Carregado de potencial simbólico, o centenário de um grande escritor costuma ser o momento para numerosas e significativas homenagens. Não que Mario Benedetti, nascido em 14 de setembro de 1920 na cidade uruguaia de Taquarembó, vá passar em brancas nuvens - mas a verdade é que as mentes e olhares de hoje não parecem especialmente fascinadas com uma data que, para outros autores mais incensados, certamente há de trazer muito mais frisson.
Não que o próprio Benedetti fosse se importar muito com isso, na verdade. De certo modo, estar um pouco à margem dos gigantes de seu tempo ajudou a moldar sua individualidade literária, e permitiu que ele encontrasse seu próprio lugar para observar, pensar, narrar e poetizar a América Latina.
O escritor, falecido em 2009, é parte do que se convencionou chamar de Geração de 1945, um grupo de autores que circulava em torno do semanário Marcha, publicação de caráter progressista que marcou a história do Uruguai. Além de Benedetti, escreveram para o jornal nomes como Juan Carlos Onetti e Eduardo Galeano - figuras que, assim como ele, seriam perseguidas pela ditadura uruguaia instaurada em 1973 e acabariam forçados ao exílio.
As obras de maior destaque de Benedetti surgem a partir da virada dos anos 1960 - período em que a América Latina vivencia um boom da literatura, com o surgimento de uma série de autores de fama internacional. Entre seus principais livros estão o romance A trégua (1960), a coletânea de contos Montevideanos (1959) e as poesias de Yesterday y mañana (1987) - o último, sem tradução para português. Na verdade, o uruguaio acaba sendo decisivo até para criar a ideia de um movimento continental, em especial a partir de seu livro de ensaios Letras del continente mestizo (1967), o primeiro a deter-se sobre a literatura latino-americana da metade do século XX.
Ainda assim, Benedetti não alcançou a consagração internacional com a qual foram agraciados alguns de seus contemporâneos, como Julio Cortázar, Gabriel Garcia Márquez e o amigo Mario Vargas Llosa. "É o problema de uma obra que surge em um momento em que vários notáveis se destacaram. Sua literatura acabou tendo menos alcance, ficando um pouco diminuída em comparação com os grandes latino-americanos - o que não quer dizer que seja uma obra de qualidade menor, muito pelo contrário", argumenta Sergius Gonzaga, professor da Ufrgs e coordenador do Livro e Literatura na Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre.
Professora do Instituto de Letras da Ufrgs, Karina Lucena tem uma outra explicação para a recepção relativamente mais limitada de Benedetti fora das fronteiras latinas. "Provavelmente esteja relacionada ao tipo de literatura que escreve: urbana, realista, interessada no cotidiano da classe média uruguaia e dedicada a uma variedade de gêneros - conto, romance, poesia, ensaio. Parte da fama internacional do boom está vinculada a um tipo de literatura bastante diferente do padrão de Benedetti - grandes romances históricos fantasistas e rurais, que passaram a ser definidos pela noção de realismo mágico", observa.
Mesmo sem os holofotes sobre si (ou talvez justamente por isso), Mario Benedetti produziu uma bibliografia vasta e diversa. Nela, surge uma voz literária marcada pela observação do cotidiano - por vezes incisiva, não raro irônica, mas sempre inclinada à generosidade e, até mesmo, à certa singeleza. "Um traço geral da escrita de Benedetti é a confiança no afeto, na capacidade humana de estabelecer laços mesmo em circunstâncias terríveis", aponta Karina. "Mesmo um livro duro como Primavera num espelho partido (1982), que trata do exílio político, se centra na vida cotidiana em contexto autoritário. Com impecável controle de texto, Benedetti transforma aquilo que poderia ser banalidade em rotinas interessantes e cheias de vida."
Uma fé na capacidade humana de amar e transformar que se manifestou em vários aspectos de sua vida. Foi casado durante mais de seis décadas com Luz López Alegre, inegavelmente o grande amor de sua vida; mesmo com o fim da ditadura no Uruguai, só regressaria ao país em definitivo depois da morte da esposa, vitimada pelo Mal de Alzheimer, em 2006. Foi também um apaixonado político: entusiasta de primeira hora do regime socialista cubano, foi membro fundador e um dos diretores da Casa de las Américas, centro literário sediado em Havana que foi, durante anos, um dos principais polos de fomento e disseminação artística de toda a América Latina.
Mesmo com a dissensão de muitos intelectuais em relação à Cuba de Fidel Castro, em especial a partir dos anos 1970, Benedetti manteve-se um entusiasta. Em 1984, após uma crítica de Mario Vargas Llosa (há muito desvinculado do regime cubano) ao suposto apoio de Benedetti ao sandinismo na Nicarágua, o peruano e o uruguaio se engajaram em um célebre debate público - muito duro e, por vezes, ácido, mas igualmente marcado pelo respeito afetuoso entre amigos que, mesmo muito discordando, recusavam-se a quebrar os pratos de vez.