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Reportagem Cultural

- Publicada em 05 de Outubro de 2023 às 18:56

Humberto Gessinger, em todos os cantos de um mundo redondo

Perto dos 60 anos e lançando novo álbum solo, Humberto Gessinger fala de sentimentos renovados e novas (e velhas) melodias

Perto dos 60 anos e lançando novo álbum solo, Humberto Gessinger fala de sentimentos renovados e novas (e velhas) melodias


EVANDRO OLIVEIRA/JC
Porto Alegre, 13 de setembro, quarta-feira, 16 dias antes do show de Humberto Gessinger no Auditório Araújo Vianna.
Porto Alegre, 13 de setembro, quarta-feira, 16 dias antes do show de Humberto Gessinger no Auditório Araújo Vianna.
Num café no bairro Bela Vista, próximo do apartamento do músico, eu pergunto: Qual tua expectativa para o show? "Tocar em casa sempre é especial. No Araújo Vianna, mais ainda! Vivi momentos incríveis da minha vida naquele palco e naquelas arquibancadas. Tocando e ouvindo. Assim, sempre passa um filme na minha cabeça quando toco lá. É especial também por ser o primeiro show com cenário da nova turnê e talvez o único com a participação da formação completa, com dois trios e um quarteto. Para o setlist, vou mesclar composições novas com as do repertório antigo: cinco músicas do disco novo ao lado de músicas que são clássicas para quem acompanha meu trabalho".
Porto Alegre, 2 de outubro, segunda-feira, três dias depois do show de Humberto Gessinger no Auditório Araújo Vianna.
Por escrito, Humberto Gessinger responde como foi a recepção ao seu trabalho mais recente: "Superou em muito a expectativa. Eu já sabia que os ingressos estavam esgotados há dias e que estavam vendendo o espaço para quem se dispusesse a ficar em pé. Mas eu não esperava que o pessoal estivesse conhecendo as músicas do disco novo tão bem. Toquei seis novas músicas, o que hoje em dia é um número grande, e todas foram superbem aceitas. Outra surpresa positiva foi a participação dos dois trios e do quarteto. Tinha medo de que soasse meio 'festival', com demora nas trocas, ou que houvesse um certo estranhamento na jam que estava programada para o fim do show. Que nada! Rolou tudo muito redondo".
Foi assim, entre a expectativa e a euforia, que Humberto Gessinger viveu a última quinzena de setembro. Nesse meio tempo, conversamos - ao vivo, por telefone, por WhatsApp e por e-mail - e o resultado está nesta entrevista, tanto revelando sentimentos atuais, como o reencontro com seu público, quanto recordando velhos assuntos, como as parcerias, novas e antigas. E mais: Humberto ainda lembrou a carreira no Engenheiros do Hawaii, a vida em Porto Alegre e as constantes viagens para shows, a distância da única filha, que vive em Estocolmo, na Suécia, e a proximidade dos 60 anos.
"Eu sempre vejo minha carreira como um fluxo contínuo, vários capítulos de um mesmo livro", diz. "Apesar de saber que 'novidade' é uma palavra tida como sagrada no nosso ambiente", explica Humberto - ou 1berto, como ele costuma assinar nos últimos tempos, acrescentando que, em relação ao seu método de compor, ele continua produzindo da mesma forma. "Agora escrevo menos e acho que escrevo melhor - ao menos me satisfaço mais". E completa: "Do ponto de vista formal, aprofundei neste novo trabalho os formatos com os quais já vinha trabalhando: um power trio e um trio acústico. E coloquei um novo quarteto em duas canções".
Sobre os arranjos e a preocupação com o resultado sonoro, Humberto relata que estas são ideias fixas que ele tem, em especial por sempre pensar que isso parte do compromisso de levar as músicas para estrada. "É onde mora a vida real. Por isso, tenho interesse em formatos mais compactos, como trio e quarteto. Não me seduzem as facilidades que um estúdio oferece", constata. E conclui: "Gosto da limitação humana".
 

