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reportagem cultural

- Publicada em 02 de Fevereiro de 2023 às 19:03

Clóvis Duarte, de professor de curso pré-vestibular a lenda da televisão gaúcha

Conhecido por programas como PortoVisão e Câmera 2, Clóvis Duarte teve trajetória marcada pela disposição para inovar

Conhecido por programas como PortoVisão e Câmera 2, Clóvis Duarte teve trajetória marcada pela disposição para inovar


/ACERVO PESSOAL VANESSA DUARTE/REPRODUÇÃO/JC
Há exatos 35 anos entrava no ar o Câmera 2. O formato era por demais conhecido e aplicado por diversos canais da TV brasileira: um programa de debates - com ênfase em temas atuais, em especial ligados à política e à economia - tendo um âncora como condutor e/ou entrevistador e contando com a participação de comentaristas e convidados. Um programa com estes ingredientes, mais o foco em temas regionais, vinculados ao Rio Grande do Sul, obteve do público uma boa recepção quase que imediata. O Câmera 2 era ainda o ápice da trajetória do professor e comunicador Clóvis Duarte, um dos nomes de destaque da TV feita no Estado.
Há exatos 35 anos entrava no ar o Câmera 2. O formato era por demais conhecido e aplicado por diversos canais da TV brasileira: um programa de debates - com ênfase em temas atuais, em especial ligados à política e à economia - tendo um âncora como condutor e/ou entrevistador e contando com a participação de comentaristas e convidados. Um programa com estes ingredientes, mais o foco em temas regionais, vinculados ao Rio Grande do Sul, obteve do público uma boa recepção quase que imediata. O Câmera 2 era ainda o ápice da trajetória do professor e comunicador Clóvis Duarte, um dos nomes de destaque da TV feita no Estado.
O Câmera 2 surgira como uma aposta. Sem modelo definido, sem pesquisas prévias, o programa começara a nascer um ano antes de sua estreia, em janeiro de 1988, quando, em 1987, Clóvis largara um quadro de sucesso e com repercussão na RBS TV - onde iniciara a carreira na década anterior - para aceitar um convite para se mudar para a TV Guaíba, menor, menos estruturada e quase sem ibope.
Num primeiro momento, Clóvis apostou no formato conhecido, o do Comunicação, quadro que já mantinha no Jornal do Almoço. Porém, logo depois, ele passaria a pensar num outro horário - a então pouco valorizada faixa das 22h - e na ampliação da proposta jornalística, com debates e entrevistas.
A TV Guaíba, inaugurada em março de 1979 por Breno Caldas, diretor da Companhia Jornalística Caldas Júnior, não tinha qualquer afiliação com outras redes nacionais e investia numa programação local com enfoque em jornalismo, esporte, culinária, variedades e cultura. Pouco antes de Clóvis ter ido para lá, a Caldas Júnior havia falido e o conglomerado jornalístico havia sido adquirido pelo empresário Renato Bastos Ribeiro, até então um profissional sem nenhum vínculo com a comunicação. "O Clóvis fez uma proposta de compra do espaço com liberdade editorial. A direção topou. Daí o Clóvis começou a convidar jornalistas, políticos e professores para integrar a bancada do novo programa", lembra Antônio Hohlfeldt, hoje diretor do Theatro São Pedro e, à época, jornalista e vereador em Porto Alegre eleito pelo PT. "Eu fui escalado para falar de cultura em geral, especialmente literatura. Neste espaço nunca falei de política", lembra Hohlfeldt. "Quando isso acontecia, eu mudava de figurino, ia de terno e gravata. Aí era o político, o vereador, que estava falando, não comentarista".
A proposta deu certo. O Câmera 2 começou a ocupar espaço na programação e crescer na audiência. O Comunicação foi deixado de lado e Clóvis passaria se dedicar à grande criação profissional de sua vida. E também assumiria por completo a sua nova profissão: comunicador.
 

