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reportagem cultural

- Publicada em 14 de Junho de 2018 às 22:06

Bilíngue e sem fronteiras: Demétrio Xavier celebra sete anos de Cantos do Sul da Terra

Músico e radialista comanda programa que promove raízes musicais da América Latina

Músico e radialista comanda programa que promove raízes musicais da América Latina


ANDREA AVILA/DIVULGAÇÃO/JC
Setembro próximo marca os sete anos que está no ar, na FM Cultura 107.7, de Porto Alegre, o programa Cantos do Sul da Terra. Produzido e apresentado pelo cantor Demétrio Xavier, entrou num horário (13h) dominado por dois cachorros grandes da radiofonia sulina - Sala de Redação e Esfera Pública -, que promovem debates encarniçados na Gaúcha e na Guaíba, as maiores emissoras do Estado.
Setembro próximo marca os sete anos que está no ar, na FM Cultura 107.7, de Porto Alegre, o programa Cantos do Sul da Terra. Produzido e apresentado pelo cantor Demétrio Xavier, entrou num horário (13h) dominado por dois cachorros grandes da radiofonia sulina - Sala de Redação e Esfera Pública -, que promovem debates encarniçados na Gaúcha e na Guaíba, as maiores emissoras do Estado.
Mesmo com baixa potência (1% das gigantes, na melhor das hipóteses), o guaipeca da extinta Fundação Piratini manda longe a proposta do slogan do programa: "Cantando a aldeia com as vozes da cultura criolla e os sotaques do continente de São Pedro e do continente latino-americano".
Com a ajuda da internet, juntou-se na mesma laçada o Rio Grande do Sul e o cone sul-americano, algo fora do padrão do rádio gaúcho, dividido entre reproduzir a música de procedência norte-americana e do centro do Brasil ou seguir a toada dos centros de tradições gauchescas, cujo repertório costuma ir ao ar de manhãzinha ou à tardinha, quase sempre com metáforas alusivas à vida campeira.
Nascido em 1966 na Cidade Baixa, um dos bairros mais antigos da área central da capital, Demétrio Xavier não vivenciou o mitológico "amanhecer na roça" das emissoras de rádio. Bem ao contrário, criou-se entre tios que desprezavam o costume de gaúchos urbanos de fantasiar-se de estancieiros em nome de uma nostálgica hierarquia rural. "Palhaçada", resmungavam alguns deles diante de exageros do gauchismo.
Originários da Metade Sul do Rio Grande, os Freitas Xavier mantinham um vínculo forte com a cultura criolla vigente nas províncias sulinas, que têm em comum a origem ibérica, a vida no bioma pampa e o linguajar luso-hispânico. Essa mescla é o que mais rola no Cantos do Sul da Terra, um programa nativo, carregado de subjetividades, mas sem porteira nem alambrado.
Naquela hora propícia à sesta ibérica, cada programa apresenta em média 10 canções amarradas por comentários sobre as melodias, as letras, os cantores, compositores e instrumentistas, além de notas sobre os bastidores culturais e geográficos do cancioneiro hermano.
Frequentemente, o apresentador explica o significado de palavras originárias do falar guarani ou quíchua. Às vezes, dedilha o violão e canta em espanhol ou português, mostrando uma versatilidade incomum em condutores de rádio. Em certas horas, ouvintes mais velhos podem ter a impressão de escutar rádios castelhanas dos anos 1960 captadas à noite no interior gaúcho.
Original, culto e articulado, o Cantos do Sul da Terra alcança uma amplitude muito superior à do célebre programa dominical (com auditório) Grande Rodeio Coringa, da Rádio Farroupilha dos anos 1950, que marcou época, embora se limitasse às formas musicais do Rio Grande do Sul, destacando gaiteiros e trovadores.
Nacionalmente, o programa da Cultura pode ser comparado ao Sr. Brasil, do ator e cantor Rolando Boldrin, que há 30 anos expõe na TV a chamada música brasileira de raiz, marginalizada pela indústria cultural, ou aos documentários feitos pelo produtor Fernando Faro nos anos 1970 e 1980 para a TV Cultura de São Paulo sobre os grandes autores da música popular brasileira.

