Enfim, o teatro Simões Lopes Neto foi inaugurado e, com ele, veio a finalização das obras do Multipalco. O Theatro São Pedro fechou suas portas e, enquanto assim permanecer, é o novo Teatro Simões Lopes Neto que receberá a programação semanal da fundação. Até maio, foi elaborada uma programação especial, com espetáculos convidados e curadoria de Gabriela Munhoz, a diretora de programação da Fundação. A obra escolhida para a inauguração foi uma ópera, considerada por muitos a mais completa das artes, porque reúne todas as demais manifestações artísticas. Flávio Leite, pela Companhia de Ópera do Rio Grande do Sul (Cors), e originalmente Evandro Matté, pela Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, elegeram Turandot, de Giacomo Puccini, como a primeira atração do novo palco.
Turandot é a última composição de Puccini, que faleceu antes de concluí-la. Segue a linha tradicional das óperas italianas, com grandes tragédias presentes no seu enredo. A fase final de Puccini, porém, optava pelos finais felizes, apesar de todas as aberrações que pudessem ocorrer ao longo da trama, como acontece com Turandot, uma personagem despótica - tomada pelo ódio e a vingança - mas que depois se rende ao Amor. Esta é a lição pretendida por Puccini. Não há discussão moral sobre os desvarios de Turandot, mas se valoriza o espírito de sacrifício de Liú, a escrava que, apaixonada por Calaf, o herói, se imola em nome do Amor, sacrificando sua vida para fazer vencer o sentimento em si. Por isso, de certo modo, Liú (aqui interpretada emocionadamente por Gabriella Pasce), é personagem mais importante que a própria Turandot (vivida por Eiko Senda, com forte presença cênica). No palco, contudo, tanto por força do libreto de Giuseppe Adami e Renato Simoni (inspirados em peça teatral de Carlo Gozzi adaptada pelo dramaturgo Friedrich Schiller), é a figura de Calaf que permanece quase que todo o tempo em cena, e graças ao tenor Enrique Bravo alcançou uma performance inesquecível: sua voz é límpida, tem poder e extensão e sua interpretação é segura e apaixonada.
Do ponto de vista musical, Turandot dá maior ênfase ao conjunto orquestral e ao coral: as passagens de solistas, com as árias ou a intervenção de personagens variados, apenas fazem as pontes necessárias para o desenvolvimento do enredo, à exceção dos personagens cômicos dos ministros Ping, Pong e Pang que, até pelos seus nomes, nos remetem à comedia dell'arte italiana. Apesar disso, a relativamente curta intervenção dos solistas é extraordinária: não por um acaso, a ária Nessun dorma, interpretada por Calaf, é das mais conhecidas mundialmente. A Orquestra Sinfônica do Porto Alegre foi cativada pelo maestro argentino Carlos Vieu, tão simpático quanto preciso na leitura da partitura, e a grande surpresa foi o coro lírico preparado por Sérgio Sisto, absolutamente afinado e de uma presença cênica que empolgou, deixando para trás aquelas movimentações mecânicas ridículas que em geral irritam ao espectador, graças à coreografia de Carlota Albuquerque.
A concepção cênica de Yara Balboni foi um tour de force: são pequenos elementos que, no entanto, dão grandiosidade ao espaço, caracterizando os diferentes lugares em que o drama ocorre, inclusive a praça pública de Pequim. A iluminação e a videografia de Ricardo Vivian fizeram com que também poucos movimentos permitissem uma variação quase infinita de situações, concretizando a dramaticidade do libreto, desenvolvido pela partitura musical, ampliados pelos inesquecíveis figurinos de Daniel Lion e o visagismo de Gabriele Ávila. Com muito pouco, estes técnicos artistas fizeram um muito inesperado e inebriante, que surpreendeu o público. A legendagem da Calíope, por fim, foi preciosa, fiel, e sempre ocorreu no momento certo, o que ajuda no acompanhamento da trama.
Em síntese, quem assistiu saiu entusiasmado. A Cors, com esta obra, dá um grande salto de qualidade e evidencia competência, criatividade e potencialidades que vão aumentando à medida em que suas temporadas se desenvolvem. A programação da nova sala prossegue, ao longo de abril e de maio. Mas começou muito bem, com destaque especial à acústica, que encantou a todos. Deverá ser melhorado, contudo, o problema do ruído provocado pelo ar condicionado.