A extinção da Fundação de Ciência e Tecnologia do Estado (Cientec), aprovada em dezembro de 2016 pela Assembleia Legislativa e conduzida pelo governo de José Ivo Sartori (MDB), começa a ter efeitos práticos sobre indústrias do ramo eletroeletrônico que desenvolvem tecnologias no Rio Grande do Sul. As empresas foram surpreendidas com a ordem do governo estadual de suspender testes e outros serviços nos 25 laboratórios da instituição.
A medida está em vigor desde o dia 3 de novembro, quando o governo do Estado determinou, através da Comissão Especial de Modernização, que, "por força do decreto que regulamenta a extinção das fundações, a Cientec não receba amostras nem efetive a contratação de quaisquer novos serviços". Um eventual aceite de novo pedido" deverá ter o atendimento concluído, no máximo, até a próxima semana, em 3 de dezembro.
O impacto já é sentido e coloca em dúvida uma carteira de pedidos de ensaios. Indústrias gaúchas que utilizam os serviços da Cientec e desenvolvem produtos na fundação lamentam que os testes não sejam mais feitos e começam a dimensionar os prejuízos. Em alguns casos, como o dos ensaios eletromagnéticos, o trabalho só é feito pela fundação no Rio Grande do Sul. Com isso, os industriais terão de buscar laboratórios fora do Estado e apontam que os custos podem subir até quatro vezes, além do possível comprometimento de prazos de projetos de novos produtos.
O engenheiro Régis Koeche, gerente de Engenharia da Confiabilidade e Qualidade da Perto, uma das gigantes nacionais de tecnologias para bancos e varejo, explica que os produtos eram desenvolvidos na Cientec até atingirem os níveis exigidos para a certificação oficial no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). "Agora, vamos ter de enviar para São Paulo, tanto para os testes iniciais quanto para a certificação", projeta Koeche.
Por sua vez, oconsultor de Engenharia Elétrica da Resfriar, empresa de Vacaria que atua na área de climatização para caminhões e veículos de grande porte, Patrick Borella, relata que a empresa já está buscando laboratórios de fora do Estado para desenvolver os produtos. "Estamos fazendo (testes) com um laboratório privado de Campinas, em São Paulo, que torna mais caro tanto o desenvolvimento quanto a logística", lamenta Borella.
Instramed usa serviços da fundação desde 2002 para certificar produtos. Foto: Paulo Egidio/JC
Engenheiro eletricista da Instramed, indústria de equipamentos médico-hospitalares, Martin Behrens conta que a empresa utiliza os serviços da fundação desde 2002 e admite que a extinção se torna um grande empecilho. "Nossa ideia era de que, com o tempo, a Cientec investisse e pudesse fazer toda a certificação aqui", diz Behrens. Agora, a empresa vai ter de buscar laboratórios em São Paulo ou Curitiba.
Já o gerente de Engenharia na Inova Sistemas Eletrônicos, de Caxias do Sul, especializada na fabricação de controladores eletrônicos, Evandro Suzin, reforça que o fim do órgão pode gerar despesas e atrasos em projetos. "Os ensaios realizados para avaliar a conformidade dos produtos são utilizados para certificações nacionais e internacionais. Estamos todos com muito pesar com a necessidade de fechar um laboratório tão importante", declara Suzin.
Apesar da iminente extinção, a demanda da Cientec segue alta. "Ainda estamos recebendo pedidos quase que diários das empresas. Nosso cronograma está fechado até fevereiro de 2018", diz Leandro Nunes, gerente do Departamento de Engenharia Eletroeletrônica da Cientec. Equipamento para testes de lâmpadas LED, adquirido em junho, tem projetos para desenvolver até o fim de 2018, exemplifica.
A extinção da Cientec integra o pacote proposto pelo governo para reduzir custos e reestruturar a máquina pública do Estado. A medida foi aprovada no final do ano passado pela Assembleia Legislativa, com a extinção de outras fundações e órgãos públicos.
A reportagem solicitou explicações à Secretaria Estadual de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia sobre as razões da suspensão da prestação de serviços. A pasta respondeu através de nota e informou que a não renovação de alguns serviços "está de acordo com o andamento do processo de extinção e avaliação sobre a absorção de serviços por outras áreas, quando for o caso".
Até outubro, laboratórios atenderam 1,4 mil clientes
Laboratórios na Capital têm interesse em equipamentos da Cientec
CIENTEC/Divulgação/JC
A Fundação de Ciência e Tecnologia do Estado foi criada em 1972, no governo de Euclides Triches, para estimular o crescimento econômico e "aplicar métodos científicos e tecnológicos na solução de problemas peculiares de entidades privadas e governamentais".
A instituição tem 25 laboratórios, divididos em oito áreas de atuação: Tecnologia metalmecânica, Engenharia eletroeletrônica, Engenharia de processos, Alimentos, Construção Civil, Geotecnia, Química e Incubação de empresas de base tecnológica. De janeiro a outubro de 2017, cerca de 1,4 mil clientes foram atendidos e 33 mil serviços foram prestados pela entidade.
Atualmente, a principal atividade do departamento de eletroeletrônica são os ensaios de compatibilidade eletromagnética para desenvolvimento e certificação de produtos eletrônicos para áreas como telecomunicações, controle de automação, eletromedicina e indústria automotiva.
