O ex-prefeito de Porto Alegre José Fogaça (MDB, 2005-2010) avalia que o transporte público será o maior desafio da gestão do prefeito eleito Sebastião Melo (MDB). Fogaça coordenou o grupo de trabalho que preparou as bases do programa de governo de Melo, em um ciclo de debates chamado Vozes da Cidade, que reuniu lideranças de várias áreas para pensar a Capital.
Fogaça não participará do governo e acha difícil voltar a concorrer a cargo público. Atualmente, o ex-prefeito está escrevendo um ensaio para a Fundação Konrad Adenauer, da União Democrata-Cristã, partido da chanceler alemã Angela Merkel. O texto, que será publicado em livro, trata das mudanças que o município sofreu ao longo da história sob o ponto de vista constitucional, tema de um curso que Fogaça ministrou no ano passado.
Provocado a fazer um balanço da sua gestão 10 anos após deixar a prefeitura, Fogaça destaca a busca pelo diálogo como marca do governo. E reconhece, com o distanciamento de uma década, que foi um erro ter renunciado ao Paço Municipal para concorrer ao Piratini em 2010. "Fiz a análise errada, aquele momento era do PT", avalia.
Atento ao cenário político, o emedebista analisa a disputa eleitoral que elegeu Melo e vê uma volta do eleitorado a propostas moderadas e com histórico, ao contrário dos pleitos de 2016 e 2018, quando, segundo Fogaça, houve uma reação anti-política da população. Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Fogaça analisa os governos de Eduardo Leite (PSDB) e do presidente Jair Bolsonaro.
Jornal do Comércio - O MDB volta ao comando da prefeitura depois de 10 anos, com Sebastião Melo. Como avalia a eleição?
Fogaça - Em 2016 e 2018, tivemos um movimento atípico, uma tendência anti-política muito forte, e os partidos ficaram em segundo plano. Houve um ato de rejeição dos eleitores ao status quo, e elegeram pessoas que pudessem representar algo novo ou contrário à média da tradição política brasileira.
JC - À "velha política"...
Fogaça - As eleições de 2016 e 2018 teriam supostamente consagrado uma "nova política". No momento em que se estabeleceu de novo uma atitude moderada e racional, voltaram as alianças coerentes, as propostas mais estáveis, que pudessem gerar mais credibilidade e representar uma história política com antecedentes. E houve uma disputa nesse sentido em Porto Alegre: de um lado, a versão das gestões de esquerda, que foram duradouras, marcantes; e de outro o nosso modelo, que não é só do meu governo mas também dos governos que o MDB fez no Rio Grande do Sul com (José Ivo) Sartori (2015-2018), com (Germano) Rigotto (2003-2006), com (Antonio) Britto (1995-1998), (Pedro) Simon (1987-1990). Esse modelo tem história, passado, presente e futuro, tem relações estáveis e seguras com a comunidade. Esse modelo foi, digamos, restaurado, a disputa se deu de forma mais clara, e a nossa proposta acabou sendo a vencedora.
JC - Seria a volta da polarização MDB x esquerda/PT?
Fogaça - Não é MDB contra PT, ou MDB contra PCdoB, não foi bem isso. Foi uma proposta mais liberal e uma outra proposta mais à esquerda. A proposta da Manuela (d'Ávila, PCdoB) não era ortodoxamente comunista, ela tinha uma proposta muito semelhante à social-democracia mais radicalizada, que foi o governo do PT em Porto Alegre. Então, esses dois modelos se confrontaram.
JC - O senhor foi prefeito por cinco anos e três meses. Qual o conselho que pretende passar a Sebastião Melo?
Fogaça - Melo conhece tanto a cidade que qualquer um tem que pedir conselhos a ele... Procurei ajudar no período de construção política, na projeção das nossas alianças, com a minha experiência, participando das reuniões que foram construindo a formação da chapa e do projeto de governo.
JC - Qual é o maior desafio de Porto Alegre nos próximos anos?
Fogaça - São muitos, mas um dos fundamentais é a questão do transporte público. Vai precisar de uma guinada, uma reforma real, contundente, talvez exija do prefeito um nível de compromisso maior do que simplesmente refazer uma licitação do transporte público. Não tenho dúvidas de que será um dos temas para o futuro governo.
JC - O prefeito eleito falou na campanha em fazer uma repactuação do transporte público...