Das aulas para a TV

Antes da televisão, Clóvis Duarte destacou-se à frente de curso pré-vestibular

Antes da televisão, Clóvis Duarte destacou-se à frente de curso pré-vestibular


/ACERVO PESSOAL VANESSA DUARTE/REPRODUÇÃO/JC
Se o Câmera 2 foi o seu mestrado em comunicação, Clóvis fez o ensino básico em matéria de falar com o público nas salas de aulas dos cursinhos. Gaúcho de Porto Alegre, Clovis Nogueira Duarte da Silva - no próximo dia 6 de fevereiro ele completaria 81 anos - era o mais velho dos três filhos de Alfredo Duarte da Silva Filho, pelotense e funcionário por toda uma vida da Shell, onde chegou a gerente de Vendas, e de Geni Nogueira da Silva, rio-grandina e dona de casa. "Moramos na antiga Padre Cacique até 1953, em Londrina em 1954, em Curitiba em 1955 e 1957, e voltamos para Porto Alegre, onde moramos na rua Xavier Ferreira e depois na Coronel Bordini", lembra Sérgio Nogueira Duarte, professor de Português e caçula dos três irmãos. "Nós três estudamos no Colégio Farroupilha. Clóvis sempre foi bom estudante. Competitivo e sempre aluno de destaque".
Formado no início dos anos 1960, Clóvis foi um dos fundadores, em 1964, do curso pré-vestibular IPV. "Nunca soube o porquê de sua opção por Biologia", diz Sérgio. Já José Fogaça, ex-senador e ex-prefeito de Porto Alegre, amigo próximo de Clóvis, arrisca uma explicação: "Sua disciplina era a Biologia. A estrutura do DNA havia sido recentemente descoberta, em 1953, e em 1962, os cientistas que desvendaram esse grande enigma da vida humana haviam recebido o prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia. Nessa época, Clóvis era estudante e a Genética tornara-se, sem dúvida, o seu fascínio". E completa: "Mais tarde, como professor, na sala de aula, viria a encantar seus alunos com essa paixão".
Clóvis e Fogaça se conheceram no início da década de 1970, quando o futuro prefeito entrou para o quadro de professores do IPV. "O cursinho funcionava no edifício Annes Dias, quase na esquina da Salgado Filho. Eu tinha recém-concluído o curso de Direito na PUC e aguardava que chegasse à idade mínima para o concurso à magistratura, que era meu projeto de vida. No IPV, convivi com quatro diretores muito especiais: Joaquim Felizardo, Amílcar Loureiro, Enéias de Souza e Clóvis Duarte", enumera.
 
 

Anúncio no jornal do IPV, junto do colega e amigo José Fogaça

Anúncio no jornal do IPV, junto do colega e amigo José Fogaça


REPRODUÇÃO/ACERVO PESSOAL
A sala de aula foi o primeiro habitat de Clóvis. E domando turmas em salas imensas, às vezes com mais de cem alunos, Clóvis, ao natural, foi obtendo destaque. Tinha como virtudes a agilidade, a energia e - óbvio - a capacidade de se comunicar com clareza e de manter a atenção dos estudantes. "O IPV tinha um sistema chamado 'ibope', que fazia uma avaliação mensal dos professores. Clóvis estava sempre entre os mais bem pontuados. Dar aulas exigia uma habilidade enorme, quase um malabarismo, entre giz e microfone. Ai do professor que não tivesse um grande preparo para o desgaste físico de voz e movimentação sobre o tablado", recorda Fogaça. "O professor Clóvis era um craque em todos esses quesitos. Ele havia desenvolvido uma noção muito precisa a respeito dos nós que deviam ser didaticamente desatados no mosaico de conhecimento que os alunos traziam do ensino médio".

Tamanha capacidade de comunicação ganharia uma nova dimensão no começo dos anos 1970. "Havia o costume de os professores comentarem os gabaritos depois das provas, em entrevistas para as emissoras de rádio e TV que acompanhavam e cobriam o vestibular", lembra Fogaça. "Entre tantas dessas entrevistas, uma delas foi com a Tânia Carvalho na então TV Gaúcha - que ainda não se chamava RBS. Numa entrevista, Tânia pediu que déssemos uma aulinha-relâmpago. E nós demos".

O sucesso foi instantâneo. Nem bem haviam concluído a aula, desce o diretor, adentra o estúdio e, entusiasmado com a ideia e com a experiência, propõe que aquelas pequenas aulas se tornassem semanais. "De repente, do nada, Clóvis e eu viramos professores de TV", diz Fogaça. "Sabe isso que hoje tem às centenas de milhares no Youtube? Pois é, foi isso que fizemos no programa por um bom tempo, sem saber bem como fazer, inventando um jeito lá ao nosso modo", acrescenta. "O gosto pela comunicação surgiu com o sucesso dos programas sobre o vestibular. Ele e o Fogaça se destacaram", completa o irmão Sérgio.

