, para a exploração das reservas do pré-sal, na Bacia de Santos. Logo após a saída da P-66, começaram as primeiras demissões. Dos oito cascos, somente quatro foram concluídos.
2015
Deflagrada no ano anterior, a Operação Lava Jato começa a chegar nos proprietários das empresas responsáveis pelo polo naval, que foram acusados de desvio de recursos e de pagamento de propina. No mesmo período, o petróleo entrou em um ciclo de desvalorização intenso no mercado internacional, o que desestabilizou as contas e a projeção de investimento da Petrobras. Nesse cenário, ocorreram as primeiras suspensões de contrato. No final do ano, apenas 9 mil trabalhadores circulavam pelos estaleiros – em 2013, eram 24 mil. Ainda no primeiro semestre, a Petrobras rompeu o contrato para a construção das plataformas P-75 e P-77 com a QGI, em função de aditivos aos contratos originais pedidos pela empresa.
2016
As suspeitas de desvios de recursos apontados pela Operação Lava Jato seguem atingindo em cheio as empresas ligadas ao polo naval de Rio Grande. Diretores da Ecovix são presos e operação identifica possíveis desvios de US$ 5 milhões na construção da P-53. A crise internacional do petróleo segue, com a desvalorização constante do barril. No segundo semestre, a Petrobras rompe o contrato de US$ 10 bilhões com a empresa. O poderoso Estaleiro Rio Grande agora acumulava uma dívida de R$ 6 bilhões e a empresa que o administrava pedia recuperação judicial. Não demorou muito para se concretizar a dantesca cena da demissão em massa de 3,2 mil trabalhadores.
2017
O golpe definitivo no setor veio em março, com a decisão do governo federal de alterar os percentuais obrigatórios de conteúdo local para a exploração de óleo e gás nas bacias brasileiras. No lugar de um complicado sistema que especificava o percentual de cada item, o Ministério de Minas e Energia anunciou uma simplificação que reduzia o índice exigido na exploração para 18%; na construção do poço para 25%; no sistema de coleta 40% e nas plataformas 25%. Estava aberto o caminho para a construção das plataformas e demais embarcações no exterior a um custo mais baixo para a Petrobras.
2018
Inicialmente contratada para ser construída no Estaleiro QGI, a P-75 foi feita no estaleiro chinês Cosco por determinação da Petrobras. Somente sua finalização foi executada em Rio Grande. No entanto, a estrutura nem chegou a atracar. Foi finalizada em alto mar por cerca de 200 trabalhadores. Neste mesmo ano, as estruturas das P-71 e P-72, cujas obras já tinham iniciado, começam a ser vendidas como sucata depois do rompimento dos contratos.
2019
Programada para ser construída em Rio Grande, entra em operação a P-77, para a exploração de óleo e gás no Campo de Búzios, no pré-sal da Bahia de Santos. Como a P-75, esta também foi feita na China.
2020
O Porto de Rio Grande utiliza a estrutura do cais do ERG para embarcar gado vivo e produtos florestais ao mesmo tempo em que participa das negociações para um possível aproveitamento da área da QGI, esvaziada em 2015. Novas possibilidades surgem, como um possível contrato para a construção de um navio de apoio antártico, mas nenhum contrato foi assinado ainda. Nenhum trabalhador foi recontratado.
* Patrícia Lima
Jornalista, mestre em Literatura pela Ufrgs. Em 2016, editou, sob a coordenação do professor Luís Augusto Fischer, as crônicas das séries Inquéritos em contraste e Temas gastos, de Simões Lopes Neto, para o livro Inquéritos em contraste, publicado pela Edigal.