Pedro, o protagonista de Tinta bruta, é, com alguma frequência, enquadrado nas ruas ou praças da cidade ao longo do filme. Não é na exposição ao sol que ele ganha cores vivas, no entanto, e sim no escuro do seu quarto. No novo e premiado filme dos cineastas Filipe Matzembacher e Marcio Reolon, as relações entre interior e exterior ajudam a explicar a solidão e tensionam uma narrativa marcada por melancolia e desamparo.
Em cartaz a partir de quinta-feira (6), o longa-metragem é uma das sensações do cinema gaúcho em 2018. Em fevereiro, os realizadores o exibiram no Festival de Berlim, repetindo feito conquistado com seu título anterior, Beira-mar (2015). Dessa vez, saíram do conceituado evento alemão com o Prêmio Teddy, dedicado a produções com temáticas LGBT. Já no mês passado, uma nova vitória. Ambos agregaram ao currículo da obra o status de grande vencedora da mais recente edição do Festival do Rio, no qual Tinta bruta foi laureado com os prêmios de melhor filme, roteiro, ator (Shico Menegat) e ator coadjuvante (Bruno Fernandes).
O drama acompanha a solidão e a angústia de um jovem em uma Porto Alegre cinzenta e pouco amistosa. Ainda no início das duas horas do filme, a narrativa apresenta Pedro em momento conturbado. Enquanto ele passa por um processo criminal, sua irmã e única amiga, com quem divide um apartamento, está de mudança marcada para o Nordeste do País. Em meio a tudo isso, a persona de GarotoNeon é tanto uma solução financeira quanto uma espécie de refúgio social. Com o corpo pintado de neon no escuro de seu quarto, Pedro assume o codinome como identidade e faz performances eróticas para anônimos que assistem às transmissões de sua webcam - e que lhe pagam para exibir-se. Quando o protagonista descobre que outro rapaz, na mesma cidade, está o imitando e roubando seu público, decide encontrá-lo.
Também assinado por Matzembacher e Reolon, o roteiro nunca esconde a carga de melancolia que carrega. E o estreante Shico Menegat é fundamental para levar as ideias do papel às telas, com uma interpretação cheia de cuidados. O caminhar, os movimentos com os braços e a postura do pescoço - tudo indica um rapaz que busca fechar-se em seu próprio mundo.
Mas a sutileza dos diretores vai além da entrega do elenco que comandam. Passa pelo tratamento dado a diferentes cenas de sexo, nas quais detalhes não são economizados, e se estende até a questões cotidianas. Uma torneira problemática na casa do protagonista, por exemplo, pode ser encarada como um recurso que denota as condições em que vive o garoto. Sem nunca resolver a questão de forma definitiva - seja por suas próprias mãos ou com ajuda de um profissional -, ele vai levando a situação como pode, fazendo o suficiente para a válvula resistir dentro de suas possibilidades, ação que marca também a existência do próprio rapaz.
Da onde vem essa conduta? Esse é o ponto que faz os realizadores irem de uma esfera pessoal para uma abordagem mais ampla. A resposta passa pelo medo e pela insegurança, e Porto Alegre (mas também poderia ser outro centro urbano) entra no enredo tal qual uma personagem. Pedro suspeita de cada olhar que recebe nas ruas, mesmo que nem todos sejam necessariamente punitivos ou ameaçadores. Com uma vida marcada por julgamentos e abandonos, ele tem suas justificadas razões para desconfiar.
Em determinada cena do filme, é dito que bastam as ações de dois ou três e a omissão de um grupo maior para causar danos sérios. Tinta bruta consegue passar essa ideia ao espectador e ainda reserva um final tão poderoso e perspicaz que, senão definitivo, é esperançoso como um feixe de luz na escuridão. Mesmo quando se perde tudo, ainda é possível brilhar.
Em sua trajetória por festivais, o longa-metragem também recebeu prêmios em eventos em Boston, Guadalajara, Lisboa e Los Angeles, entre outras localidades. Além de Shico Menegat e Bruno Fernandes, que interpreta o bailarino que imita o GarotoNeon, o elenco é completado por nomes como Guega Peixoto e Sandra Dani.