O sol subia no horizonte, quando o cantor e compositor Raul Ellwanger acordou com batidas na porta. "Abre, abre", pedia o poeta Ferreira Gullar, com a letra de uma canção manuscrita em uma folha de papel. "Vê se apronta a melodia antes do voo do Vinicius de volta para o Brasil".
Horas antes, uma roda de exilados havia matado a saudade do Brasil ao redor de uma mesa do restaurante München, na Calle Talcahuano, em Buenos Aires, ao jantar com Vinicius de Moraes, que tinha se apresentado àquela noite em um dos teatros da Avenida Corrientes. Afável e conversador, de braço dado com a namorada argentina Marta Rodriguez, Vinicius recomendou a Gullar, que reclamava da solidão do exílio: "Pô, bicho, larga dessa mania de poesia séria. Faz como eu. Estou faturando e me divertindo à pampa, fazendo uns sambas bem bonitinhos aí. As moças estão gostando".
De manhã, de posse da folha manuscrita, Ellwanger pegou o violão e, movido a café e cigarros, compôs e gravou em uma fita-cassete a canção Te procuro lá a tempo de ser mostrada a Vinicius. O ritmo alegre do samba disfarça a doce melancolia dos versos, que citam o Maranhão, terra natal de Gullar, e o Peru, onde o poeta havia morado antes de se transferir para a Argentina.
O episódio datado da década de 1970 está relatado no livro Nas velas do violão - Crônicas, letras e partituras (Edição do autor, 2016), de Ellwanger, que está completando 55 anos de carreira em 2021. "Raul é um dos poucos músicos que fazem a ponte entre Rio de Janeiro, Porto Alegre e Buenos Aires, graças à influência da canção platina filtrada pela sofisticada harmonia da bossa nova", diz o saxofonista e flautista Luizinho Santos, proprietário do Café Fon Fon, palco privilegiado dos músicos na capital gaúcha.
Te procuro lá é uma das mais de 200 canções compostas por Ellwanger, que possui repertório registrado em português, espanhol, alemão, italiano, francês e catalão por intérpretes como Elis Regina, Beth Carvalho, Mercedes Sosa, León Gieco, Fafá de Belém, Pablo Milanez, Tarragô Ros e Renato Borghetti. A parceria com Ferreira Gullar apareceu em Paralelo 30, coletânea lançada pela ISAEC em 1978, que contava também com Nelson Coelho de Castro, Cláudio Vera Cruz, Carlinhos Hartlieb, Bebeto Alves e Nando D'Ávila. "A ideia era mostrar a música popular do Brasil feita com sotaque gaúcho. Te procuro lá e Maria da Paz (de Hartlieb) foram as que mais fizeram sucesso", relata o jornalista Juarez Fonseca, produtor de Paralelo 30.
Ellwanger continua abrindo novos caminhos. Em 2019, lançou Cantata Sete Povos, suíte de 12 canções para voz e pequena orquestra de câmara sobre a saga de guaranis e jesuítas no período colonial luso-espanhol. E, agora, realizou o sonho de mesclar música popular e erudita com o álbum Na Rua da Margem, gravado com o violonista Daniel Wolff (primeiro doutor em violão no Brasil), alternando faixas inéditas e releituras de clássicos como Pealo de sangue e Cigana tirana.
Versos de 'Te procuro lá' (Raul Ellwanger e Ferreira Gullar)
Ferreira Gullar e o jovem Raul
/ACERVO PESSOAL RAUL ELLWANGER/DIVULGAÇÃO/JC
"Pode mudar de babado
Mudar de sapateado
Pode ficar numa boa
Pode bancar a careta
Pode mudar de país
Pode mudar de planeta
Pode pintar o nariz
Pode ir pro fundo do mar
Eu te procuro lá"
Uma serenata para a Miss Universo
Nascido na Capital em 17 de novembro de 1947, se criou na Mostardeiro
FREDY VIEIRA/JC
"Porto-alegrinas" - é como Raul Ellwanger define a leva de canções que compôs em homenagem a Porto Alegre, onde nasceu a 17 de novembro de 1947. Entre elas, estão O mapa (sobre poema de Mario Quintana), Rainha dos Navegantes (gravada com Nelson Coelho de Castro), Olhar gentil (valsa que saúda o fotógrafo Ricardo Stricher e o Bar Odeon) e Como vai você, Porto Alegre ("elogio ingênuo" à cidade natal).
Ele se criou na rua Mostardeiro, à época uma via com pista de areão, exceto no trecho de aclive até a Bordini, onde um amontoado irregular de pedras buscava suavizar a subida. Em dias de chuva, a diversão da molecada era ficar de tocaia para observar as carroças que deslizavam lomba abaixo. "Certa vez, um cavalo entrou dentro de um fusca pelo para-brisa", relembra.