Jornal com a cara de Porto Alegre

Clóvis Duarte, Programa Porto Visão, 1974

Clóvis Duarte, Programa Porto Visão, 1974


/ACERVO PESSOAL VANESSA DUARTE/REPRODUÇÃO/JC
Um quadro, inserido no roteiro do Jornal do Almoço, com temas restritos, acabou se tornando pequeno para o que Clóvis desejava explorar. A ideia dele era ter um programa maior, com assuntos variados e foco local. A TV Gaúcha não tinha espaço em sua programação, então o jeito foi procurar outra emissora: a Difusora, a tevê dos padres capuchinhos de Caxias do Sul, que era afiliada da TV Bandeirantes, de São Paulo. A intenção era criar um concorrente ao Jornal do Almoço, um programa que iria ao ar ao meio-dia, seis vezes por semana. Começava a surgir o PortoVisão.
A essa altura, Clóvis Duarte já havia abandonado os cursinhos. "Dar aula me exigia tempo integral. E como a aula não começa nem termina quando bate o sinal, eu tive que optar. Além disso, naquela época, o Salimen Júnior, a quem considero como o meu grande padrinho, convidou-me para montar um programa", contou Clóvis em uma entrevista concedida em 2003.
Fogaça lembra: “Clóvis convidou inicialmente algumas pessoas para constituírem a base inicial do programa. Tânia Carvalho, que era a grande estrela da televisão no Rio Grande do Sul; Sérgio Jockymann, o grande e inesquecível autor de peças do teatro de costumes e cronista, que fazia enorme sucesso com sua coluna na Folha da Manhã e na Zero Hora; o Cascalho, Antônio Carlos Contursi, que explodia na Rádio Continental, a revolucionária rádio jovem de Porto Alegre; o José Antônio Daudt, que havia adquirido grande notoriedade como jornalista apontando falhas e erros da administração pública na prestação de serviços aos cidadãos; e Renato Pereira, um humorista. Clóvis me pediu para levar à nossa primeira reunião de trabalho dez sugestões de nome. Escrevi 10 propostas numa folha de papel, mas nove foram totalmente desprezadas. Uma acabou escolhida por unanimidade: o programa se chamaria PortoVisão”.
O fator local foi decisivo para o sucesso do programa, com o PortoVisão levando à tela da temas eminentemente locais. "Nosso desejo era fazer um contraponto à absoluta predominância de programas de Rio de Janeiro e São Paulo", conta Fogaça.
"Com o PortoVisão formamos um grupo muito unido que nunca se separou, até porque o Clóvis fazia questão de organizar encontros na sua casa para que todos conversassem e trocassem opiniões e ideias", diz Tânia Carvalho. "Mesmo assim, eu e ele tivemos algumas discussões, tanto na época do PortoVisão, quando depois no Câmera 2".
O PortoVisão durou pouco, mas todo aquele período de dificuldades no enfrentamento com a censura e com a dura missão de manter no ar um programa independente deram a Clóvis Duarte experiência e conhecimento para que ele se sentisse capaz de investir num programa que tivesse ainda mais a sua cara. Clóvis voltaria para uma nova passagem pela RBS TV, mas o Câmera 2 parecia já estar em seus planos.
 

Um palanque eletrônico

Leonel Brizola e Clóvis Duarte se cumprimentam nos bastidores do programa Câmera Dois, da TV Guaíba, em 1988

Leonel Brizola e Clóvis Duarte se cumprimentam nos bastidores do programa Câmera Dois, da TV Guaíba, em 1988


/ACERVO PESSOAL VANESSA DUARTE/REPRODUÇÃO/JC
A partir de 1989, ano da primeira eleição presidencial no Brasil depois de quase três décadas, o Câmera 2 assumiria um protagonismo como um importante programa de debates políticos do Rio Grande do Sul. Pela bancada da TV Guaíba passariam todos os principais candidatos à presidência da República, aí incluídos nomes como Lula (PT), Mário Covas (PSDB), Paulo Maluf (PDS), Leonel Brizola (PDT), Ulysses Guimarães (PMDB) e o vencedor daquele pleito, Fernando Collor de Mello (PRN). Com este último, inclusive, houve uma curiosidade: sua presença no programa foi solicitada pela mãe do candidato, Leda Collor de Mello, que pelas raízes gaúchas conhecia Clóvis Duarte e sugeriu a entrevista à produção do Câmera 2.
Além dos presidenciáveis, o programa recebia ainda outros nomes expressivos da política do Rio Grande do Sul, como os governadores Alceu Collares (PDT), Pedro Simon e Antônio Britto (ambos do PMDB) e mais senadores, deputados, prefeitos e secretários de estado. "O Clóvis tinha uma capacidade incrível de agregar talentos e de fazer um debate fluir com força e naturalidade", destaca Felipe Vieira, âncora do BandNews TV e muito próximo de Clóvis nos últimos anos de vida do comunicador. "Aprendi e usei no Jornal Gente na Bandeirantes o método que ele desenvolveu de 'girar a mesa' e de 'quebrar o assunto'. Ele era mestre. Quando algo estava se estendendo muito, ele sabia como fazer, mudando a pauta e não deixando o ritmo cair."
Antes dos debates do Câmera 2, Clóvis já havia estado mais próximo da política. Em 1982, amparado no bom currículo que havia construído como professor de cursinho e comunicador, Clóvis aceitou o convite do velho amigo José Fogaça para concorrer. Naquela eleição, Fogaça iria concorrer a deputado federal pelo PMDB e gostaria de fazer dobradinha com Clóvis, que tentaria ser deputado estadual, também pelo PMDB. É Fogaça quem recorda: "A sugestão e o convite para que ele fosse candidato fui eu que lhe fiz. Até com certa insistência". Mas, infelizmente, o resultado não foi o esperado. "Clóvis não foi eleito não porque não tivesse prestígio e popularidade. Na verdade, a política não era sua índole, nem sua vontade". E emenda: "Falando claramente: Clóvis na verdade não tinha aspirações políticas pessoais. Nunca foi sua intenção construir uma carreira ou qualquer coisa parecida na vida partidária. Isso era autêntico, porque não era esse o seu perfil".
O palanque de Clóvis era a televisão e, mais ainda, o seu programa. Ali ele emitia opiniões, debatia e transitava entre os mais diferentes políticos de todos os partidos. "Como comunicador, mais tarde, fez política à sua moda: dando espaço e voz aos partidos e aos políticos de todos os matizes nos diversos programas que criou e pôs no ar", avalia Fogaça. "Ele foi, sem dúvida, um extraordinário influencer de toda a sua geração, num mundo onde as redes sociais ainda não existiam."
 