Fogaça - Não só pelas mudanças que aconteceram em termos de modais, novas opções de transporte público, mas também em função de que o modelo antigo já estava em crise. Diminuindo o número de passageiros, aumentando o número de ônibus vazios no Centro, uma série de questões que demandavam uma nova atitude. Esse é o ponto mais importante para uma administração. Espero que haja compreensão e unidade política, um consenso municipal de todas as forças políticas, inclusive da oposição. A oposição teria que enfrentar essa questão, não é um problema só de quem está governando.
JC - Passados 10 anos desde que o senhor deixou a prefeitura, qual foi a marca do seu governo? Qual foi o legado da sua gestão, olhando com esse distanciamento de uma década?
Fogaça - O legado que procuramos deixar foi da ideia de harmonia, convergência, de cooperação política e social, de trabalhos com comunidades, superar uma linha adversarial de fazer política só através do conflito. E dar vez aos conflitos, deixar acontecerem, mas solucionarmos através da cooperação, do consenso. Foi uma grande mudança e, de certa forma, deixamos como legado, marca do nosso governo. Agora, é tanta coisa... A gente fez uma integração não hierárquica das secretarias - o Melo está muito certo em reestruturar o modelo administrativo e voltar a 20 secretarias ou quantas ele entenda que deva ter. Porque a solução para unificar ações não está em colocar numa mesma secretaria todas as atividades da prefeitura.
JC - Fusão de secretarias...
Fogaça - Transformar em supersecretarias que acabam não funcionando. A integração da ação da prefeitura não pode ser hierárquica, centralizadora, como esse modelo de supersecretarias. A integração foi aquela que buscamos e, em muitos casos, deu certo, a integração da transversalidade entre as secretarias, trabalhar por programas. Construímos mais de 50 creches, o que depois se completou nos anos finais com o (José) Fortunati (então PDT, que assumiu o mandato em 2010). Ali teve uma articulação muito competente de secretarias voltadas a um interesse comum. Isso não é fácil, exige grande vontade expressa do prefeito.
JC - Fica mais difícil com uma aliança maior de partidos, como a de Melo?
Fogaça - O MDB tem esse know how, experiência em alianças políticas, sabemos trabalhar com isso, porque fazemos de maneira respeitosa com os aliados, com espaço, poder, atuação e responsabilidade. E integrando os objetivos estabelecidos pelo governo e aprovado pelos eleitores.
JC - O senhor falou em harmonia ao definir o legado da sua gestão. Lembrei de uma polêmica, que foi encaminhada através de consulta popular sobre o Pontal do Estaleiro, talvez a única consulta pública em Porto Alegre desde a redemocratização...
Fogaça - Na verdade, a Câmara que tinha aprovado o projeto de lei, e eu vetei. Ao vetar, deixei a situação sem alternativa, não era o que eu queria. Sou nascido e criado em Porto Alegre, sempre houve sensibilidade aguçadíssima em relação à orla. Então, encaminhamos para o plebiscito, e reconheço que a participação foi muito pequena (22.619 eleitores participaram da votação que não era obrigatória). Embora tenha sido um número significativo do ponto de vista absoluto, é uma participação pequena.
JC - O senhor diria que esse caso foi um exemplo dessa busca por convergência na cidade?
Fogaça - Tem a ver com isso também, permitir que a oposição participasse, não retirei a minoria dessa decisão final, permiti que ela participasse, e com isso chegamos a um denominador comum.
JC - O senhor assumiu a prefeitura depois de três déficits orçamentários nos últimos anos do PT. E, após três superávits no seu governo, conseguiu fazer financiamentos, como o Programa Socioambiental. Entretanto, o prefeito Nelson Marchezan Júnior (PSDB) fala em déficits nos últimos 20 anos, o que inclui sua gestão. O senhor não sentiu falta de uma defesa do MDB?
Fogaça - Conseguimos a estabilidade no terceiro ou quarto ano. No levantamento que ele (Marchezan) fez, não é a mesma matemática, não lida com os mesmos números, o déficit do qual ele fala não é um déficit orçamentário.
JC - O prefeito usa os dados do Tesouro, e não o orçamento...
Fogaça - Isso me lembra o Roberto Campos, de quem fui colega no Senado. Ele dizia que a estatística mostra tudo, menos o essencial...
JC - Em entrevista há alguns anos, o ex-senador Simon elogiou sua gestão na prefeitura e fez um mea culpa, avaliando como um erro do MDB a decisão que levou a sua renúncia da prefeitura e candidatura ao Piratini. O senhor renunciaria outra vez?
Fogaça - Não, não renunciaria outra vez. A posição de quem renuncia é muito vulnerável, e isso só se sabe depois. Às vezes dá certo, (José) Serra (PSDB) renunciou à prefeitura de São Paulo, se candidatou ao governo do estado e venceu.