Cavaleiro da canção nativa

À base de voz e violão, Demétrio cavou um espaço próprio no panorama cultural sulino

À base de voz e violão, Demétrio cavou um espaço próprio no panorama cultural sulino


FREDY VIEIRA/JC
Sem nunca ter estudado música formalmente nem fazer parte de grupos musicais, Demétrio Xavier cavou intuitivamente, à base de "voz e violão", um espaço próprio no panorama cultural sulino. Começou aos 12 anos tocando flauta - música andina inspirada no argentino Uña Ramos. Aos 16, aderiu ao violão. Aos 19 anos já se sentiu seguro para tocar em bares da Cidade Baixa, onde se viravam dezenas de músicos que, nos fins de semana, iam animar bailes no Interior ou disputar prêmios nos festivais de música inspirados no sucesso da Califórnia da Canção Nativa, iniciada em 1971 em Uruguaiana.
À média de um por fim de semana, os festivais tinham várias linhas de trabalho e diversos apelos para atrair competidores - músicas nativista, regional, tradicionalista, culta, campesina ou urbana -, mas até hoje, esses eventos foram pouco estudados no Rio Grande do Sul. Junto com o surto criativo de jovens compositores, nasceram discos que imortalizaram canções, como Esquilador, Negro da gaita, Gaudêncio Sete Luas e Desgarrados. Durante cerca de 30 anos espalhou-se pelo Rio Grande uma curiosa mistura de nativismo com o movimento hippie, ambos fortalecidos pela resistência às ditaduras militares vigentes no Cone Sul.
Cavaleiro solitário, em alguns fins de semana Demétrio viajava para participar de eventos em cidades gaúchas, do Uruguai e da Argentina. A chamada música latino-americana estava em alta. Mudara-se para o Rio Grande do Sul o violonista argentino Lucio Yanel, que exerceu grande influência no modo de tocar dos rio-grandenses. O missioneiro Noel Guarani arrastava multidões aos festivais de música nativa, alguns transmitidos - quem diria? - por rádios e TVs de São Paulo. Estava no auge o conjunto Raices de America. Veio a onda de Astor Piazzola. Elevou-se o culto a Jorge Luis Borges e outros escritores latino-americanos. Mercedes Sosa virou unanimidade. Despontando em festivais, os irmãos Kleiton e Kledir foram parar no Rio. Após a gaita, o chapéu e as bombachas de Borghettinho, começou a brilhar a estrela de Vitor Ramil.
Foi certamente o contato com as raízes musicais da América que encorajou Demétrio a apresentar-se, em 1991, à direção da recém-criada Rádio FM Cultura de Porto Alegre com o projeto de um programa inspirado na integração dos países do Mercosul, organismo regional criado em 1989 por Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai. Não vingou.
Na época, matriculado desde 1984 na Ufrgs, Demétrio lutava para terminar o curso de Ciências Sociais e arranjar um trabalho fixo. Achou a saída num concurso para o Tribunal de Justiça do Estado. Aprovado, foi nomeado em 1993, o ano em que, finalmente, pegou o diploma de cientista social. Agora sim, com a estabilidade no serviço público, poderia dar prioridade à vida artística. Mas somente em 2011 se encaixaria na programação da FM Cultura.

O afeto que não se encerra

Apresentador com o inseparável mate, nos estúdios da FM Cultura durante o Cantos do Sul da Terra

Apresentador com o inseparável mate, nos estúdios da FM Cultura durante o Cantos do Sul da Terra


GUSTAVO ROTH/FUNDAÇÃO PIRATINI/DIVULGAÇÃO/JC
Caçula de cinco irmãos, Demétrio Xavier tinha 10 anos quando seus pais se separaram. A partir da ruptura, seu Raul de Freitas Xavier só encontrava os filhos em locais públicos, especialmente nos bares da cidade. Para compensar a ausência paterna, Demétrio possuía oito tios/tias e respectivas proles que supriam, de alguma forma, as lacunas afetivas da família.
Giovanna, a tia exilada no Chile com o marido, o professor Paulo Renato de Souza (anos depois, ministro do presidente Fernando Henrique Cardoso), colocou na roda familiar os discos de Violeta Parra e Vitor Jara. A Misa Criolla dos argentinos Ariel Ramirez e Felix Luna provocou alvoroço na alma do adolescente Demétrio que tem, até hoje, discos daquele tempo. No item livros, coplas de Martín Fierro eram moeda corrente nos dialetos da família. Demétrio ganhou o seu exemplar do clássico de José Hernandez do próprio pai, que fez uma dedicatória: "Para mi cachorro", uma brincadeira afetuosa alusiva aos encontros e desencontros de ambos. Na dedicatória, o pai anota o número do verso do Martín Fierro em que o filho descobrirá que cachorro não é cão, mas filhote de tigre. O detalhe negativo dessa história sutil é que, de tanto passar de mão em mão, o livro extraviou-se. "Acredito que um dia vou reencontrar meu Martín Fierro num sebo de Porto Alegre", confessa Demétrio , que perdeu o pai quando estava com 22 anos.
Não é difícil compreender a importância desse livro para Xavier: o Fierro é uma espécie de herança espiritual que restou acima de itens materiais, como as facas que o pai usava como funcionário do Instituto de Carnes ou as moradas na Cidade Baixa. Por exemplo, desapareceu na voragem das transformações urbanas a sempre lembrada casa do avô Ernesto, catedrático da Agronomia. Ficava na rua Sarmento Leite e foi demolida para dar lugar ao asfalto da Primeira Perimetral de Porto Alegre.
Sobrou a rica memória afetiva da família. Algo que não se apaga é a lembrança de um porão usado como uma espécie de galpão por onde transitava muita gente vinda de outras cidades. Era a "Estância da Amizade". Demétrio lembra do caso folclórico de um sujeito que acampou ali por vários dias sem que tivesse sido convidado por alguém da casa. Dias depois de sua partida, descobriu-se que não era amigo de ninguém.