Um influencer de jovens e velhos

Felipe Vieira (esq), Magda Beatriz e  Clóvis Duarte

Felipe Vieira (esq), Magda Beatriz e Clóvis Duarte


/ACERVO PESSOAL MAGDA ALVES/REPRODUÇÃO/JC
Em julho de 2007, o Câmera 2 morreria devido à venda da TV Guaíba ao grupo Record. Logo depois, o programa ressurgiria na TV Pampa, mas com algumas mudanças radicais, entre elas o nome e, principalmente o horário. Agora o programa passava a ser exibido de maneira fragmentada, em duas edições independentes: o Programa Clovis Duarte, às 18h30min, e o Câmera Pampa, às 23h55min.
Dentre seus parceiros profissionais, quem mais esteve perto dele foi a comunicadora Magda Beatriz, que dividia com ele a bancada e de quem ela já era próxima desde a época do PortoVisão. Magda acompanhou toda a agonia dos dias finais. "Acredito que, infelizmente, tenha sido eu quem descobriu que o Clóvis estava doente. Como eu era muito próxima dele, comecei a notar que o cabelo dele não estava legal, a barriga estava inchada, o ar era de cansaço. Um dia eu disse: 'E aí, muita festa ontem?' E ele me respondeu: 'Tá louca?! Não fiz festa nenhuma'. Eu achei estranho e continuava sentindo que ele não estava bem". E completa: "Acredito que ele já soubesse que poderia ter algo grave. Soube, dias depois da morte, que ele havia chamado a família e dito: 'Olha, eu vou fazer uma biópsia e por causa da minha medicação, eles estão autorizados, por mim, a me deixar em coma induzido'. Aí eu nunca mais consegui vê-lo até ele morrer, quatro meses depois".
Clóvis Duarte faleceu às 13h55min do dia 19 de julho de 2011, no Hospital Moinhos de Vento em Porto Alegre, após complicações decorrentes de uma cirurgia nas vias biliares. "Minha maneira de homenageá-lo foi fazer questão de apresentar o programa no mesmo dia. Eu estava no enterro, sai e fui para a TV. Mas antes eu falei com as filhas. Elas concordaram e perguntaram se eu tinha condições. E eu respondi: 'Tenho!'. Fiz me despedaçando, mas fiz até o fim", lembra Magda.
E o que Clóvis estaria fazendo hoje em dia? "O Clóvis era um cara absolutamente incomum. Inquieto, inventivo, empreendedor. Aos 81 anos, tenho certeza de que ele estaria em plena atividade", diz Fogaça. "Ele era uma máquina, sempre em busca de novidades. Certamente estaria na mídia criando e fazendo o que mais gostava", arrisca o irmão, Sérgio. "O Clóvis faz muita falta em momentos como os atuais. Ele era um dos que melhor sabia aliar o talento de comunicador com a experiência de homem de negócios", acrescenta Magda. "Ele estaria ainda na TV. E não apenas na TV. No YouTube, em todas as redes sociais ativas, e tantas outras novidades que ele teria sacado antes e usado muito melhor. Seria um influencer de velhos e jovens", conclui Felipe.
 
 
* Márcio Pinheiro é jornalista e escreveu os livros Esse Tal de Borghettinho e Rato de Redação - Sig e a História do Pasquim.