Do lado paterno, a família é oriunda de Ellwangen, a 100 km de Stuttgart, na Alemanha. O pai, Walmor, e o avô, Jacob, construíram tradição no ramo farmacêutico em Porto Alegre com uma drogaria na rua Doutor Flores, que teve vários nomes - Ellwanger, Brasil e Velgos (ao se juntar à Panitz, deu origem às farmácias Panvel). Já o avô materno, Antônio Moura, que tinha vindo da região das Missões Jesuíticas, era dono de um galpão que comercializava produtos agropecuários na Voluntários da Pátria. Na memória, Ellwanger conserva o cheiro de "couro salgado" impregnado nas roupas, após brincar no trenzinho que transportava mercadorias do galpão até o porto.
Antes de aprender a tocar um instrumento musical, ele se destacou como goleador nos campinhos de terra em torno do atual Parcão, após a desativação da Baixada (primeiro estádio do Grêmio), em 1954, e do Prado Independência (antiga sede do Jockey Club do Rio Grande do Sul), em 1959.
O centroavante com faro de gol jogou também no time do IPA, onde teve como mentor o professor de Educação Física Selviro Rodrigues, campeão gaúcho de futebol profissional como técnico do Renner, em 1954. Ellwanger chegou a treinar no Cruzeiro, de Porto Alegre, mas desistiu da carreira esportiva, não sem antes conquistar o campeonato metropolitano de futebol de salão pela Associação Leopoldina Juvenil.
Desde cedo, a música se fez presente na vida familiar ao escutar a mãe, Maria Amélia, tocar acordeom e a avó materna, Frida, executar composições de Mahler e Schumann ao piano. Na vitrola, ecoavam long-plays adquiridos pelo pai na loja Imcosul, com Frank Sinatra, Bing Crosby e Glenn Miller, além de trilhas de Hollywood, a exemplo de Over the rainbow, do filme O mágico de Oz, sem falar em Orlando Silva e Lupicínio Rodrigues. Outra fonte de inspiração era a coleção de compactos simples coloridos, Disquinho, que reproduzia clássicos da literatura infantil embalados por composições de Braguinha (João de Barro) com orquestração de Radamés Gnattalli.
As influências musicais se expandiam nos bailes de Carnaval durante o veraneio em Capão da Canoa. Fora da folia de Momo, conjuntos melódicos como Je Reviens e Flamingo animavam festas na SACC ou no salão do Hotel Rio-Grandense, prédio que, anos depois, abrigaria o Boliche, ponto de encontro de jovens veranistas. Artistas de renome nacional, como Roberto Carlos, Germano Mathias, Salomé Parísio e Anísio Silva, também percorriam o Litoral Norte, como recorda Raul: "Os caras faziam cinco ou seis shows por noite, viajando de carro pela beira do mar de Tramandaí a Torres".
Porém, o maior estímulo para se transformar em músico foi dado - de modo involuntário, é verdade - por uma beldade. Eleita Miss Universo em 1963, Ieda Maria Vargas havia se tornado não só uma celebridade, mas motivo de orgulho dos gaúchos. Com o amigo Homero Lopes Filho, decidiu homenageá-la com uma serenata em Capão da Canoa, balneário também frequentado pela musa.
Antes de levar a cabo a cantoria, os moços aprenderam os acordes de Leva eu sodade (sucesso radiofônico de Nilo Amaro e os Cantores de Ébano) com Brigite, prima de Raul, que estava mais adiantada nos estudos de violão. Quando chegaram à casa da Miss Universo, ela apareceu à janela de penhoar e, um tanto sem jeito, sorriu e agradeceu, antes de dar boa noite e desaparecer atrás da veneziana.
A era dos festivais
Em 1968, Ellwanger inscreveu O gaúcho no Festival Sul-Brasileiro da Canção
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Raul Ellwanger subiu ao palco, pela primeira vez, no Salão de Atos da Pucrs, para o show coletivo PUC 66 Fala de Amor em Tom e Verso (ele havia recém ingressado no curso de Direito). Já fazia shows em barzinhos e centros acadêmicos, quando passou a frequentar o Clube de Cultura, onde se reunia a nova geração de músicos (Cesar Dorfman, Sérgio Napp, Mauro Kwitko, Wanderlei Falkenberg e Laís Aquino).
Esses encontros geraram a Frente Gaúcha de Música Popular (FGMP), lançada no show de comemoração do aniversário da Folha da Tarde e da Rádio Guaíba, no ginásio do Grêmio Náutico Gaúcho, em abril de 1968, que teve Elis Regina como atração principal. A FGMP realizaria mais duas exibições, no Clube de Cultura e no Teatro Leopoldina, antes de se dissolver.
