Corrigir texto

Se você encontrou algum erro nesta notícia, por favor preencha o formulário abaixo e clique em enviar. Este formulário destina-se somente à comunicação de erros.

reportagem cultural

- Publicada em 20 de Maio de 2021 às 20:56

Pioneiro, Claudinho Pereira celebra seis décadas como DJ e prepara novo livro

Primeiro discotecário de Porto Alegre, o também cineasta, diretor de TV, produtor e radialista completa 74 anos na próxima terça-feira (25)

Primeiro discotecário de Porto Alegre, o também cineasta, diretor de TV, produtor e radialista completa 74 anos na próxima terça-feira (25)


MARIANA ALVES/JC
"Eu sou essa mistura de Dona Canô com Antonio Ermírio de Moraes." O bom humor e a capacidade de rir de si mesmo são algumas das inúmeras virtudes de Claudinho Pereira.
"Eu sou essa mistura de Dona Canô com Antonio Ermírio de Moraes." O bom humor e a capacidade de rir de si mesmo são algumas das inúmeras virtudes de Claudinho Pereira.
E ele emenda admitindo que Paulo Silvino e Jards Macalé poderiam entrar nessa lista de "gêmeos", ainda que saiba que ele é bem mais do que brinca na sua autodefinição, que já começa esquisita ao levar em consideração um possível cruzamento entre o empresário paulista, a mãe de Caetano e Maria Bethânia, o humorista e o cantor.
Outro exemplo do bom humor de Claudinho? Anos atrás, na minha casa, com ele presente, surgiu a ideia de fazer um concurso de quem fazia a melhor imitação de Claudinho Pereira. Ele entrou na brincadeira mas ficou em terceiro lugar. Perdeu para as performances mais convincentes do empresário e produtor cultural Jorge André Brittes e do compositor Antonio Villeroy.
A capacidade de ver o mundo com humor e com leveza faz parte da trajetória deste porto-alegrense que conhece cada viela de sua cidade. Nascido no Bom Fim, em 25 de maio de 1947, filho de uma doméstica e sem nunca ter conhecido o pai, Cláudio Antônio Pereira sempre esteve em movimento. Desde cedo que ele não para. Ainda na adolescência, ele trabalhava à noite e estudava durante o dia. Seu primeiro trabalho foi como caboman, logo depois emendando com outras funções como produtor de programas de rádio e de TV até se tornar uma referência como um dos pioneiros entre os DJs - na época ainda chamados de discotecários - da Capital.
Muitos passos dessa trilha (sonora?) foram favorecidos por outras duas virtudes que Claudinho demonstrou desde jovem: ser hábil e sortudo. Hábil na capacidade de fazer amigos, de estar sempre de alto astral, de encantar quem estava ao seu redor e, assim, conseguir que portas que poderiam se fechar a um rapaz como ele se abrissem com mais facilidade. Sortudo por pegar um momento único na vida de Porto Alegre. Uma cidade que começava a ganhar ares de metrópole, mas que não perdia hábitos provincianos como as conversas nas esquinas, os encontros nos cafés e o lazer nos clubes.
"Não vivo no passado, o passado é que vive em mim", explica Claudinho, lembrando a definição feita por Paulinho da Viola para espantar qualquer espécie de nostalgia. Mas reconhece: "A noite mudou muito. Os hábitos mudaram. A violência aumentou. Chegamos ao ponto que um dos bairros boêmios, a Cidade Baixa, fecha à meia-noite".
De fato, Claudinho não é saudosista e ainda tem muita história para contar, mas jamais fará essa narrativa de forma nostálgica. Assim, Claudinho prefere lembrar de outra citação e se fixar na expressão carpe diem - parte da frase extraída de uma das Odes, de Horácio (65 a.C. - 8 a.C.) e que foi popularizada pelo filme Sociedade dos Poetas Mortos - que poderia ser traduzida como "aproveite o dia". "Eu aproveitei os dois. O dia e a noite também!"
Reza a lenda que quem viveu - viveu mesmo - todos estes anos loucos ou não teve saúde ou não teve memória para contar o que viu. Mas Claudinho a partir de agora vai desmentir isso e desencavar muitas histórias vistas, ouvidas e vividas.
Então, ligue sua mente, aumente o volume do som e embarque nesta viagem comandada por Claudinho Pereira.

