Na semana seguinte à aprovação de quase tudo na Assembleia Legislativa, o governo de Eduardo Leite (PSDB) no Rio Grande do Sul está de olho em mudanças que podem tornar o acordo da dívida com a União mais factível. A expectativa é que a lei do Regime de Recuperação Fiscal (RRF) ganhe mais itens que poderiam ser elencados nas metas para zerar o déficit e mais prazo, passando de seis para dez anos, aponta o secretário estadual da Fazenda, Marco Aurelio Cardoso.
O alongamento estaria bem encaminhado, segundo Cardoso, representando uma transição "mais suave" entre o período sem pagamento da dívida e o retorno da conta, que ganha o acréscimo anual de parte do que não foi pago. O passivo alcançou R$ 66,9 bilhões em fim de 2019. O Estado não paga o débito desde agosto de 2017, graças a uma liminar do Supremo Tribunal Federal (STF) que suspendeu a quitação. A grande torcida de Cardoso e de áreas do governo é que seja autorizada a inclusão do impacto de R$ 70 bilhões, em valor presente, que a reforma previdenciária reduz em aportes do Tesouro. "Essa cifra é dez vezes maior que o valor da participação do Estado no Banrisul", compara o secretário.
Jornal do Comércio - Qual é o balanço que o senhor faz das votações e impactos para as finanças?
Marco Aurelio Cardoso - Foi um momento histórico para o Estado. É um conjunto de reformas bastante amplo e necessário. A questão previdenciária é a mais séria. Conseguimos fazer uma reforma muito alinhada com a do governo federal para os civis. Nos militares, alinhamos condições para as aposentadorias e o debate de ter alíquota previdenciária diferente ou não, que ficará para um momento a seguir. Nos estatutos, o Rio Grande do Sul terá alinhamento com mudanças que a União fez para seus servidores há mais de 10 anos, e no estatuto do Magistério, acabamos com o acúmulo ou contingência que estava crescendo R$ 7 bilhões ao ano. É uma reforma para o longo prazo. Não estamos procurando soluções tampão, mas deixar uma herança para esta e as próximas gerações. O fato dos valores terem sido menores que a meta inicial faz parte de uma reforma tão ampla.
JC - A questão dos militares vai ser encaminhada este ano?
Cardoso - Conseguimos aprovar na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) tempos, idade e condições de aposentadoria dos militares. Não conseguimos colocar em votação o PL da alíquota, hoje de 14% para ativos e a mesma para inativos que recebem acima de R$ 5,8 mil. A ideia era replicar as alíquotas aprovados em dezembro para os civis. Os dois segmentos pagam a mesma alíquota há muito tempo e queremos que permaneça. A receita seria da ordem de R$ 250 milhões por ano (em abril começam a entrar R$ 50 milhões da cota dos civis). A defesa contrária a esta proposta é de que se deve migrar para as alíquotas federais adotadas para os militares das Forcas Armadas, que seria de 9,5% lineares este ano e 10,5% a partir de 2021. Este é um tema que provavelmente será judicializado. Entendemos que o Estado tem autonomia federativa para estabelecer suas próprias alíquotas. Confirmando essa condição na Justiça, teremos espaço para voltar com o PL à Assembleia. Acreditamos que este tema não deverá tomar muito tempo (da Justiça) porque não há como ficar nesta incerteza por muito tempo. As pessoas precisam saber sobre qual alíquota terão de contribuir.
JC - O Estado vai entrar com a ação?
Cardoso - Isso está sendo avaliado pela Procuradoria Geral do Estado (PGE). Há a possibilidade de o Estado judicializar, pois existe uma instrução normativa da Secretaria da Presidência da República determinando que os estados passem se adaptem à tabela federal. Além disso, espera-se questionamentos das associações e dos próprios militares que podem entender que devem pagar 9,5%, em vez de 14% da tabela dos civis. É uma contenda judicial que uma das partes provocará. A base do governo na Assembleia fez a ponderação de que, diante da insegurança sobre o tema, não seria prudente votar nessa convocação extraordinária. O governo entendeu os argumentos, mas isso não significa que o projeto não continuará de pé.
