Rodado no povoado de Barra, na fronteira do Rio Grande do Norte com a Paraíba, no sertão do Seridó, o western Bacurau teve sua estreia mundial no Festival de Cannes, onde arrebatou o Prêmio Especial do Júri. Depois, recebeu o prêmio de melhor filme na principal mostra do Festival de Munique e foi convidado para mais de uma centena de eventos.
A primeira exibição do longa de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles no Brasil ocorreu na abertura do 47º Festival de Cinema de Gramado, fora de competição. Nesta quinta-feira (29), o título entra em circuito comercial no País todo, com grande número de cópias, pela distribuidora Vitrine Filmes.
Contando com o eterno vilão de Hollywood, o alemão Udo Kier, e mais sete atores do exterior, a obra une ação, distopia e ficção científica - como um drone em forma de disco voador. Porém, Mendonça Filho brincou que a produção fez uso de efeitos especiais baratos, em quatro palavras:
"Daqui a alguns anos". Bacurau é um distrito fictício no sertão de Pernambuco, pertencente à cidade de Serra Verde, num futuro próximo. De uma hora para outra, os habitantes descobrem que a vila sumiu literalmente do mapa, quando uma série de episódios violentos começa a acontecer e assustar os moradores.
Além da diva da sétima arte Sonia Braga, o elenco brasileiro tem destaque com Silvero Pereira, Barbara Colen, Wilson Rabello, Thomas Aquino, Karine Teles e Antonio Saboia. A musa faz Domingas, uma senhora médica em um posto de saúde, dentro de um filme-coral de múltiplas figuras que traduzem o povoado, com as micro-histórias plurais de diferentes personagens. "Domingas é completamente diferente de Clara (protagonista de Aquarius, 2016, longa anterior do diretor). Pela primeira vez, trabalhei no Sertão nordestino. O importante é ser dirigida, entender a personagem, que brota daquela terra", afirmou a veterana atriz.
Na trama, os moradores do povoado se escondem em uma escola e um museu: "São fortalezas dentro da comunidade", comentou Mendonça Filho, que também retrata no filme uma mania brasileira de não visitar museus. O cineasta complementou: "Educação é a base de Bacurau. A casa de Carmelita (moradora antiga da vila, ex-quilombola, interpretada por Lia de Itamaracá, em uma participação cheia de brilho e simbolismo) é cheia de livros. Era uma cidade que não usava armas. Elas estavam guardadas em museu".
A trama começa com a neta dessa personagem, Teresa (vivida pela atriz Barbara Colen), retornando à origem para o velório e enterro da avó, que morreu aos 94 anos. A moça vem na carona de um caminhão-pipa, carregando água potável para a vila, que atropela caixões de madeira pelo caminho. A tensão já começa aí. Antes de o veículo fazer um zigue-zague pela estrada, a placa na beira da via anuncia que o destino está próximo: "Bacurau a 17 km - Se for, vá na paz".
Pelos mais de 120 minutos que se seguirão, o que menos se verá em tela será tranquilidade. A cor do filme é o vermelho do sangue, e não o branco da paz. O projeto de uma década dos diretores (que trabalham juntos há 16 anos, sendo Dornelles o diretor de arte dos títulos anteriores de Mendonça Filho) é um filme de gênero que traz a resistência, a luta pela vida.
O cenário é singular, com protagonismo da vegetação e bioma exclusivos do Agreste (nos espinhos dos cactos e no título do longa, derivado do nome de um pássaro da região ameaçado de extinção, assim como seus moradores). Bacurau é o apelido do último ônibus da madrugada em Recife, pois a ave tem hábitos noturnos. Vigilante, o pássaro pousa à beira de estradas, se camufla em folhagens. Tem um canto assustado, como um aviso. Assim como o longa, que soa como uma estridente sirene de alerta de emergência.
A obra clama pela valorização e pelo resgate da história e da memória, lembrando que as gerações passadas já foram resistência naquele pedaço geográfico, inclusive lutando por sua sobrevivência e sua liberdade - a exemplo dos quilombolas e do Cangaço, retratado nas paredes do museu da vila. Ilustrando a neologia "nordestern", o faroeste contemporâneo também traz a representação do invasor norte-americano, em uma narrativa de thriller com linguagem universal.
Além do caricato perfil coronelista do prefeito do interior do Nordeste, há também críticas à indústria farmacêutica, à formação de milícias, entre tantas outras - construídas na forma de metáforas. O filme é uma grande mina, onde se acham pedras preciosas brutas, para o público garimpar os sentidos. Nem uma palavra dita ou escrita e nenhum dos fortes elementos visuais que aparecerão na tela serão em vão.
Destaque para a trilha sonora: a abertura tem a canção Não identificado, de Caetano Veloso, para introduzir as questões relativas ao espaço sideral: "Minha paixão há de brilhar na noite/ No céu de uma cidade do interior". Já o final traz Réquiem para Matraga, mais um hino de protesto de Geraldo Vandré, parte da trilha de A hora e a vez de Augusto Matraga (1965), de Roberto Santos, baseado em Guimarães Rosa: "Ninguém há de me calar/ Se alguém tem que morrer/ Que seja pra melhorar".