Testemunha auricular da história

Claudinho Pereira começou como DJ aos 14 anos, nas garagens do bairro Bom Fim, em Porto Alegre

Claudinho Pereira começou como DJ aos 14 anos, nas garagens do bairro Bom Fim, em Porto Alegre


GILMAR LUÍS/ARQUIVO/JC
Testemunha auricular da história, Claudinho ouviu muito nessas mais de sete décadas de vida. "Meu começo como discotecário foi aos 14 anos, nas garagens do Bom Fim", recorda ele. "Naquela época era moda fazer reunião dançante. E como eu sempre fui ligado e tinha muitos discos, todos me chamavam." Assim, antes de atingir a maioridade, Claudinho transformaria o hobby em meio de vida, profissionalizando-se no começo dos anos 1960 a convite de Carlos Heitor Azevedo, um dos grandes nomes da noite de Porto Alegre, na época à frente do Crazy Rabbit. Depois, Claudinho não parou mais. Passou por mais de mais de 30 boates, entre elas, Baiúca, Encouraçado Butikin, Scavi, La Locomotive, Looking Glass e tantas outras com maior ou menor relevância.
Nas pistas, Claudinho aprendeu que o discotecário, além de animador, precisa ser também um pouco psicanalista, entendendo qual é a alma e o sentimento do público ao selecionar as músicas. "Primeiro você observa, depois você abre a pista, com as confirmadas." "Aí dá para seguir tranquilo?", pergunto eu. "Que nada! Depois tudo fica mais difícil: você tem que manter a pista lotada até o fim da noite. Se esvaziar, coloca rápido um hit para lotar de novo." Além do trabalho psicológico existe o trabalho braçal, que, nos últimos tempos, até diminuiu. "Quando comecei, no Crazy Rabbit, havia quatro lâmpadas, uma amarela, uma vermelha, uma verde e uma azul, que piscavam graças a um ferro que ia fechando os contatos das luzes, porque não existia uma chave única que fizesse isso. Hoje é moleza!", comemora. "Também quando comecei, o discotecário carregava aparelhagem - caixas de som, amplificadores, mixer, toca-discos, LPs. Era uma mão-de-obra."
Contemporâneo de Claudinho, o marchand Renato Rosa também lembra desse período: "Nos conhecemos em 1967 quando o Claudinho trabalhava na Boite Scavi". "Acho que conheço o Claudinho desde sempre", rememora o jornalista Juarez Fonseca, estabelecendo 1969, época em que começou no jornalismo, como marco do encontro dos dois. "Naquele tempo, o Claudinho já era figura presente em todas as colunas sociais do Estado, uma espécie de Big Boy gaúcho. Ele tinha feeling, sabia mesclar informações e estava sempre antenado com novidades."
"Quando cheguei a Porto Alegre, vindo de Santana do Livramento, o Claudinho já era uma referência. Na minha cabeça, ele era o único DJ. Festa com o Claudinho era sucesso certo", conta o cirurgião-plástico Renato Viera, outro amigo de longa data. Juarez Fonseca lembra ainda ter sido o responsável por dar um sobrenome ao DJ: "Acredito que fui o primeiro jornalista a chamá-lo de Claudinho Pereira. Até então ele era o Claudinho do Crazy Rabbit, o Claudinho do Encouraçado...".
"Existem grandes personagens da vida noturna da cidade: Cattani, Tatata, Gilda Marinho, Odorico das Flores, Renato Rosa...", avalia Claudinho, sem se incluir na lista. "Quero destacar os que foram os pioneiros: Carlos Heitor Azevedo e Rui Sommer", explica. "O primeiro foi mesmo quem iniciou um novo ciclo, criando um estilo. Já o segundo, com o Encouraçado Butikin, estabeleceu uma saudável rivalidade com o Carlos Heitor. Os dois abriram os caminhos." E finaliza: "Cito ainda o Edmundo Rihan, que trouxe shows maravilhosos como Miriam Makeba, Elis Regina, Dorival Caymmi, Edu Lobo, Tamba Trio, Elizeth Cardoso e os roqueiros do Herman's Hermits".
Cidade sem grande vocação boêmia, Porto Alegre chegou a ensaiar algumas mudanças a partir dos anos 1960 e 1970. Com casas noturnas charmosas, passou a atrair novos públicos. Claudinho - não de calças curtas, mas de cabelos curtos, sem a indefectível trança que durante anos foi sua marca registrada - estava lá. E foi um dos protagonistas a partir do momento em que Porto Alegre achou que poderia ser Nova York e ter uma noite feérica com discotecas, glitter e muito brilho. O sonho durou pouco e acabou antes mesmo de John Lennon ser assassinado na porta de casa, no final de 1980. Então Claudinho, que já não era apenas DJ (ou disc-jóquei, ou discotecário), começou a se interessar por novas formas de comunicação: rádio, TV, roteiros e documentários. Passou a perseguir personagens (reais e fictícios) que sempre estiveram em sua memória e foi acumulando uma quantidade fantástica de capítulos e episódios. E seguiu contando histórias.