Em busca da renovação constante

Humberto Gessinger: "Eu vejo minha carreira como um fluxo contínuo, vários capítulos de um mesmo livro"

Humberto Gessinger: "Eu vejo minha carreira como um fluxo contínuo, vários capítulos de um mesmo livro"


EVANDRO OLIVEIRA/JC
Foi durante também esse curto intervalo da segunda metade de setembro que Humberto Gessinger lançou nas plataformas Quatro Cantos de Um Mundo Redondo, quarto disco de inéditas da sua carreira solo. O trabalho vem no formato que mais agrada a Humberto, com as composições integradas, como se formassem um bloco único. "Nunca me senti muito à vontade lançando singles. Sempre me pareceu que, ao escolher uma música para ficar em primeiro plano, estava, na verdade, deixando as outras para trás. Por isso, resolvi lançar as canções no streaming em partes, divididas apenas pelo formato em que foram gravadas".
No material de divulgação que preparou para falar sobre o novo disco, Humberto reconhece a dificuldade de ser objetivo ao falar de um trabalho inédito, pois, durante quase todo o tempo de elaboração e de produção, os sentimentos vão se misturando aos atos. "Humberto é um grande compositor, antenado, bem informado e com um humor próprio. E na carreira solo, ele seguiu a mesma trilha de sucesso que já havia demonstrado à frente dos Engenheiros do Hawaii", atesta o jornalista Juarez Fonseca, que acompanhou a trajetória de Gessinger desde o início, em meados da década de 1980.
"Mais do que longe demais das capitais, ou do eixo Rio-São Paulo, Humberto Gessinger passou ao largo do perfil do roqueiro exagerado. Desde os primeiros discos dos Engenheiros do Hawaii, ele mostrou ter uma pena afiada, talento como compositor e intérprete no campo do pop rock. Esteve no mesmo patamar de seus contemporâneos dos anos 1980, incluindo gente que partiu cedo como Cazuza e Renato Russo", avalia o crítico musical Antônio Carlos Miguel, que, como repórter do jornal O Globo, acompanhou e registrou toda a evolução do rock brasileiro feito nas décadas finais do século passado.
Em sintonia com que os dois críticos acreditam, Humberto nota que sua produção musical é uma renovação constante, acompanhada de seguidas surpresas. "Há muita emoção envolvida". E perguntado se o presente o faz bem, ele admite. "Estou onde eu gostaria de estar nesse momento da minha carreira: nos quatro cantos de um mundo redondo".
Aliás, canto aqui, inclusive, pode ter um triplo sentido. O primeiro é o de ponto, superfície ou linha de convergência, um ângulo ou uma quina; o segundo, como o de um local retirado, um recanto; e o terceiro, por final, teria a ver com o ato de produzir sons musicais utilizando a voz, variando a altura de acordo com a melodia e o ritmo. Assim, muito disso pode se refletir tanto na escolha das parcerias, quanto na opção pelos locais de gravação.

Novos parceiros, velhas parcerias

Quatro Cantos de Um Mundo Redondo saiu no final de setembro

Quatro Cantos de Um Mundo Redondo saiu no final de setembro


FERNANDO BARTMANN/DIVULGAÇÃO/JC
Em sintonia com estes aspectos artísticos e pessoais, Humberto fala: "Sete das dez músicas, eu compus no último ano". Além destas, existem duas músicas que ele já havia escrito há mais tempo. Sobre a mais recente, Humberto detalha: "Escrevi Fevereiro 13 para minha filha, Clara, que foi estudar em Estocolmo".
Clara acabou ficando por lá, arranjou emprego e se casou com um sueco, o que obriga Humberto e a mulher, Adriane Sesti, a irem pelo menos uma vez por ano visitar a filha. "Quando as coisas começaram a se encaminhar profissional e emocionalmente para a Clara na Suécia, comecei a estudar a cultura escandinava e fiquei fascinado". Mas, apesar da admiração pelo país nórdico - "Uma civilização que compreende bem como é viver de forma coletiva" -, ele descarta qualquer possibilidade de mudança: "Acho que seria muito difícil morar longe da língua materna."
O novo disco traz duas novas parcerias no currículo de Humberto. A primeira com Roberta Campos e uma outra com Nando Peters, que toca baixo no trio acústico. Humberto também gravou AEIOU, uma canção de Bebeto Alves (que faleceu em novembro do ano passado) e que ele considera figura fundamental para música gaúcha feita a partir dos anos 70. Nesta nova versão, Humberto convidou dois amigos – dele e de Bebeto – para participar da gravação, Duca Leindecker, nos vocais, e Marcelo Corsetti, na guitarra. “Essas músicas compõem o primeiro bloco de lançamento. Elas traçam uma linha interessante entre passado e presente, cidade e mundo. Pouca Vogal e AEIOU”, diz Gessinger.
Marcelo Corsetti vê pontos de confluência entre os trabalhos de Humberto Gessinger e o de Bebeto Alves. “Ele foi um grande parceiro, um incentivador e um divulgador de muito do que Bebeto produziu e, por tabela, o que nós do Blackbagual, fizemos”, conta, recordando que a proximidade surgiu em 2009 quando foi feito o documentário sobre Bebeto, Mais uma Canção. “Ele sempre esteve presente em nossa história, dividindo as composições e o palco no Milonga Orientao e, às vezes, simplesmente nos prestigiando, num canto da plateia, como um ouvinte atento”.
“O Humberto é genial, fora da curva. Um cara que sabe escolher as notas e as palavras, dentro e fora de suas canções, como ninguém”, elogia Duca Leindecker, que nos últimos anos sempre esteve próximo de forma pessoal e artística de Humberto. “Tive a sorte de formar um duo com ele e compartilhar ideias e soluções musicais, sempre aprendendo muito”. Duca também destaca o que considera mais importante nessa troca musical. “Acho que o mais legal da nossa parceria é valorizar as nossas diferenças abrindo espaço para o melhor de cada um. Sou muito grato pela sua amizade e generosidade”.
Em outra linha, Juarez ressalta ainda que Humberto soube ampliar seus horizontes musicais, buscando pontos de contato com artistas que pareciam distantes, como os músicos Luiz Carlos Borges e Renato Borghetti. “Dessa maneira, ele manteve os admiradores daquele tempo das bandas de rock e conseguiu criar um novo público”.
“Para mim, ele sempre foi um ídolo. O Humberto tem um aspecto que talvez nunca tenha sido totalmente reconhecido, o grande instrumentista que ele é. Desde os primeiros momentos, lá com os Engenheiros, ele já se mostrava um cara com uma visão musical acima do nível estabelecido no mundo em que circulava”, elogia Corsetti, lembrando que depois de sete anos de convites Humberto aceitou gravar uma música instrumental em seu disco de 2022. “Foi uma grande alegria, pois eu não buscava o cara que é uma estrela, e sim o grande contrabaixista/guitarrista/ gaitista/pianista/violeiro que ele é”.

