Um museu virtual está sendo implementado pela Frente Quilombola RS para resgatar e preservar a memória coletiva dos quilombos urbanos de Porto Alegre. Construída por quilombolas, a estrutura também ocupará espaço presencial nestas comunidades - a partir do "pós-pandemia". Tanto na internet, quanto nos pontos de memória, serão expostas fotografias, vídeos e outros documentos e registros históricos.
"Nosso objetivo é construir a memória coletiva dos quilombos, a partir da história particular de cada um deles", ressalta o estudante de Museologia da Ufrgs, Sérgio Valentim. Integrante da Frente Quilombola RS, ele destaca que a iniciativa que pode vir a se expandir pelo Estado. "No Brasil existe uma cultura elitizada e eurocêntrica da utilização dos museus como uma forma de registro da memória dos brancos que controlaram a contação das histórias e das memórias", destaca o estudante de Museologia da Ufrgs.
Valentim observa que foi somente na década de 1990 que começaram a aparecer os primeiros museus comunitários, que, a partir de 2009 passaram a ser fomentados pelo Programa Pontos de Memória do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). "Estamos neste processo há cerca de cinco anos", detalha Valentim. "Com a pandemia, decidimos continuar com o trabalho de forma virtual."
Foi assim que nasceu o Museu Virtual Quilombola, em 2020. O projeto recebeu R$ 2 mil de apoio do Circuito de Cultura Popular e Periférica (inciso II da Lei Aldir Blanc) para a organização de parte do acervo que será criado. Como contrapartida, a Frente Quilombola RS está realizando a primeira mostra resultante deste trabalho, denominada Lutas Urbanas. O material está sendo publicado nas páginas do movimento e do Museu Virtual Quilombola no Facebook e Instagram.
Segundo Valentim, o apoio está viabilizando a digitalização de fotos antigas, fitas VHS, gravações de depoimentos, e outros documentos antigos reunidos entre as comunidades quilombolas do Estado. "Estamos também arquivando para guardar todo este material com uma certa segurança", destaca o estudante. As temáticas das próximas exposições do museu virtual serão definidas por um conselho, formado por um representante de cada quilombo.
O estudante explica que o ponta-pé inicial do projeto ocorre com "esta pequena exposição, de algumas (cerca de 14)" destas imagens históricas das lutas cotidianas do povo quilombola para a garantia de seus territórios. "Temos muito material de arquivo das ações que a Frente Quilombola RS tem realizado desde sua fundação (em 2011)."
Além de registrar a memória social e de luta dos quilombolas no Rio Grande do Sul, o Museu Virtual Quilombola também tem a missão de fomentar a construção de uma política pública para a memória coletiva destas comunidades.
"Para nós, a memória é um instrumento importante de luta, uma vez que é a base para o autorreconhecimento de um quilombo", explica Valentim. Ele lembra que muitas vezes não há registros em papel sobre a posse do território e em processos de desapropriação, a memória é uma prova importante dentro da disputa judicial, a exemplo do que já aconteceu com o Quilombo da Família Silva, que conseguiu a titulação em 2009.
Primeiro quilombo urbano do Brasil, a comunidade situada no bairro Três Figueiras abriu as portas para outras que esperavam a titulação para suas terras dentro de áreas urbanas. "O registro da memória garante a manutenção do território. Nosso objetivo além de registrar a memória coletiva, é também subsidiar nossas ações, inclusive na Justiça, na garantia dos territórios quilombolas", reforça o estudante de Museologia.
Além do material que já existe, o projeto visa realização de entrevistas, para registrar depoimentos os mestres griôs e outras personalidades da luta quilombola. "Precisamos, no futuro, criar um site para guardar todo este material, mas para isso ainda iremos buscar financiamento público. Como não temos recursos - além dos que estão sendo utilizados para a digitalização -, estamos ainda em processo de desenvolvimento do projeto", pontua Valentim.
Persesguição e racismo são recorrentes na luta quilombola
O advogado Onir de Araújo, integrante da Frente Quilombola RS, recorda que Porto Alegre "é protagonista" na luta territorial negra em contexto urbano, sendo referência em todo o País, com o maior número de quilombos autoidentificados. Ao todo, no Brasil estima-se que existam seis mil comunidades quilombolas. Destas, 130 estão no Rio Grande do Sul. "São em torno de 2,5mil famílias", calcula Araújo.
Em Porto Alegre, existem atualmente 11 territórios quilombolas autoidentificados. Somente o Quilombo Família Silva é titulado (além deste, também outros três no Estado), enquanto sete comunidades já são certificadas pela Fundação Cultural Palmares. "Na maioria dos territórios existe disputa territorial", observa o advogado. Ele lembra que o quilombo é uma territorialização a partir da memoria de ancestralidade negra, cujo modo de vida de relação com os mais velhos, os mais jovens e a coletividade, se diferenciam, mesmo em espaço urbano.
Imagem de manifestação da Frente Quilombola RS realizada em frente ao Palácio Piratini, em 2014. Foto: Luiza Dorneles/Divulgação/JC.
"O quilombo não é uma marca, é um processo de luta de reconstrução de um modo de vida de liberdade, originário da África, que os nossos povos perderam a partir da opressão e exploração colonial", define Araújo.
Araújo avalia que o Museu Quilombola irá de "certa forma" trabalhar com a memória desta luta a partir de sua expressão no espaço urbano. "Não é um museu tradicional, mas vivo, com memória física e oral, que conta a história completa", destaca o advogado, lembrando da importância dos quilombolas na formação de Porto Alegre.