Prestes a adotar
um novo tipo de distanciamento, chamado de controlado, o Rio Grande do Sul vai enfrentar o maior teste desde a chegada do novo coronavírus em seu território, em fim de fevereiro e com primeiros casos confirmados em março.
O pesquisador, professor e reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Pedro Hallal, defende que não deve ter mudança do distanciamento, que ainda tem restrições principalmente na Região Metropolitana de Porto Alegre, que concentra cerca de 60% dos casos. Na manhã desta quinta-feira (23), o Estado tinha 984 registros.
Ao mesmo tempo, ele avalia que "nós, gaúchos, não estamos sabendo comemorar uma vitória", referindo-se ao impacto até agora do distanciamento social que está prestes a mudar, como a menor velocidade de registros de casos frente a outras regiões brasileiras.
O reitor critica o que chama de ansiedade em voltar tudo ao normal e adverte: "Não existe solução rápida para o coronavírus neste momento. Estamos lidando com um vírus que a gente conhece muito pouco e tem matado muita gente". Hallal analisa ainda o uso obrigatório da máscara, indicando que ela não é garantia total contra o vírus, e aponta que é preciso colocar uma lupa em áreas onde se registra mais casos, como em
Passo Fundo, no Planalto, que vem despontando em casos e mortes.
Jornal do Comércio - O senhor já alertou que a pandemia está em estágio inicial no Estado e a tendência é que os números aumentem e que, quanto mais governos e pessoas aderirem ao distanciamento, menor será a disseminação do vírus. O que é mais prudente fazer agora considerando as informações conhecidas?
Pedro Hallal - Primeiro lugar, quero destacar que as deliberações do governo do Estado têm ouvido a opinião da ciência, mas obviamente são independentes. Em nota do Departamento de Epidemiologia da UFPel (na semana passada), dizemos que os resultados dos estudos são insuficientes para direcionar a tomada de decisão de qualquer natureza agora. Apoiamos a manutenção do distanciamento social até que novas evidências estejam disponíveis. Nossa posição não é frontalmente contrária a do governador, mas há divergências de interpretação. Para a Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA), o decreto da semana passada manteve as restrições. Nossa nota se refere a dados conhecidos (do estágio da pandemia) no começo de abril e muitas cidades tomaram suas decisões de reabrir o comércio. Algumas de forma precipitada. O governador foi explícito em dizer que qualquer flexibilização dependia de medidas das prefeituras. Será que as prefeituras levam a sério e atendem? Há mais problema na conduta de municípios que no decreto do governador, que condicionava a abertura a argumentos sólidos e tenho visto poucos. Por isso, pego leve com o governador. A pressão é grande. Muitas prefeituras viram no decreto a possibilidade de implementar o que já tinham vontade. Como pesquisador, não tem nenhuma possibilidade de eu concordar com essa decisão porque não temos um plano detalhado nos locais que me convença que dá para abrir.
JC - Qual é o problema de liberar sem um plano?
Hallal - As pessoas tem entendido que a reabertura é como se fosse um interruptor de luz tradicional. Ele está desligado agora, pois as coisas estão fechadas, e as pessoas querem que ligue. E essa decisão não é baseada em evidência nenhuma. A economia não vai voltar de uma hora para outra. Se voltar subitamente, vai ter pico de casos, vai morrer mais gente e eles (gestores) vão ter de voltar atrás.
JC - Qual é o risco que estas cidades passam a enfrentar quando há decisões com este perfil?
Hallal - O risco é sempre o mesmo. Não tem como acreditar que a gravidade do vírus vai mudar. Há um percentual de pessoas doentes que vai precisar de hospitalização. O medo que se tem, com base nas experiências na Itália, na Suécia e Inglaterra, que optaram por deixar circular o vírus, é de que falte atendimento para os doentes. Para as pessoas entenderem: vamos ter mil pessoas que vão contrair o coronavírus em uma cidade A (pensando hipoteticamente). Destas mil, a estimativa é que entre quatro a cinco fiquem doentes e precisem de respirador em UTI e uma delas vai morrer. Agora vai ter uma cidade B, que liberou o comércio, em vez de ter mil casos, vai ter 10 mil casos. Se esperaria, então, que dez morressem. Bom, seriam 40 pessoas precisando de respirador. Só que não vai ter 40 ventiladores nessa cidade B. Vai morrer gente que não precisava morrer. Este é o perigo.
JC - Essa história de 'pico de transmissão' ou 'pico de contaminação' existe mesmo? Cada vez que não acontece, surge outro prazo... Qual é o cenário daqui para frente?