A Era do Rádio (e do vídeo)

Diretor de TV, cineasta e produtor cultural em sua casa em Viamão, com discos e filmes

Diretor de TV, cineasta e produtor cultural em sua casa em Viamão, com discos e filmes


MARIANA ALVES/JC
O rádio, a TV e a produção de vídeos eram caminhos naturais para Claudinho. No final dos anos 1960, ele já comandava um programa na Itaí FM. Logo depois, ao lado de Cascalho, foi um dos organizadores do Baile dos Magrinhos, quase uma paródia ao Baile da Pesada, apresentado por Big Boy no Rio de Janeiro. Antes disso, Claudinho também havia estado presente na primeira transmissão a cores da TV brasileira, direto da Festa da Uva, em Caxias do Sul. E neste período foi ainda produtor dos programas Agenda, na TV Piratini, e Porto Visão, na TV Difusora, além de diretor de programas na então recém-inaugurada TV Guaíba. "Criativo desde sempre, Claudinho Pereira soube equilibrar os pratos da balança e manter-se até os dias de hoje como um nome de ponta no meio musical. Uma figura ímpar do mundo cultural e de alto pensamento na cidade", atesta Renato Rosa.
A convite de Nelson Sirotsky, do grupo RBS, Claudinho foi para a Rede Atlântida com a missão de criar um departamento de Promoções, que acabou dando origem ao Planeta Atlântida. "Conheci Claudinho no final dos anos 1970 na redação de jornalismo da RBS TV, em Uruguaiana", lembra Jorge André Brittes, na época radialista e apresentador televisivo. "Ele estava tresnoitado de uma exaustiva viagem de trem húngaro." Acompanhado pela Preta, Claudinho seria uma das atrações do tradicional Réveillon do Clube Comercial. "O cara que eu via nos comerciais de TV estava contando às gargalhadas a tragédia de uma viagem de mais de 10 horas. Seu bom humor era impressionante."
Os dois iriam se reencontrar tempos mais tarde, com Jorge André como gerente de programação da RBS Rádios e Claudinho como coordenador de promoções e divulgação. "Quando me transferi para Porto Alegre, participei do processo de contratação dele para Atlântida." Claudinho vinha com o desafio de aumentar a audiência. "O resultado foi imediato. E lembro que jamais o stress ou clima profissional tensionado tirou do Claudinho a capacidade de pensar, negociar e construir com extrema alegria e espírito gregário", ressalta Jorge André. "Ousado e visionário, Claudinho sempre teve olhos e ouvidos atentos para mixar oportunidades e arrastar multidões. Ganhou prestígio e reconhecimento na radiofonia nacional." A jornalista Alice Urbim, colega dos tempos de RBS TV, completa: "Claudinho é uma entidade! Um articulador cultural que sempre defendeu a diversidade e a transversalidade do tempo em qualquer arte".

Essa família é muito unida

Casal Pereira com filhos, netos e bisneta: porta aberta para a cultura, a mãe da educação

Casal Pereira com filhos, netos e bisneta: porta aberta para a cultura, a mãe da educação


MIRIAN FICHTNER/DIVULGAÇÃO/JC
Nos últimos anos, Claudinho desligou-se parcialmente da noite, retirou-se para uma casa afastada dos burburinhos dos grandes centros, mas não virou um velho careta. É, sim, um vovô (na verdade, bisavô) doidão, que faz planos para o futuro, ri das loucuras do passado e não se cansa de lembrar dos excessos dele e da sua geração. Excessos que fazem com que ele trate com intimidade um sem número de drogas encontradas dentro ou fora das farmácias. Porém, hoje ele está afastado disso tudo. Também não coloca mais uma gota de álcool na boca. Só bebe sucos e seu único vício são as Mil Folhas. Localizada num condomínio em Viamão, a casa é afastada propositalmente, para evitar conflitos com vizinhos por causa da agitação, do entra-e-sai constante de amigos.
Casados há 52 anos, Claudinho e Preta são motivos de espanto e de piada para os amigos. "Eles brincam que a relação só pode ser falta de criatividade ou tara", diz Claudinho. Além da vida conjugal, a parceria se estende ao trabalho. O casal teve quatro filhos, porém dois já faleceram, Samantha, com 21 anos, e Charles, com quatro meses. Hoje a família Pereira é formada por Claudinho; Preta, 69 anos; os filhos Ketelen, 51, e Christian, o Mano, 50, que também é DJ - "Quando eu estava assistindo ele tocar nas festas era como um herói com superpoder e isso me influenciou muito" -; os netos Sibylle, 32, Thuane, 21, e Dylan, 30; e as bisnetas Antônia, 8, e Melody, 5. "A nossa família é um grupo de pessoas que mantém a porta aberta para a cultura, que é a mãe da educação. A nossa família está sempre unida e aberta. Família é isso."