JC - Qual é o impacto do que acabou sendo aprovado, já que houve as mudanças para o Magistério e o recuo em relação aos militares, para as finanças do Estado?
Cardoso - Será em torno de R$ 18 bilhões de redução na despesa em dez anos, em vez do valor inicial de R$ 25 bilhões, pois houve a revisão no plano dos professores, que trouxe reajustes, a alteração nas alíquotas previdenciárias dos civis e emendas parlamentares que mexeram em vantagens. Mas ainda temos as alíquotas dos militares para serem esclarecidas.
JC - Como e onde o governo vai buscar recursos para cobrir o “déficit” entre o projetado inicialmente no plano e o que deve ser obtido? São R$ 7 bilhões afinal ...
Cardoso - Esse plano é uma parte do que o Estado precisa fazer. O impacto continuará para além de uma década. Temos outras medidas em andamento, como as receitas de privatizações, reforma tributária e a revisão dos incentivos fiscais. Teremos de refazer o cenário do RRF. Tudo isso tem de ser compensado de alguma maneira. A previdência tem suas restrições. Fomos no limite que a lei federal permite. Podemos controlar o crescimento do quadro de pessoal, mas não podemos reduzir salários. O grande gol era controlar o avanço das despesas para a frente.
JC - Sobre o RRF: as leis foram aprovadas, atendendo a itens para aderir. O que acontece agora?
Cardoso - A aprovação é importantíssima, pois não temos apenas propostas, temos leis. O tempo que está levando para entrar no regime gera amadurecimento e o ajuste vai avançando. Isso tudo facilita a negociação com o governo federal. Vivemos certa expectativa se haverá uma reforma ou não da lei do RRF. A União e o Congresso trabalham com a expectativa de alteração, passando para um horizonte de dez anos, em vez dos seis anos atuais. Parece haver uma intenção do governo de que as novas adesões já sejam nas novas condições. Ao longo de fevereiro, vamos nos reunir com o Ministério da Economia, além de conversar com o parlamentares e outros estados. Se, de fato, o caminho for de alongar o prazo, vamos refazer o plano já com as novas obrigações e as alternativas que a nova lei eventualmente ofereça.
JC - Mais quatro anos é melhor para o Rio Grande do Sul e qual seria o impacto?
Cardoso - Seria melhor sim, pois a transição seria muito mais suave do que seis anos para pagar a dívida. Para o Estado, seria adicionar 10% na quitação, o que, em valores de 2019, quando se deixou de pagar R$ 3,5 bilhões, seriam R$ 350 milhões anuais. Uma coisa é começar a pagar esse valor daqui a cinco anos ou seis anos e outra em dez anos. O aprendizado que o regime tem dado até aqui é de que, talvez, o prazo seja curto e a oscilação seja um pouco bruta, pois expõe muito o estado. Imagina em um ano de recessão, com queda de receita, como seria para honrar o compromisso? O alongamento como um todo é bom. Embora se pague um pouco mais no início, tem uma transição mais suave. A Secretaria do Tesouro Nacional (STN) deve mexer em outras coisas, deixando o RRF mais adequado como um todo.
JC - O que mais pode mudar?
Cardoso - Pode aumentar a lista de medidas e o que pode ser flexibilizado na hora de apresentar. A atual regra elenca seis a sete possibilidades, e o estado pode indicar que vai cumprir seis. Uma lista geral para todo mundo congela muito. Portanto, esperamos que a lista mude e se possa compensar um item com outro.
JC - No caso do Rio Grande do Sul, o que poderia ser mais interessante?
Cardoso - A inclusão da Previdência, que hoje não faz parte da lista de medidas obrigatórias. O resultado atuarial (quanto o Tesouro do Estado deixará de aportar para cobrir aposentadorias e pensões ao longo dos anos trazendo para o valor presente) da reforma previdenciária aprovada na Assembleia é da ordem de R$ 70 bilhões, valor que inclui as novas alíquotas para os militares. Essa cifra é dez vezes maior que o valor da participação do Estado no Banrisul. Se for possível, será um reconhecimento do que é mais sustentável para o Estado: ter uma economia dessas ou uma receita extraordinária (como venda de um ativo)? Defendemos que isso seja reconhecido no plano.