Na segunda metade dos anos 1960, a música popular vivia o apogeu da era dos festivais, que se refletiu em Porto Alegre com o Festival Universitário da MPB, no Salão de Atos da Ufrgs, transmitido pela TV Piratini. Sim ou não, de Raul Ellwanger, saiu no disco das 12 melhores canções da mostra competitiva. Embora tenha sido defendida pelo autor no Salão de Atos (acompanhado da Ospa, com regência do alemão Alfred Hülsberg), ganhou a voz de Junaldo, do grupo Manifesto, na versão fonográfica por opção da gravadora Philips, que pretendia valorizar o próprio cast.
Em 1968, Ellwanger inscreveu O gaúcho no Festival Sul-Brasileiro da Canção, com transmissão da TV Gaúcha, classificando-se em segundo lugar (a vencedora foi Pandeiro de prata, de Túlio Piva). As cinco primeiras se habilitavam para a etapa nacional O Brasil canta no Rio, da TV Excelsior. "Como os promotores ofereciam só uma passagem de avião para cada concorrente, a comitiva gaúcha alugou um ônibus para levar os instrumentistas e intérpretes à finalíssima no Maracanãzinho", conta Cesar Dorfman, 3º colocado na fase regional com a música Sonho.
Bem que Ellwanger poderia ter sido o primeiro gaúcho a tomar parte do mais badalado festival do País, o da TV Record. Em setembro de 1968, um telegrama assinado pelo produtor Solano Ribeiro solicitou o envio de fita gravada e partitura da música Ontem, hoje, sempre, a fim de preparar os arranjos orquestrais. Mas Raul preferiu não comparecer ao teatro da Record, com temor de sair algemado do palco.
O sumiço do pianista
Raul Ellwanger entre os cantores argentinos León Gieco e Mercedes Sosa
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Jurado do Festival Sul-Brasileiro, o advogado Carlos Araújo se encantou com o tom engajado de O gaúcho. Em especial, um verso chamou sua atenção: "Pros milicos trago estrago, pro inimigo outro balaço". Ao saber que o autor cursava Direito, convidou o rapaz para estagiar em seu escritório de causas trabalhistas. Com a remuneração, Ellwanger alugou um apartamento na rua Botafogo, no Menino Deus, e comprou um fusquinha velho.
Até aí, não tinha propriamente militância política, embora se inspirasse no ardor rebelde da juventude para compor: "Os jovens, de modo geral, eram contra o governo militar, em diferentes graus de intensidade". Por influência de Araújo, aderiu ao grupo que, mais tarde, formaria a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares, na qual também estava Dilma Rousseff (casada com Araújo à época).
Em setembro de 1969, já vivendo em São Paulo, Ellwanger passou para a clandestinidade com o codinome Gaspar. À medida que militantes de esquerda iam sendo presos, optou por deixar o País. Hoje, diz não se orgulhar da decisão: "Foi como desertar de uma guerra, o que pode ser interpretado como sinal de fraqueza". Mas admite que não tinha preparação intelectual nem maturidade pessoal para suportar as práticas repressivas do estado brasileiro, que, naquele momento, incluíam a tortura e o assassinato de prisioneiros políticos.
De 1970 a 1977, Ellwanger viveu fora do Brasil, a princípio no Chile, depois na Argentina, ao lado da cantora Nana Chaves, com quem estava casado e teve o filho Santiago. No exílio, estudou Sociologia, além de ampliar o domínio técnico do violão no Conservatório Superior de Música Manuel de Falla, de Buenos Aires.
Fora isso, estreitou laços com ritmos latino-americanos, como a milonga e a chacareira, aproximando-se de artistas com os quais gravaria, nos anos 1980, os discos La cuca del hombre, na Argentina, e Portuñol, no Uruguai (é também autor de versões como a de Eu só peço a Deus, do argentino León Gieco, sucesso no Brasil com Beth Carvalho e Mercedes Sosa).
Ellwanger testemunhou de perto a violência da cena política argentina da época. Em 18 de março de 1976, batia papo com o baterista Mutinho (sobrinho de Lupicínio Rodrigues) e o pianista Tenório Jr. no saguão do Hotel Normandie - "Ainda sinto o cheiro daquelas imensas poltronas de couro", diz, talvez lembrando dos aromas da loja do avô materno. A conversa foi interrompida quando Tenório Jr., após se dirigir à portaria para atender a um telefonema, disse que precisava ir até a farmácia da esquina buscar aspirinas para sua acompanhante.