As 1001 noites de Claudinho

Incentivadora dos livros e outros projetos, Preta é presença constante a seu lado há 52 anos

Incentivadora dos livros e outros projetos, Preta é presença constante a seu lado há 52 anos


MARIANA ALVES/JC
Em 2012, Claudinho Pereira estreou numa nova função: a de autor de um livro de memórias. A ideia surgiu de uma conversa dele comigo, um ano antes, enquanto aguardávamos na fila de autógrafos do livro do ex-craque colorado Escurinho, na Feira do Livro. A Preta, parceira constante de tantas destas histórias, foi a incentivadora imediata. O livro já estava "escrito" na cabeça de Claudinho. Bastava dar um pouco de ordem ao conteúdo aparentemente caótico. O resultado - se não é exaustivamente detalhado e apurado com rigor - não poderia ser mais Claudinho. Dá para ouvir a voz dele em cada linha destes textos.
Em Na ponta da agulha, Claudinho faz um inventário de época, locais e personagens que ele conheceu de perto. Ali está o que ele viu e viveu em noites intermináveis. E Claudinho ouviu muito nessas mais de sete décadas de vida. Ouviu sons - colocados por ele e pelos outros -, ouviu piadas - que não se cansa de repetir aos mais variados interlocutores -, ouviu histórias saborosas, muitas delas contadas pelos próprios protagonistas, e ouviu segredos de alcova, alguns (poucos) impublicáveis. Todo o resto ele dividiu com os leitores de Na ponta da agulha.
O livro se esgotou rapidamente, hoje é vendido com preço altíssimo em sites, e Claudinho pegou gosto pela tarefa.
No momento se dedica a dar forma ao novo livro, que deve ser uma sequência do anterior. "Comecei a selecionar as histórias. São muitas. Agora quero dar uma ordem para ver se consigo lançar no próximo ano". República 138 a Porta Aberta da Rua Lilás, o título, faz referência ao antigo endereço da família Pereira. "Foi a a Nana Caymmi quem definiu quando disse: 'A porta desta casa está sempre aberta e eu adoro esta rua Lilás'", referindo-se à rua da República e seus jacarandás. Preta anotou e Claudinho ficou por todos estes anos com a frase na cabeça. Claudinho pretende fazer um mapa da Cidade Baixa e uma planta da casa. Dentro estarão as histórias de muitos personagens que por lá passaram: Alceu Valença, Pepeu Gomes, Baby Consuelo, Simone, João Bosco, João Nogueira, Nana Caymmi, Ezequiel Neves, Guilherme Araújo, Maurice Capovilla, Falcão, Escurinho... A casa era tão aberta que, certa vez, ladrões entraram, selecionaram alguns itens, e levaram o saque diante de diversas pessoas que por ali circulavam. Ninguém achou estranho.
 

A amizade e o convívio sempre alegre


/FOTOS ARQUIVO/ARTE/JC
"Claudinho é quem poderia fazer um longa-metragem musical da vida de todas as pessoas da minha geração. É o nosso amado, primeiro e único DJ." (Tânia Carvalho, apresentadora de TV)
"Nos conhecemos no final das nossas adolescências. A Preta já estava ao lado dele. Eram noivos. Descobríamos o mundo, a vida, as pessoas, algumas amizades que se revelaram como fundamentais e se conservaram - eles no pacote - até este novo século. Não é pouca coisa. Claudinho é um legítimo irmão da vida." (Renato Rosa, marchand)
"O Claudinho é a pessoa mais low-profile, relax, que eu conheço. Nunca vi ele brabo, com alguma tentação de agressividade, de gritar. Sempre calmo, com uma piada pronta, fiel aos amigos. Sempre cercado de muita gente." (Juarez Fonseca, jornalista)
"Nos tornamos amigos, irmãos, de frequentarmos as casas. Estar com ele e sua família é garantia de casa e pistas cheias. Ele sempre foi um cara generoso e divertidíssimo. Nossa amizade tem combustível para muitas e boas histórias." (Jorge André Brittes, empresário e produtor cultural)
"Não dá para deixar de falar na inteligência do Claudinho, que é de uma perspicácia única. As sacações, geralmente carregadas de humor, são históricas. E a casa dele e da Preta é um lugar onde sempre é possível se sentir acarinhado e acolhido." (Renato Viera, cirurgião-plástico)
“O Pereira ou os Pereiras incluindo a Preta sempre foram pra mim um abraço, uma doação. O carinho do Claudinho tem o tamanho da trança que ele carrega!” (Alice Urbim, jornalista)
"Claudinho Pereira: mais de quatro décadas de amizade, de carinho, de incríveis histórias e de muita risada!" (Ângela Moreira Flach, produtora cultural)

* Márcio Pinheiro é porto-alegrense e jornalista. Trabalhou em diversos veículos da Capital, de São Paulo e do Rio de Janeiro.