Para que serve o porongo?

Transformado em radialista aos 45 anos, Demétrio admite que está se realizando como "papagaio de microfone", expressão pela qual são conhecidos, no rádio, os faladores compulsivos. "Sou falador, mas nunca tive o costume de ouvir rádio", diz ele, consciente de que chegou às ondas hertzianas não apenas por empréstimo funcional, mas também por encontrar, nos estúdios da FM Cultura, um ambiente profissional receptivo. Se puder, fica para sempre na rádio pública, que, desde o fim de maio, junto com a TVE, passou a pertencer à Secretaria da Comunicação do governo do Estado, que extinguiu a Fundação Piratini.
Ao contrário de muitos papagaios radiofônicos que se deliciam na autoaudiência, Demétrio é um speaker que sabe ouvir. Isso é notório no modo espontâneo e festivo com que recepciona convidados, a maioria formada por artistas que dão depoimentos sobre o próprio trabalho na música ou na literatura - as duas vias em que Demétrio transita com maior desenvoltura.
Para justificar seu modus radioperandi, o cantor do Sul da Terra recorre a um verso do poeta espanhol Antonio Machado: "A moedinha da alma só vale se for dada". É o elogio de uma certa apertura, como aparece em versos do Martín Fierro: "Soy como los mates: sirvo si me abren la boca". Ao que acrescenta o próprio Xavier: "Se o porongo fica fechado, serve pra quê?"
 

Aqui se habla el portunhol

Apresentador formula expressões que atingem também argentinos e uruguaios

Apresentador formula expressões que atingem também argentinos e uruguaios


GUSTAVO ROTH/FUNDAÇÃO PIRATINI/DIVULGAÇÃO/JC
Desde o começo, o Cantos do Sul da Terra simula um galpão onde se ouvem os sotaques de diversas querências. Para argentinos e uruguaios, o FM 107.7 é uma espécie de consulado sempre de portas abertas. Não por acaso, Demétrio faz as honras da casa apelando para metáforas como "Fulano está apeando do cavalo lá fora" ou "Chega mais pra perto do fogo". É o único programa diário do gênero fronteiriço da Cultura, que mantém, nos fins de semana, uma série de programas sobre música nativa e regional. "Nossa programação toca 70% de músicas nossas", diz o diretor da rádio, Paulo Inchauspe.
Desde a primeira audição, o Cantos começa com o Ó de Casa - a leitura de um texto breve de um autor consagrado, seguida de uma canção. Depois, desdobram-se as entrevistas e/ou charlas sobre os assuntos do momento, geralmente inspirados em efemérides como as datas de nascimento ou morte de artistas do Sul da Terra, às vezes do mundo. Na metade do programa, Demétrio faz uma pausa para "cevar a palavra". É a hora da reflexão, equivalente ao momento em que, nas tropeadas, os cavaleiros param para dar água às montarias. O roteiro é fixo, mas as falas são improvisadas, sempre "pra cima".
Com tamanha originalidade, o Cantos atravessa a crise da TVE e FM Cultura, abaladas com a extinção da Fundação Cultural Piratini. A TVE está retransmitindo a grade da TV Brasil. Na FM Cultura, também houve mudanças e baixas de quadros que comandavam diversos programas.
Mas o Cantos do Sul da Terra segue no ar, por enquanto, com reprises, durante as férias de Demétrio Xavier. Ele espera retomar o programa na volta, mas isso ainda depende de questões burocráticas internas, agora vinculadas à Secretaria de Comunicação do Estado.

