Rearranjar elementos para construir o fascínio e a comédia está, em mais de uma forma, no espírito de O mistério de Irma Vap. Afinal, o nome da personagem mencionada no título é, ele mesmo, um anagrama de "vampira", jogando letras para lá e para cá em um novo sentido que, no fundo, não mascara a intenção original. A nova montagem da famosa peça, dirigida por Jorge Farjalla e com Mateus Solano e Luís Miranda se revezando em vários personagens, faz o mesmo tipo de reconstrução. Longe de uma simples repetição do estrondoso sucesso de Marco Nanini e Ney Latorraca, ela propõe novas premissas e irreverências, sem perder o humor vigoroso e incansável da encenação original.
Porto Alegre recebe a nova montagem em curtíssima temporada, nos próximos sábado (21h) e domingo (19h), no Teatro do Sesi (Assis Brasil, 8.787). Ingressos, entre R$ 100,00 e R$ 150,00, estão à venda no site Blueticket e nas lojas Multisom.
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A comédia besteirol, escrita pelo norte-americano Charles Ludlam e encenada originalmente nos EUA em 1984, acabou marcando época no teatro brasileiro. Dirigida por Marília Pêra, a montagem estreou por aqui em 1986 e, depois de algumas semanas quase às moscas, tornou-se um súbito e duradouro sucesso de bilheteria. Foram 11 anos de Nanini e Latorraca girando pelos palcos do Brasil, somando quase 3 milhões de espectadores e garantindo espaço no Guiness World Book of Records, como a peça com maior permanência em cartaz, com o mesmo elenco, em todos os tempos.
Talvez até mais do que a divertida história sobre a recém-casada que enfrenta uma governanta infernal em uma mansão mal-assombrada, a rapidez quase sobrenatural com que os dois atores trocavam de figurino e de personagens era fundamental para o fascínio da peça. Diante do desafio de trazer de volta um encantamento tão marcante, Jorge Farjalla optou por inverter a expectativa, revelando os truques por trás do pano.
Tudo que acontecia longe dos olhos do espectador está, desta vez, em cena aberta. As trocas de roupa são feitas de forma visível, os remendos e escoras de madeira ficam à vista nos elementos de palco. Se a montagem original era um exercício do inesperado, a nova versão deixa tudo às claras, propondo uma visão mais afetiva e despojada não só da peça em si, mas do teatro como um todo.
Nem Farjalla, nem os atores assistiram a peça em seu formato original, o que acabou ajudando nesse grande rearranjo. "Durante a reunião (com Farjalla e Solano), eu falei 'olha, não me interessa fazer a Irma Vap do mesmo jeito que foi feito com o Nanini e o Ney'. Não era algo que me interessasse", relembra Luís Miranda, que assume os papéis interpretados por Ney Latorraca na versão agora clássica. "Quando ele (Farjalla) me explicou o que tinha em mente, me pareceu ousado e instigante. E juntou bem com a minha proposta de humor político, com muita bobagem, mas com um senso crítico muito aguçado."
Foram seis meses de ensaios para colocar em funcionamento a engrenagem de O mistério de Irma Vap. No palco, Miranda e Solano são acompanhados por quatro "vodus contrarregras", que movimentam o cenário e ajudam nas trocas de figurino. A ação ocorre em um trem fantasma, e não faltam referências ao cinema de terror dos anos 1970 e 1980, com direito a um uso quase cinematográfico da trilha musical.
Miranda descreve a interação incessante entre os dois atores principais como um "duelo", tendo como pano de fundo a própria magia teatral. "O espetáculo é uma grande brincadeira. E, ao mesmo tempo, tudo é muito físico, muito corrido. Virou uma gincana, uma prova de atletismo. Somos dois atores nos pondo à prova, colocando todo nosso repertório a serviço dessa grande homenagem ao teatro", anima-se. Há muito espaço para o improviso, e mesmo o que costuma ser imperdoável no teatro (como um figurante que tropeça ou uma peruca que cai ao chão) está dentro do espírito despojado da encenação.
Trazendo como marco em sua carreira a bem-sucedida mistura de comédia e questões sociais do elogiado espetáculo 7 conto, Luís Miranda acentua que O mistério de Irma Vap também se presta a discutir o papel de resistência que o teatro tem - e precisa seguir tendo - no "momento horrível" vivido pelo País. Nesse contexto, o fato de a peça ser encenada por um ator branco e um negro, em um espetáculo no qual um é a criada e o outro é a patroa, não é coincidência. "Entrei na peça também para falar um pouco desses fantasmas que nos perseguem. Essa Irma Vap tinha que ser africana, não poderia ser de Londres, entende? Pareceu pertinente discutir também essa hierarquia preconceituosa, essa alienação da cultura negra que é tão presente em nossa história."