Hallal - Não adianta as pessoas se apressarem e acharem que tem um jeito fácil de se livrar desse problema. Não existe solução rápida para o coronavírus neste momento. Estamos lidando com um vírus que a gente conhece muito pouco e tem matado muita gente, não por ter uma letalidade altíssima, mas por ter uma transmissibilidade muito grande. Não dá para tratar o coronavírus como se fosse uma corrida de cem metros, que um atleta recordista faz em menos de 10 segundos. Para tratar a pandemia com seriedade, precisamos encará-la como uma maratona que vai exigir medidas adequadas e corretas por um período longo que, talvez, vá até o fim deste ano. Não quer dizer que o distanciamento social vai durar todo este tempo. Ele tem uma vida útil perto de dois meses. O que incomoda é que as pessoas já estão com ansiedade exagerada muito antes disso. Nenhum pesquisador defende que o distanciamento seja eterno. Enquanto se busca medicação e estrutura para tratar os pacientes, a gente precisa ganhar tempo. A única forma de ganhar tempo é com distanciamento social.
JC - Quando o governador cede a uma pressão, para quem tem de encarar uma maratona, ele vai ter fôlego para chegar ao final?
Hallal - Ele tem falado em recuperar o fôlego neste momento porque lá na frente vamos precisar de novo. Sinceramente, não tem uma resposta certa. Tem uma resposta que pode ser discutida. Tem pessoas que avaliam que entramos no distanciamento social muito cedo no Brasil. É um argumento aceitável, mas com o qual não concordo. Os Estados Unidos não entraram e está tendo as mortes e os números que vemos.
JC - Vai ter como saber em algum momento do percurso da doença quanto entrar mais cedo pode ter evitado número X de casos ou mortes?
Hallal - A gente já tem estimativa disso. Nós, gaúchos, não estamos sabendo comemorar uma vitória. Já tivemos uma grande vitória, se compararmos nossa situação com a de outros estados. Tivemos até agora 29 mortes. Podia ter 500, pelo tamanho do Rio Grande do Sul. A gente tem de saber reconhecer que isso tem a ver com o distanciamento. Mas não é uma conquista definitiva. Em epidemias, é muito comum que, quando se está ganhando, começa-se a achar que a situação não é tão grave assim. Aí muda-se de postura e se começa a perder a batalha. O nosso estudo encontrou prevalência de um infectado a cada 2 mil habitantes no Rio Grande do Sul. Em outros lugares, seria muito mais. E só é assim porque trabalhamos bem até agora.
JC - O que será levantado agora?
Hallal - A primeira fase da testagem foi na Páscoa. Começamos nesta semana a segunda coleta para ver como está a situação está. Como a gente avalia anticorpos, espera-se que tenha mais casos. Mas gostaria de ver resultados baixos. É quase como uma torcida nossa. Quanto menos casos, melhor. Meu ponto central é que a gente tem de olhar o que está submerso, ou seja, o iceberg é muito maior do que a ponta que é visível. Hoje em Porto Alegre um terço dos testados tem Covid-19. Quando começar a testar mais, pois hoje os exames são limitados a quem chega nos serviços de saúde, essa proporção reduzirá porque mais gente vai ser testada.
JC - Falta um argumento mais forte da área técnica e de pesquisa para convencer a população sobre a gravidade deste cenário?
Hallal - Os grupos de epidemiologia têm se manifestado de forma muito parecida, indicando que não há evidência científica de que possa afrouxar neste momento. Talvez o que precisa é 'cacarejar' mais esta mensagem.
JC - A gente vê que é cada vez maior a concentração de casos entre a Região Metropolitana, Serra e Planalto. Isso preocupa como ponto de risco para disseminação?
Hallal - Nos preocupa muito. A gente já percebeu que o coronavírus tem característica regional muito forte, que se verificou em países como a Itália. A lição é: quando tem aumento de casos em algum lugar tem de colocar uma lupa rápida ali para entender o que está acontecendo.
JC - Por que a faixa etária entre 30 e 39 anos lidera nos casos?
Hallal - Isso reflete o descumprimento do distanciamento social. Não há evidência científica de que a infecção acontece mais em um grupo etário. A forma como o vírus se espalha é bem universal. A chance de pegar uma criança é a mesma de infectar um idoso. Quando um grupo começa a crescer em casos é porque está circulando mais, descumprindo a regra.
JC - Obrigar a usar a máscara seria efetivo em meio a esse 'afrouxamento' do distanciamento social?
Hallal - Usar é sempre melhor do que não usar. Mesmo que não evite contrair o vírus isoladamente, a proteção diminui consideravelmente a virulência. Mas deve ter cuidado para evitar que a máscara vire desculpa para reabrir tudo, que as pessoas criem a fantasia de que tudo pode voltar ao normal, como aulas em escolas etc. Não tem evidência de que o uso da máscara consiga frear totalmente a pandemia. O problema da pandemia é que não dá para tratar a pessoa isoladamente, a ação deve ser coletiva.
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