Além disso, são desenvolvidos projetos na área de navegação marítima, como um sistema de navegação digital para grandes embarcações (Sisnavega), desenvolvido junto à Technomaster, de São Leopoldo, e um console para estudo de manobrabilidade e navegação (Conavega), em parceria com o Centro de Instrução Almirante Graça Aranha (Ciaga) da Marinha do Brasil. Procurado, o Ciaga limitou-se a dizer que "está ciente" da pretensão do governo gaúcho de extinguir a fundação e informou que o desenvolvimento do Conavega vai até abril de 2018.
Quase a totalidade dos estudos na área é feita em parceria com empresas gaúchas e financiada pelo Ministério da Ciência e Tecnoloiga e pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Conforme o engenheiro Flávio Tarragô, coordenador do Laboratório de Interferência Eletromagnética, a fundação é a única no Estado apta a captar recursos federais para este tipo de projeto. Com demandas contratadas até o fim de 2018, o pesquisador aventa a possibilidade de o Estado sofrer sanções por não cumprir o planejamento firmado. "Com a extinção da fundação, os contratos vão ser quebrados. Quem vai se responsabilizar sobre isso?", questiona. Os pesquisadores advertem que, sem a atuação do órgão, a eletroeletrônica gaúcha deve perder competitividade.
Ministério Público investiga prejuízos com fim de convênios
Enquanto o governo do Estado encaminha o fim das atividades da Cientec, tramita, no Ministério Público (MP) do Rio Grande do Sul, um inquérito que busca apurar um eventual prejuízo ao caixa público decorrente da extinção da Fundação de Ciência e Tecnologia.
O foco da investigação está relacionado com a possível repercussão financeira da exclusão da entidade de convênios em andamento, inclusive com a Finep.
Conforme a promotora do MP estadual Luciana Alice, a destinação dos equipamentos vinculados aos convênios e contratos sob a guarda da estatal se insere no objeto do inquérito.
"No momento, o expediente está em instrução", disse a promotora em nota. O inquérito corre em segredo de Justiça. Há pouco mais de uma semana, "representantes (das áreas envolvidas com os projetos) comparecem ao MP em Porto Alegre para apresentar novos subsídios sobre a Cientec", informa o texto.
Negociação de ativos ainda é incerta
Laboratórios têm pesquisas em andamento previstas até fim de 2018
Paulo Egídio/JC
Em reunião-almoço no início do mês, a Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee-RS) manifestou apoio a que laboratórios gaúchos adquiram ativos da Fundação de Ciência e Tecnologia (Cientec). Com isso, as empresas locais poderiam continuar fazendo ensaios eletromagnéticos no Rio Grande do Sul, ganhando em competitividade e economizando recursos.
A medida é considerada importante em um período de retomada da atividade industrial, após dois anos de declínio. Dois laboratórios têm interesse nos ativos. O Labelo (Laboratórios Especializados em Eletroeletrônica, órgão da Pucrs) e a empresa multinacional UL Testtech, que tem unidade em Porto Alegre.
Entretanto, há questões a serem resolvidas antes que o negócio possa ser feito. Conforme o ex-presidente da fundação, Luiz Antonio Antoniazzi, os equipamentos não podem ser cedidos a terceiros, pois cerca de 80% dos materiais estão vinculados a projetos em andamento, impedindo a alienação.
Além disso, após a finalização dos estudos, há um prazo para a prestação de contas e um período estipulado pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), empresa federal de fomento à ciência e à tecnologia, que varia de cinco a 10 anos, até a posse definitiva para a fundação.
O gerente do Departamento de Engenharia Eletroeletrônica da Cientec, Leandro Nunes, explica que a regra atinge os aparelhos mais sofisticados, adquiridos em projetos ligados ao Ministério de Ciência e Tecnologia (Mctic). "Eles só perderão o vínculo com a Cientec depois do desenvolvimento completo do estudo. Depois disso, há mais um prazo para a Finep doar definitivamente", ressalta.
Procurada pela reportagem, a Finep afirmou, por meio de nota, que sabe da autorização para extinguir a Cientec, mas "nada foi informado sobre a paralisação das atividades da instituição". Cientec e Finep têm, hoje, três convênios que somam R$ 12,9 milhões, sendo que R$ 9,8 milhões já foram liberados.
Nunes alega, ainda, que os projetos não podem ser repassados à Secretaria do Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia (Sdect), que incorporará a fundação após a extinção. "Eles não podem ser absorvidos pela secretaria ou por qualquer outra instituição que não tenha os requisitos legais exigidos na época do edital de realização da pesquisa, de ser um Instituto Científico Tecnológico", explica.
Os pesquisadores apontam, ainda, outro empecilho à aquisição dos ativos por entes privados. Os equipamentos da Cientec são credenciados ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e foram adquiridos com isenção de impostos de importação.
Além de manter a oferta de serviços em solo gaúcho, há também preocupação com a eventual deterioração dos equipamentos de alto nível dos laboratórios da Fundação de Ciência e Tecnologia. Com o encerramento das atividades, esses ativos podem se deteriorar e perder valor de mercado se ficarem parados por um período mais longo.
A Secretaria do Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia diz que não há confirmação concreta em relação ao impasse que envolve os equipamentos, pois as alternativas ainda estão sendo avaliadas, e a questão não está totalmente definida. "Em relação a equipamentos e projetos em andamento, estão sendo avaliados caso a caso. Há contratos em vigor que precisam ser avaliados dentro da legalidade e dos prazos necessários para a sua finalização. Também há casos de equipamentos próprios ou que são resultantes de projetos com cofinanciamento de outros órgãos. Por isso, estamos avaliando cada situação de acordo com sua especificidade", diz a assessoria da pasta.