JC - João Doria (PSDB)...
Fogaça - Exatamente.
JC - O senhor se arrepende?
Fogaça - Não me arrependo, porque o sistema é rigoroso, tinha que sair na prefeitura seis meses antes (da eleição)... Outra coisa interessante é que as pessoas achavam que se não me elegesse (ao Piratini), voltaria à prefeitura. E muitos preferiam que eu voltasse à prefeitura, "então, vamos eleger outro"...
JC - Mas houve um convencimento do partido ou estava no seu horizonte chegar ao Piratini?
Fogaça - Na verdade foi uma decisão minha, de que era o momento (de concorrer). Foi convicção minha, não boto a culpa em ninguém, mas eu fiz a análise errada. Aquele momento era totalmente do PT, era impossível ganhar a eleição. Reconheço que foi erro meu.
JC - Passando à conjuntura estadual hoje, qual é a sua avaliação do governo Leite?
Fogaça - É bem razoável, considero a postura do governador competente, dialoga, não radicaliza, tem espírito conciliador e construtivo. Isso é muito positivo. Por outro lado, as coisas ficaram nebulosas, há um grande volume de recursos do governo federal, interrupção de pagamentos da dívida (com a União), mas um dia teremos que pagar, então, essas questões estão por ser resolvidas. Por esse aspecto, não dá ainda para analisar (o governo Leite) do ponto de vista estrutural financeiro do Estado, que é a situação dramática. Agora, concordo com reformas, podemos até nos queixar do fato de que não tivemos o apoio dele para Sartori (no projeto de privatizações). Mas damos o nosso apoio, somos coerentes nessas posições.
JC - E o governo Bolsonaro?
Fogaça - O momento é muito difícil para avaliar como seria o processo político no Congresso se as coisas estivessem normalizadas, aí poderíamos fazer uma avaliação melhor. O governo foi interrompido, conseguiu fazer a reforma da Previdência, muito por causa do protagonismo do Congresso. Mas estamos paralisados e seria injustiça atribuir isso inteiramente ao governo, falo da economia e das reformas. Não temos como analisar porque não estão acontecendo, não sei se por incompetência do governo federal ou por causa da pandemia. E não gosto da atitude do presidente em relação à pandemia.
JC - Em que sentido?
Fogaça - O discurso está certo, ele disse que saúde e economia têm que andar juntas, mas na prática não me agrada a forma como ele se conduz na pandemia. O papel de um líder nacional numa hora dessas é ter solidariedade, passar para a linha de frente das preocupações e comandar, indicar caminhos. O governo não negou recursos, agiu certo no auxílio emergencial, são mais de 60 milhões de pessoas. Alguém pode dizer, "ah, R$ 600,00 não é nada". Esse auxílio emergencial fez girar a roda do consumo e da produção, graças a isso a situação não é tão desastrosa como poderia ser. Claro que tem um custo para o País na questão fiscal, mas a questão fiscal é também uma questão de confiança. Foi o que fizeram em outros países, Inglaterra, Estados Unidos, Itália. É uma situação extraordinária.
JC - O senhor tem vontade de voltar ao Congresso ou descarta uma candidatura?
Fogaça - Não descarto, aprendi que a gente não deve se considerar fora da política. Mas considero que é muito difícil.
Perfil
José Alberto Fogaça de Medeiros, 73 anos, é natural de Porto Alegre. Formado em Direito e Letras pela Pucrs, iniciou sua vida política no movimento estudantil. Foi professor, compositor, comunicador e cronista. Lutou contra a ditadura militar e ingressou na vida pública em 1978 pelo então Movimento Democrático Brasileiro (MDB), elegendo-se deputado estadual. Quatro anos depois, chegou à Câmara dos Deputados e, em 1985, atuou na campanha pelas Diretas Já. Em 1986, elegeu-se senador pelo PMDB, permanecendo na Casa por dois mandatos (1987-2002). Foi um dos responsáveis pelo texto final da atual Constituição Federal e relator do Plano Real. Em 2001, migrou para o PPS e, três anos depois, interrompeu a trajetória de 16 anos de gestão petista em Porto Alegre, ao vencer a eleição para a prefeitura. Em 2007, Fogaça retornou ao PMDB, pelo qual foi reeleito prefeito da Capital no ano seguinte. Renunciou ao comando do Paço Municipal em 2010 para concorrer ao governo do Estado. Perdeu a disputa. Em 2014, elegeu-se suplente de deputado federal e assumiu o mandato. Em 2018, disputou o Senado, mas não se elegeu.