JC - A lista de exigências do RRF atual tem a privatização de bancos...
Cardoso - Está na lista, mas pode ter dispensada, mas para isso tem de provar que as outras medidas apresentadas compensam aqueles valores e zeram o déficit. Faz parte das medidas obrigatórias. Mas pode ter ampliação dessa lista, dando flexibilidade para não ter de cumprir todas.
JC - A inclusão da Previdência tiraria de cena a pressão pela venda do banco, devido ao potencial de receita?
Cardoso - Da forma como a lei está escrita, quando se dispensa um item de privatização, precisa fazer a compensação do valor, como ter de quitar precatórios no período ou como vai devolver os depósitos judiciais. Isso cria uma amarra dentro do plano que dificulta o número final ser fechado. Se a forma de compensação puder trazer outros cálculos, como o atuarial da Previdência, vamos poder demonstrar que o efeito será muito maior daquilo que eventualmente se dispense, como a venda do Banrisul. Mas tudo são especulações, pois não há ainda nenhum projeto de mudança no Congresso.
JC - Como está sendo feita a articulação do governo para obter essas mudanças?
Cardoso - Congresso, governo federal e estados têm interesse em aprovar o Plano de Promoção do Equilíbrio Fiscal (PEF), que compõe o Projeto de Lei Complementar 149/2019, cuja base é o plano Mansueto (Mansueto de Almeida, secretário do Tesouro Nacional). O que se pretende é fazer emendas. Imagino que o governo federal tem interesse que a lei do regime funcione.
JC - O valor dos precatórios também terá de ser equacionado?
Cardoso - Essa questão dos precatórios não é como a gente trata do tema no RRF, mas como faz para resolver o pagamento. Só podemos colocar no acordo o que vamos fazer, portanto não adianta colocar algo que é impossível. O Rio Grande do Sul conseguiu em 2019 um feito histórico. Pela primeira vez, novas inscrições de precatórios foram menores do que as baixas. Mesmo mantendo o pagamento de 1,5% da Receita Corrente Líquida (RCL), cerca de R$ 600 milhões ao ano, conseguimos abater mais R$ 1 bilhão por meio das compensações de dívida ativa. Mesmo com tanto esforço, é impossível pensar que vamos conseguir pagar R$ 15 bilhões mais o que ainda vier até 2024. Tem uma emenda que passou no Senado estendendo o prazo até 2028, que, para o Rio Grande do Sul, ainda é pouco, melhora, mas não resolve em definitivo. Também precisamos que sejam incluídos todos os precatórios, não só os de Pessoa Jurídica. São dívidas que queremos pagar, mas que hoje é inviável, pois seria quase que uma prestação da dívida com a União de uma hora para outra. Temos liminar no STF para não sofrer novos sequestros. Estamos trabalhando para amortizar os precatórios de outra forma que não sacando do caixa. Os estados precisam se articular para encontrar uma solução. Ou a União terá de fazer um financiamento para cobrir estes recursos.
JC - Como está o plano para rever os incentivos fiscais?
Cardoso - O cronograma está em andamento. Este semestre teremos questões relacionadas à receita tributária.
JC - Vai ter de estar no RRF?
Cardoso - Está dentro da lista, como medida.
JC - Qual é a perspectiva de colocar em dia o pagamento dos servidores?
Cardoso - É cedo para falar se vamos pagar em dia. O Estado tem déficit. O desafio é equilibrar os salários do ano. Para resolver o passado, dependemos de reforço de caixa.
JC - Se sair a revisão da lei do RRF, o acordo pode sair no primeiro semestre? Havia a ideia de antecipar os recursos da venda da CEEE, projetados em R$ 2 bilhões.
Cardoso - A privatização da CEEE está avançando, pois já temos os consultores do BNDES formatando o processo. A expectativa de venda é entre julho e setembro, que garantiria recursos até o fim do ano. Eventual adiantamento de crédito da venda vai depender dos prazos. Se ficar muito perto do leilão, talvez não valha a pena. Sobre a adesão, a extensão de seis para dez anos não é complicada, depende mais da agenda legislativa do que de cálculos.