Porto Alegre já teve dono. Foi um filho da Capital nascido em 1922, no último dia do ano. Augusto César Cunha Carneiro conta que conhecia todas as ruas da cidade, o que lhe permitia reivindicar o título. É essa passagem, narrada por ele próprio, que abre um pequeno documentário em sua homenagem, produzido por Clarinha Glock e gravado em 2007. Quem o conheceu não se atreveria a discordar.
Para a jornalista Lilian Dreyer, autora da biografia “Augusto Carneiro: Depois de tudo, um ecologista”, ele foi, ao lado de pessoas como José Lutzenberger e Hilda Zimmermann, um “cometa que baixou” em Porto Alegre num “momento abençoado de conjunção”. Somados a outros nomes, marcaram o movimento ambientalista local e serviram de inspiração no Brasil e fora, por meio da pioneira Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), criada em 27 de abril de 1971.
Sem essas pessoas, “muitas das coisas pelas quais continuamos brigando hoje nem teriam mais para brigar”, aposta a jornalista. Do grupo formalmente constituído em 1971, Lutz é certamente a personagem mais ilustre. Mas o que se construiu não se deve a ele somente. “Sem o Carneiro, não existiria a Agapan”, disse ele em entrevista ao jornalista João Batista Santafé Aguiar, trecho reproduzido no livro de Dreyer.
Neste dia 31 de dezembro se completa o centenário do nascimento de Augusto Carneiro, que deixou vago o posto de dono da cidade em abril de 2014. Deixou também, como legado, o respeito à natureza, motivo pelo qual é lembrado até hoje.
A ele, que foi um leitor voraz e colecionador das notícias publicadas em jornais e revistas, esta página é singelo um reconhecimento. Mas dá para ir além, convida Dreyer, e “entrar em cena, abrir a boca e fazer o que (os pioneiros) sempre fizeram” pela preservação ambiental. É como recuperar uma ideia que nasceu lá atrás e levantar a onda sempre que for o momento adequado – e agora é.
Carneiro e a cidade: o olhar para as árvores de rua
Ao lado da ânsia por compartilhar o que sabia sobre ecologia, começando a explicação do zero, se fosse preciso, para atrair um novo adepto da causa, é consenso entre quem conheceu Augusto Carneiro dizer ele que se posicionaria mais uma vez, se vivo fosse, contra o tratamento dado atualmente às árvores de rua da Capital.
Quando se trata do setor público municipal, a função que tradicionalmente ficava sob os cuidados da Secretaria de Meio Ambiente é, no governo atual, terceirizada, sob controle da pasta de Serviços Urbanos. “A qualidade caiu e não vemos esforço para o plantio. Se perdeu a prática do cuidado da arborização”, aponta Paulo Renato Menezes, secretário geral da Agapan.
É um exercício sempre difícil e fadado ao achismo deduzir qual seria a reação de alguém que já se foi perante um fato do presente. Mas não há exagero em imaginar Carneiro revoltado com a poda das árvores em plena primavera no hemisfério sul, como tem acontecido em Porto Alegre.
“Penso muito, se o pai estivesse vivo, o que iria achar dessas coisas que estão acontecendo”, divaga a filha Andréia Maranhão Carneiro, fruto que não caiu longe do pé: bióloga no Jardim Botânico de Porto Alegre e doutora em Ecologia Vegetal, herdou o gosto pela natureza e o interesse em preservá-la.
Algumas semanas atrás, antes do verão chegar, Andréia avisou uma “poda drástica” que atribui, “além do desconhecimento”, a expressão de que os responsáveis pela poda (naquele caso, a concessionária de energia) “pouco se importam se tem aves na árvore”. E conclui: “o pai iria ficar horrorizado”.
Certamente. O retrato de Carneiro como alguém que se colocaria entre o vegetal e a motosserra aparece em diversos depoimentos a seu respeito. “Ele agia pessoalmente contra essa devastação que ocorre na poda de árvores para proteger a fiação elétrica. Fazia disso uma atividade permanente”, lembra Caio Lustosa, advogado, político e envolvido com a pauta desde os anos iniciais da Agapan.
Diante da derrubada de árvores perto da Usina do Gasômetro, em 2013, Carneiro disse a Lilian Dreyer que “é triste, apesar de tantos anos de esclarecimento, sempre de novo aparecem os que acreditam que natureza e progresso são coisas incompatíveis, quando na verdade o desenvolvimento de um povo se mede por sua capacidade de evoluir sem destruir”. O desabafo, transcrito na biografia do ecologista, poderia ser feito hoje.
Carneiro e os livros: conquista pelo convencimento
Ecologista tornou-se o livreiro da feira
TÂNIA MEINERZ/ARQUIVO
Augusto Carneiro exerceu um ativismo embasado em argumentos, conta Lilian Dreyer. Dizia que não basta ser militante, é preciso ser estudioso, recorda Paulo Renato Menezes. E ele foi. Na biografia, Dreyer revelou Augusto Carneiro como um leitor voraz desde a infância. Ao longo dos 91 anos vividos, “se alimentou das mais diferentes fontes” e fez do contato com os livros seu ofício.
Na juventude foi o guardião dos livros do Partido Comunista em Porto Alegre. Em 1955, teve uma banca na primeira edição da Feira do Livro da Capital. Mais tarde, formou-se em Direito e seguiu carreira no Serviço Público. Nem por isso deixou os livros de lado. “Tinha uma biblioteca fantástica!”, exalta Dreyer.
O conhecimento – e a ânsia por compartilhá-lo – rendeu-lhe, já aposentado, o título de livreiro da Feira dos Agricultores Ecologistas, inicialmente organizada pela Cooperativa Colméia. Carneiro “comprava e fazia o teste: antes de oferecer, lia”, lembra João Batista Santafé Aguiar. Com isso, “conseguia influenciar não por obrigação, mas pelo convencimento”.
Lilian Dreyer vai além: “o Carneiro tinha esse arquétipo do velho sábio, mesmo quando jovem. Parado embaixo de uma árvore, explicando as coisas da vida, muitas vezes só pelo ouvir as pessoas se sentiam engajadas”.