Shirley Djukurnã Krenak é uma das mulheres que protagoniza o documentário
“Kunhã Karai e as narrativas da terra”, dirigido por Paola Mallmann e produzido por Beto Rodrigues. Liderança do povo Krenak, do leste de Minas Gerais, é formada em comunicação e escritora, atua em cursos de extensão voltados para a história indígena do Brasil e desenvolve trabalhos terapêuticos ancestrais. Atualmente coordena a construção do instituto que leva o seu nome. Shirley Krenak esteve em Porto Alegre para acompanhar a primeira exibição do longa e concedeu entrevista à coluna.
Jornal do Comércio – No documentário você diz que a natureza fala, mas a sociedade não escuta porque está acomodada. O que isso significa?
Shirley Krenak – Sempre falamos, nos diversos trabalhos, na organização das mulheres indígenas, que as pessoas estão com muita cera no ouvido. Ou elas não querem escutar, ou já perderam a vontade de fazer imersão na terra, e o negócio é destruição mesmo. A nossa grande preocupação é essa: como podemos construir trabalhos positivos, voltado para a questão da proteção ambiental, sem a força da humanidade toda? Porque a responsabilidade de cuidar da terra, de cuidar dos rios, não é só dos povos indígenas. É da sociedade inteira. Só que a humanidade e a sociedade que nos rodeia perdeu todo esse carinho, toda essa atenção pelo nosso universo, pela mãe terra.
JC – Como isso se manifesta?
Shirley Krenak – Todo mundo quer saber só de consumir, consumir, consumir, mas não tem entendimento de onde vem tudo isso. A maioria das pessoas não param pra nos escutar, se tornam individualistas, não tem entendimento do que é ser coletivo e do que é viver em comunidade. Uma pessoa que não tem esse entendimento destrói, destrói muito, quer poder vinte e quatro horas por dia. E uma pessoa que quer poder vinte e quatro horas por dia não tem entendimento do que é respirar um ar puro, do que é beber um copo de água sem ter medo de morrer, do que é pisar em cima duma terra sem medo de morrer. Hoje em dia a terra anda massacrada e estuprada por causa de agrotóxico e violência que é jogada em cima dela. As pessoas precisam entender que a gente come terra todos os dias. Come terra, bebe água e respira.
JC – Como podemos perceber essa relação?
Shirley Krenak – Seu corpo é o quê? Sua carne é terra. E o que corre dentro de você é um grande rio. Então, quando foi que você, ser humano, parou de lutar? Hoje em dia o movimento dos povos indígenas se tornou um ato radical. Lutar pelo meio ambiente é ser radicalista e nós povos indígenas estamos sendo vistos dessa forma pela sociedade que nos rodeia. Mas estamos cansados de ver as pessoas olhando a floresta de cima pra baixo. Está na hora de olhar a floresta de baixo pra cima. Quando vocês olharem a floresta de baixo pra cima, vão ver que estamos lá embaixo. Os guardiões estão lá embaixo. Então, a pergunta é: quando foi que você, ser humano, parou de se importar com o universo e com tudo que compõe a biodiversidade do nosso planeta? A questão é essa.
“Quando foi que você, ser humano, parou de se importar com o universo e com tudo que compõe a biodiversidade do nosso planeta?”
JC – O documentário dá voz às mulheres. Como você entende esse momento, de ter as mulheres à frente do movimento de preservação da natureza, e ao mesmo tempo de reconhecimento dos povos originários que foram colonizados?
Shirley Krenak – Bom, a colonização aconteceu, certo? Então agora precisamos pensar daqui para frente. De que forma trabalhar o equilíbrio de todas essas questões que vieram com a colonização? De que forma equilibrar tudo isso para trazer essa força sagrada de todas as mulheres? A mulher indígena é um ser poderoso demais. Toda a sociedade veio dessa trajetória do cuidado e do útero de uma mulher indígena. A nossa história veio dali. Quando falamos do útero da mulher indígena, falamos do útero da mãe terra. E o chamado da terra foi feito para nós, mulheres, porque temos o dom de cura, o dom de fazer muitas coisas ao mesmo tempo, porque a nascente do nosso rio não anda seca. A nascente do rio que corre, que nasce no centro da minha cabeça, não anda seca. Nós escutamos esse chamado da mãe terra.
JC – Como isso se reflete na sociedade?
Shirley Krenak – Hoje estamos ocupando diversos espaços, mostrando que nós, mulheres, independente de ser indígena, preto, branco, a gente pode e deve ocupar esses espaços para transformar todas as ações que dizem respeito ao direito de viver bem como ser humano. E o importante é que, nesses tempos difíceis que estamos vivendo hoje, diante dessa política totalmente genocida, temos a bancada do cocar (na Câmara Federal) que veio com mais de cento e oitenta candidatos indígenas e a metade, mulheres. Mais uma vez estamos mostrando para o mundo que, quando temos entendimento do que é ser coletivo e entendimento de fazer ações positivas em prol da humanidade, a gente avança, a gente conquista, sabe? Mas a questão é que nós não estamos aqui para disputar espaço, trazer a nossa luta de mulheres indígenas como disputa entre homem e mulher. Estamos aqui pra provar que precisa de equilíbrio entre essas duas partes, porque é dessa forma que vamos conseguir avançar em diversas ações positivas em prol da humanidade. Ninguém quer provar que é mais do que ninguém. Só queremos mostrar para o mundo que os homens trabalham como nossos escudos de proteção e nós mulheres transformamos as nossas ações para poder protegê-los também. E aí viver em coletividade. Mas o chamado da terra foi feito para nós, mulheres, que é chegada a hora de ecoar o nosso grito. Então, por que ficar calada? É o nosso momento e precisamos abraçar isso.