Desde que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi condenado pelo juiz federal Sérgio Moro, da 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba, no Paraná, questões técnicas do Direito, normalmente relegadas aos entendedores da magistratura, passaram a fazer parte de discussões em redes sociais e em rodas de bar. Quando a condenação foi confirmada em segunda instância, em janeiro deste ano, por três desembargadores da 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, ficou determinado que o ex-presidente cumpra o tempo de condenação em regime fechado. Na semana passada, a concessão de um habeas corpus preventivo para evitar a prisão de Lula também foi negada pela 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Embora ainda existam dúvidas sobre a prisão de Lula - se será imediata, se será realmente cumprida ou se ele ganhará o direito de cumprir a pena em regime aberto -, a decisão de executar a pena provisória do réu gera debates no meio jurídico. Em 2016, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que o artigo 283 do Código de Processo Penal, que prevê que "ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva", não impede o início da execução da pena após condenação em segunda instância e indeferiu liminares pleiteadas nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade 43 e 44.
Considerando a decisão do STF, entende-se que Lula - ou qualquer réu que tenha sido condenado em 1ª e 2ª instância - já pode ser preso, mesmo que ainda decida recorrer aos tribunais superiores - STJ e STF. No entanto, o entendimento sobre a legislação não é unânime. Para o especialista e mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs), o advogado Paulo Caleffi, a execução provisória da pena fere o princípio da presunção de inocência, conforme estabelecido no inciso 57 do artigo 5º da Constituição Federal, que prevê que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória." "Alguns casos são revertidos no STF e no STJ. Toda a nossa doutrina de desenvolvimento do Direito é no sentido de que mais vale um culpado solto do que um inocente preso. A liberdade não pode ser restituída, não é um imóvel ou um carro. Se Brasília reconhece uma nulidade no processo que levou um réu a ficar dois anos preso, como se recupera esse tempo?", pondera o advogado.
Caleffi crê que não há motivo para privar de liberdade um réu que tenha respondido a essas etapas do processo também em liberdade. "Não há justificativa plausível. O Direito trabalha com prisão preventiva para presos de alta periculosidade, alguém que praticou crimes com violência extremada ou que representa um perigo para a sociedade. Não se pode retirar a liberdade de alguém sob argumento falacioso de impunidade. O problema, no Brasil, é a morosidade judicial", critica.
O advogado se refere ao parecer da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, enviado ao STF na semana passada, que defende a execução provisória da pena, entendendo que o impedimento dessa execução imediata gera impunidade e prescrição da pretensão definitiva. "Traz outras consequências indesejadas: o incentivo à interposição de recursos protelatórios, a morosidade da Justiça e a seletividade do sistema penal", afirma, no texto. A ministra Cármen Lúcia, que pode decidir retomar o tema diante do Plenário do STF, já afirmou que não o fará e que colocar a matéria novamente em julgamento por causa do ex-presidente Lula seria "apequenar o STF." Mesmo sofrendo pressão por parte de outros ministros da Corte, a decisão a respeito da pauta de julgamentos em plenário é prerrogativa da presidência do Supremo.
Presunção de não culpabilidade se enfraquece após 2ª instância, diz promotor
O entendimento do mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs) e autor do livro "Presunção de inocência e execução provisória no Brasil" (preço sugerido R$ 57,90, 181 páginas, editora Lumen Juris), Paulo Caleffi, não é unânime junto aos operadores do Direito do País. Para o promotor-assessor da Procuradoria de Recursos do Ministério Público do Rio Grande do Sul, João Pedro Xavier, o entendimento dos ministérios públicos brasileiros é favorável à execução provisória da pena. "A Constituição Federal fala em presunção de não culpabilidade, não exatamente de inocência. A inclusão do nome do réu no rol de culpados, por exemplo, não pode ser feita antes do trânsito em julgado da sentença, porque o processo ainda não foi julgado definitivamente", exemplifica.
Para ele, a interpretação da decisão dos ministros que foram favoráveis à execução da pena provisória em 2016 - Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes, Carmen Lúcia, Teori Zavascki e Dias Toffoli - se baseia no fato de que a presunção de não culpabilidade passa a se enfraquecer após os julgamentos em 1ª e 2ª instância. "Um julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e pelo Supremo Tribunal Federal (STF) não vai rediscutir fatos e provas. Se um sujeito foi condenado por roubo, não vai se discutir se ele estava no local ou não, se foi ele ou não, e sim, a infringência de dispositivos da lei federal ou da Constituição Federal."
O promotor acredita que esse entendimento não tenha sido muito bem compreendido pelos operadores do Direito em geral, acostumados a esperar que uma decisão dos tribunais superiores resolvesse alguma pendência. "Ao meu ver, essa decisão valoriza a jurisdição de 1º e 2º grau, e enfraquece a valorização dos recursos. Hoje em dia, qualquer processo pode chegar ao STF ou STJ, o que deixa os tribunais abarracados de processos, o que é inaceitável", acredita. Além disso, considerando que os ministros que votaram em 2016 são os mesmos atualmente - com exceção de Teori Zavascki, que faleceu e deu lugar ao ministro Alexandre de Moraes, é improvável que haja um novo entendimento da situação. "Há uma dúvida quanto ao voto de Moraes e também uma possibilidade de que o ministro Gilmar Mendes mude de opinião", pondera.
O vice-presidente administrativo da Associação de Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris), Orlando Faccini Neto, defende a necessidade de que o STF tome uma decisão clara sobre a matéria, a fim de evitar contradições, uma vez que crê que a instabilidade é pior. Pessoalmente, acredita que a Constituição Federal não impede a execução provisória da pena, de modo que se possa tanto admiti-la quanto interditá-la. "A execução provisória não viola a presunção de inocência, que vai sendo abalada por decisões de condenações, mas é necessário enfrentar o artigo 283, que diz que as pessoas só podem ser presas preventivamente ou após o trânsito em julgado", pondera o magistrado.