Entre a tecnologia e a emoção

Capa de A Revolta dos Dândis, da banda Engenheiros do Hawaii

Capa de A Revolta dos Dândis, da banda Engenheiros do Hawaii


RCA/REPRODUÇÃO/JC
Fevereiro 13 foi gravada no Estúdio Atlantis, em Estocolmo, local que se destaca pela excelência no cenário dos estúdios europeus. Já gravaram lá, além dos suecos ABBA, Roxette, Opeth e The Hives, nomes como Elvis Costello, Scorpions, Green Day e Lenny Kravitz. "Em um mesmo take, cantei e toquei violão, captando a sonoridade maravilhosa da sala em um único e clássico microfone. Depois, complementei com baixo fretless e órgão Hammond", ressalta o músico, revelando todo seu espanto e felicidade com o resultado. "Cruzei um oceano para gravar de forma minimalista, como no século passado, com um microfone que certamente já estava na ativa antes de eu nascer", afirma, fascinado.
Ao mesmo tempo que se deslumbra com a qualidade e com os avanços técnicos – “Eles ainda têm os equipamentos da era analógica e uma câmara de eco famosa. Fazia todo o sentido gravar lá” – Humberto não deixa que esses aspectos superem a emoção. “Sempre que se está em um estúdio bacana, há o risco de se deixar levar pelo lado técnico, mas optei por gravar como se fazia em priscas eras: violão e voz captados por um mesmo microfone clássico, uma relíquia. Simples e efetivo. A música fala de um sentimento que é atemporal. A gravação também foi”.
 

Infinita highway

Gessinger (em foto de 2007) diz que, como artista, ainda se sente com 21 anos

Gessinger (em foto de 2007) diz que, como artista, ainda se sente com 21 anos


IVO GONÇALVES/ARQUIVO/JC
A banda Engenheiros do Hawaii foi formada no início de 1985 e permaneceu na ativa por mais de duas décadas, com exceção de um pequeno intervalo entre o final de 1996 e o início de 1997. Em abril de 2008, foi anunciada uma "pausa por tempo indeterminado". Em todos estes anos, Humberto Gessinger foi o único membro a permanecer em todas as formações da banda (mais de 15 músicos passaram pelo grupo) e a participar de todos os discos lançados (mais de duas dezenas). No total, os Engenheiros venderam mais de 3 milhões de discos. A trajetória da banda foi esquadrinhada há sete anos pelo jornalista Alexandre Lucchese no livro Infinita Highway - Uma Carona com os Engenheiros do Hawaii. Gessinger diz que não leu o livro.
"Continuo escrevendo, tocando e cantando como sempre fiz e continuo agrupando pessoas para tocar minhas canções na estrada", conta Humberto, confirmando que, como artista, se sente ainda com 21 anos: "Mas agora tenho mais 38 que se somaram a eles".
"Engenheiros do Hawaii foi a única banda gaúcha que, de fato, teve notoriedade nacional ao longo do tempo, lotando grandes ginásios por todo o País", garante Juarez Fonseca. Foi uma das três grandes bandas do rock brasileiro, com vários shows e discos de sucesso. Uma banda importante e com música boa".
Para Antônio Carlos Miguel, Humberto, sem a aura de rebelde e sem apelar para factoides, se mantém em alta, mesmo que, assim como o que restou da geração do rock brasileiro, esteja fora da grande mídia. O músico pensa parecido. "Deixando de usar o nome Engenheiros do Hawaii, senti uma perda de glamour deliciosa, que me fez muito bem".
 