Até hoje, não há uma versão oficial para o desaparecimento do pianista, que jamais retornou ao hotel. Claudio Vallejos, ex-integrante do serviço secreto da Marinha argentina, afirmou à revista Senhor que Tenório Jr. (confundido com um ativista político) teria sido sequestrado a poucos metros do Normandie, sendo depois torturado e morto com um tiro na cabeça.
Versos do clássico 'Pealo de sangue' (Raul Ellwanger)
Ellwanger com Gieco no Cafe Vinilo em 2010, evento Expresso Porto Alegre em Buenos Aires
CARLOS FURMAN/DIVULGAÇÃO/JC
"Que mistérios trago no peito
Que tristezas guardo comigo
Se meu sangue é colono, é gaúcho
Lá no campo é que encontro abrigo (...)
Velho Rio Grande
Velho Guaíba
Sei que um dia será novo dia
Brotando em teu coração
Quem viver saberá que é possível
Quem lutar ganhará seu quinhão"
O cultivo das bromélias
Antes de voltar à Capital na virada do século, músico viveu na Praia do Rosa
/RENE CABRALES-SIMPRO/DIVULGAÇÃO/JC
Música mais conhecida do repertório de Raul Ellwanger, Pealo de sangue foi composta no apartamento em que ele morava na Rua Tito Lívio Zambecari, no bairro Mont'Serrat, após a volta do exílio, em 1977. "Tem certo tipo de canção que vai sendo gestada lentamente lá dentro da gente, sem esboço ou anotação para lembrar depois. Quando brota, sai pronta e inteira", diz o compositor a respeito de Pealo de sangue, que conta com mais de 30 edições fonográficas em cinco países. Favorita de corais comunitários, tem versões nos gêneros instrumental e sertanejo.
Curiosamente, lançada como a faixa 5 de Teimoso e vivo, disco de estreia pela ISAEC, em 1979, ficou esquecida até meados dos anos 1980, quando o publicitário Fernando Westphalen, o Judeu - criador da Continental AM 1120, pioneira das emissoras de rádio voltadas para o público jovem no Sul do Brasil -, pediu autorização para usá-la como trilha de um comercial de televisão, que emocionou o público e a transformou em sucesso de uma hora para outra.
Já a música-título de Teimoso e vivo - LP gravado com contribuições de Jerônimo Jardim, Zé Gomes, Cristóvão Bastos, Nelson Aires e Wagner Tiso - tomou emprestado (e rebatizou) o poema Apesar de tudo, de Nei Duclós. Os versos do poeta uruguaianense (hoje radicado em Florianópolis) emocionaram Raul especialmente por causa de um episódio ocorrido anos antes, quando circularam rumores da morte do compositor, com minúcias como a chegada do caixão lacrado a Porto Alegre para sepultamento de madrugada. "Muita pena causou este boato à minha família e aos amigos. Assim que pude, tratei de gritar bem alto: 'Teimoso e vivo'".
O álbum sairia novamente em 1980 pela Bandeirantes Discos, acrescido da faixa Pequeno exilado, com participação de Elis Regina. A gravação da cantora foi efetuada no estúdio Gazetão, em São Paulo, em paralelo à produção do LP Saudade do Brasil, que ela lançou naquele ano. "Ao terminar de cantar, secando uma lágrima impertinente, Elis trocou de sala e gravou imediatamente Alô, alô, marciano (de Rita Lee e Roberto de Carvalho), em clima absolutamente diverso", pontua Ellwanger.
Nos anos 1990, Ellwanger alternou a carreira artística com a vida praieira, depois que abriu, em 1994, a pousada Estação Baleia, na Praia do Rosa, em Imbituba (SC). A propriedade de 1,7 hectare havia sido adquirida junto à Mata Atlântica, ao final da década de 1970, quando o povoado estava longe de ser o sofisticado ponto turístico no qual viria a se transformar. "Era um moinho com um boizinho, que ficou atirado lá durante anos."
Com o dinheiro de excursões para França, Alemanha, Suíça e Portugal, o cantor construiu quatro cabanas para hóspedes e um ranchinho para a família. Graças ao boom de turistas argentinos, a cada ano erguia novas acomodações para ampliar o negócio, atualmente aos cuidados do filho Santiago.
Até voltar a viver em Porto Alegre, na virada do século, Ellwanger dedicou-se ao cultivo de bromélias e a produzir um rol de "canções catarinas", como qualifica as peças musicais que exaltam a simplicidade e as raízes açorianas da cultura local.
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* Paulo César Teixeira é jornalista com textos publicados em IstoÉ, Veja e Folha de S.Paulo. Escreveu os livros Esquina Maldita e Nega Lu - Uma Dama de Barba Malfeita, além de Rua da Margem - Histórias de Porto Alegre, baseado no portal do autor, www.ruadamargem.com.