A sanga do Pedro Lira

Aos 52 anos, Demétrio Xavier só não está mais feliz porque, em função dos compromissos na Capital, passou a desfrutar menos de sua casa no condomínio do Guaíba Country Clube. Bem ali fica um acidente geográfico marcante na vida dos moradores desse pedaço do Rio Grande: a sanga do Pedro Lira.
Foi o caseiro Zé quem disse a Demétrio: há 100 anos, forma-se uma cerração permanente sobre essa sanga. Há quem diga que o fenômeno tem muito mais de um século. Pedro Lira? Ninguém sabe dele. O que importa é a cerração. Mesmo que não esteja visível, ela é uma certeza. Foi assim que, em 2007, Demétrio escreveu uma letra, que saiu em quadras, dentro da melhor tradição poética da Província de São Pedro:
Tem coisas que sempre são/ tem coisas que ninguém tira/ Sempre haverá cerração/ na sanga do Pedro Lira.
O poema vai-se campo afora numa sucessão de coplas filosóficas. Em algum momento de 2008, o autor mostrou os versos para Marco Aurelio Vasconcelos, um dos bambas do nativismo. Algum tempo depois, Vasconcelos lhe apresentou a letra musicada.
Inscrita na Califórnia da Canção de 2009, A sanga do Pedro Lira ganhou todos os prêmios possíveis e virou um emblema da carreira de Demétrio. "A sanga do Pedro Lira é a trilha sonora de um trecho da minha vida", diz ele.
Com poucos trabalhos em disco, Demétrio se orgulha de ter traduzido para o português e gravado o célebre poema El Payador Perseguido, de Atahualpa Yupanqui. Porém, é somente agora que sua carreira de cantautor ganha impulso, incluindo shows em palcos como o do Café Fon Fon.
Pronto desde o final de maio, o CD Cantos do Sul Terra é uma autêntica califórnia do Sul do continente. Foi produzido pelo músico Pedrinho Figueiredo com a ajuda de Márcio Gobatto. Demétrio Xavier conta com várias participações ilustres: o "imperador" Marco Aurelio Vasconcelos; o não menos gaúcho Antonio Delacroix; a cantora argentina Laura Peralta; María Elena Melo, cantora uruguaia; Golondrina Ruíz, recitador de Mendoza; Raúl Noriega, tocador de bombo leguero; e Daniel Wolff, primeiro doutor em violão do Brasil. Cantando A sanga do Pedro Lira, ninguém menos do que o próprio autor.

O ídolo virou amigo

Então adolescente, Demétrio Xavier arquitetou encontro com Atahualpa Yupanqui

Então adolescente, Demétrio Xavier arquitetou encontro com Atahualpa Yupanqui


ANDRÉA ÁVILA/DIVULGAÇÃO/JC
No início dos anos 1980, Atahualpa Yupanqui deu um recital no Salão de Atos da Ufrgs, em Porto Alegre. Auditório lotado, o adolescente Demétrio Xavier assistiu ao show sentado no chão do corredor. Depois, entrou na fila até obter um autógrafo e receber um aperto de mão do velho peregrino da canção folclórica argentina, então residente na França.
Em 1990, já calejado de tanto tocar em bares da Cidade Baixa, Demétrio soube que seu ídolo estava passando uma temporada na Argentina. Desconfiado de que El Payador voltara à pátria para morrer, arquitetou um encontro. Primeiro, foi a Entre Ríos, onde um contraparente chamado Oscar Tavani ligou para Buenos Aires e fez o contato. De má vontade, Yupanqui marcou um papo para a terça-feira seguinte, às quatro da tarde em Las Tablitas, um bar da capital portenha.
Assim que chegou lá, Demétrio foi à procura da oficina do luthier José Yacopi, de quem comprou o primeiro violão próprio - até então, usava instrumentos emprestados. Pagou US$ 200 - mais o estojo, US$ 40 pechinchados. Só ficou com o dinheiro da passagem de volta. E assim, duro no más, mas com um violão de primeira, foi ao encontro do mestre.
La conversación durou 40 minutos. Nascidos a meio século um do outro, os dois descobriram afinidades definitivas. O pai de Yupanqui se chamava Demetrio - sem acento - e o sobrenome original dele era Chavero, quase Xavier. Quando deixou o bar, com sua guitarrita castellana (instrumento que o acompanha até hoje), Demétrio estava tão eufórico que bradou ao porteiro do prédio vizinho: "Sabes con quién yo hablava?!". E pronunciava o nome do seu ídolo.
Em 1992, aos 84 anos, Yupanqui morreu na França. Acabou sendo enterrado em seu sítio, no Cerro Colorado, no interior da província de Córdoba.
A partir de 1994, Demétrio esteve mais de uma vez no Cerro Colorado, onde ficou amigo dos familiares de Atahualpa, especialmente de Colla Chavero, o filho de Atahualpa. Nesse local, transformado em parque nacional, moram cerca de 200 pessoas, mas nenhuma delas - exceto Colla, herdeiro dos direitos autorais do pai - conhece tão bem quanto Demétrio a obra do compositor argentino.