Sessenta anos

Gessinger: "Não tento fingir que estou por dentro do que está rolando"

Gessinger: "Não tento fingir que estou por dentro do que está rolando"


EVANDRO OLIVEIRA/JC
Filho de Huberto Aloysio Gessinger e de Casilda Nilsa Minatti, Humberto nasceu na véspera do Natal de 1963, em Porto Alegre. Segundo de quatro irmãos (dois homens e duas mulheres), Humberto estudou no Colégio Anchieta, um dos mais tradicionais de Porto Alegre, onde o pai lecionava. "Ele primeiro dava aulas de Latim, que deixou de fazer parte do currículo, passou para o Francês, que também saiu do currículo, até se dedicar ao ensino de Português", lembra, completando que, como o pai era funcionário da escola, ele nem podia participar de bagunças e/ou matar aula. Huberto não chegou a ver a carreira artística - faleceu vítima de leucemia em 1978 - mas já sabia dos interesses musicais do filho, tão variados que iam de José Mendes a Os Incríveis, do sucesso Era um Garoto Que como Eu Amava os Beatles e os Rolling Stones.
Agora, Humberto - casado com a namorada de faculdade, com quem vive desde 1984, e com uma filha, Clara - está prestes a completar 60 anos. Próximo da nova idade, ele mantém velhos hábitos, como acordar cedo, trabalhar em casa e compor bastante. "Não tenho uma rotina, tampouco uma técnica, mas como a letra surge de maneira mais fácil, quase sempre eu priorizo a parte musical".
Humberto não gosta de sair, nem de viajar, embora esta última atividade tome bastante do seu tempo por causa das obrigações profissionais - nos últimos dias, ele tocou em Belo Horizonte, em Belém do Pará e em Teresina. Continua se interessando por literatura, lê bastante, autores como Herman Hesse, Moacyr Scliar, Mario Vargas Llosa e Gabriel García Márquez. E não se assusta com a nova idade. "Me sinto bem, até porque o mundo também envelhece. O corpo apresenta algumas limitações, mas isso não me angustia", resigna-se, lamentando o fato de não poder se dedicar mais à prática do tênis.
O passar dos anos, inclusive, lhe deram serenidade e uma capacidade de fazer e ouvir apenas o que é de seu interesse, em especial Joni Mitchel, Caetano Veloso e Bob Dylan. "Eu sempre fui muito desinformado. A diferença é que, mais velho, isso não me incomoda mais. Não tento fingir que estou por dentro do que está rolando".
 

Discografia deHumberto Gessinger

Longe Demais das Capitais, estreia de Gessinger com os Engenheiros do Hawaii

Longe Demais das Capitais, estreia de Gessinger com os Engenheiros do Hawaii


RCA/REPRODUÇÃO/JC
Com os Engenheiros do Hawaii
1986 - Longe Demais das Capitais
1987 - A Revolta dos Dândis
1988 - Ouça o que Eu Digo: Não Ouça Ninguém
1990 - O Papa É Pop
1991 - Várias Variáveis
1992 - Gessinger, Licks & Maltz
1995 - Simples de Coração
1997 - Minuano
1999 - Tchau Radar!
2002 - Surfando Karmas & DNA
2003 - Dançando no Campo Minado

Álbuns ao vivo
1989 - Alívio Imediato
1993 - Filmes de Guerra, Canções de Amor
2000 - 10.000 Destinos ao Vivo
2004 - Acústico MTV
2007 - Acústico: Novos Horizontes

Com Pouca Vogal
2008 - Pouca Vogal: Gessinger Leindecker
2009 - Ao Vivo em Porto Alegre

Carreira solo
1996 - Humberto Gessinger Trio
2013 - Insular
2019 - Não Vejo a Hora
2023 - Quatro Cantos de Um Mundo Redondo
 

* Márcio Pinheiro é jornalista e escreveu os livros Esse Tal de Borghettinho e Rato de Redação - Sig e a História do Pasquim.