Na segunda metade do século XIX, surge, no Brasil, a profissão "guarda-livros", expressão que se referia ao atual profissional de contabilidade. Na época, suas funções compreendiam, entre outras coisas, elaborar contratos e distratos; controlar a entrada e saída de dinheiro; produzir correspondências e se responsabilizar por toda a escrituração mercantil. Uma boa caligrafia também era recomendada, já que a contabilidade era feita toda à mão. De lá pra cá, muita coisa mudou e os processos que eram manuais foram, cada vez mais, migrando para o digital.
Para o coordenador da Comissão de Estudos de Tecnologia da Informação do Conselho Regional de Contabilidade do Rio Grande do Sul (CRCRS), Ricardo Bitencourt, o saldo para a área contábil dessa transformação tem sido positivo até aqui. "Automatizou processos, tornou mais ágil o acesso à informação e proporcionou decisões mais acertadas nos negócios, baseadas na contabilidade", resume.
Entre as ferramentas tecnológicas responsáveis por essas mudanças está o Enterprise Resources Planning (ERP), conhecido também como Sistemas Integrados. Trata-se de um software que visa à automação dos procedimentos de uma empresa. Na contabilidade, o ERP reúne todas as funções contábeis em um sistema, além de permitir tanto o compartilhamento quanto a geração de dados em tempo real, o que facilita a gestão e controle de todos os setores de uma organização.
Em 2014, no Rio Grande do Sul, iniciativa da Secretaria da Fazenda do Estado em parceria com o CRCRS deu um passo importante na democratização do ERP com escritórios de contabilidade. "Foi implantado o serviço de integração com as empresas de serviços contábeis. Com isso, as notas fiscais eletrônicas dos clientes do escritório são 'baixadas' através de uma procuração eletrônica do cliente para o escritório e, após, processadas", explica Bitencourt.
As exigências do Fisco também foram importantes para o avanço tecnológico na contabilidade. Como exemplo, é possível citar o Sistema Público de Escrituração Digital (Sped), criado ainda em 2007 pela Receita Federal com o objetivo de modernizar as relações entre o órgão e o contribuinte.
O sistema é composto por uma série de obrigações acessórias que são entregues conforme o setor ou departamento da empresa. Entre elas, aparecem a Nota Fiscal Eletrônica (NF-e), a Contabilidade Digital (ECD), a Escrituração Fiscal Digital (EFD ICMS e IPI) e o eSocial.
Pesquisa "Tax do Amanhã" realizada em 2020 pela Deloitte com empresas de diferentes segmentos e portes do País mostra que a emissão de notas fiscais, a entrega de obrigações (como o Sped Fiscal) e os lançamentos de saída são ações que já são realizadas automaticamente por mais de sete em cada dez empresas pesquisadas. O levantamento aponta que somente 4% das companhias entrevistadas não contam com nenhuma operação fiscal automatizada.
Para o coordenador da Comissão de Estudos de Tecnologia da Informação do CRCRS, o mercado, naturalmente, tem levado o setor contábil para o caminho da inovação. "O profissional da contabilidade foi um dos precursores na utilização da tecnologia desde os primórdios da microinformática, sendo o sistema público de escrituração digital um dos maiores exemplos. Hoje, mais do que nunca, o contador tem que conhecer até uma estrutura de arquivos, seja para integração entre sistemas ou para uma conferência. Aquele que tiver a atenção voltada à tecnologia, acompanhará o mercado. Os demais, por sua vez, terão que se reinventar em outra atividade", enfatiza o contador.
Entre as tendências tecnológicas na área contábil que o profissional deve estar atento, Bitencourt cita as APIs (Application Programming Interface), um conjunto de normas que possibilita a comunicação entre plataformas através de uma série de padrões e protocolos e que, segundo ele, trará ao mercado de contabilidade mais agilidade na geração das informações.
Escritórios se adaptam às inovações para atender clientela mais exigente
Valdir Rodrigues
Aupercon Escritório Contábil/divulgação/jc
Ataques do 11 de setembro; o surgimento do Facebook e demais redes sociais; a revolução gerada pela internet móvel; a eleição do primeiro Papa da América Latina e do primeiro negro na Casa Branca; aparição das criptomoedas e uma pandemia. Esses foram alguns dos acontecimentos que marcaram a História nos últimos 20 anos.
Da mesma forma, a contabilidade passou por diversas transformações desde o início do século XXI, especialmente com a evolução tecnológica na área, que o JC Contabilidade pode acompanhar por meio de reportagens e opiniões de especialistas. Nesta edição especial, compartilhamos a experiência de dois escritórios contábeis que atravessaram todo esse período: a Dahmer Contabilidade, da sócia Silvia Dahmer e o Aupercon Escritório Contábil, do sócio e contador Valdir Ferreira Rodrigues.
JC Contabilidade - De que forma a tecnologia impactou a rotina do seu escritório de contabilidade nas últimas duas décadas?
Silvia Dahmer - A tecnologia foi fundamental para a sobrevivência do setor contábil durante a pandemia, este foi o momento em que nos transformamos em uma empresa de contabilidade digital. Nas últimas duas décadas, foi necessário muito investimento em tecnologia, tais como, uma boa internet, a utilização de diversos softwares, a migração total de nosso banco de dados para a nuvem, compartilhamento de pastas e arquivos com os clientes. Como consequência, eliminando a circulação de papéis que além de encarecer a operação, afeta negativamente o meio ambiente.
Valdir Rodrigues - As últimas duas décadas foram intensas para toda a humanidade. No ambiente empresarial, em particular, nos escritórios de contabilidade, foi necessário adaptação, inovação e muito aprendizado. As rotinas, os processos, o relacionamento com os clientes, a gestão, tudo foi impactado e continua sendo impactado diariamente. O nosso escritório acompanhou esses movimentos com atenção, sempre observando oportunidades de investimento em tecnologia para manter a qualidade e a segurança dos nossos serviços.
Contab - Pode citar exemplos de mudanças em processos que eram feitos no dia a dia do escritório e que mudaram ou foram extintos com o advento da tecnologia?
Silvia - Claro, e são muitos. Começando pela nota fiscal que era emitida de forma manual e em papel, registrávamos as notas em livros também manualmente e não podia conter rasuras. Os livros contábeis eram feitos em máquinas de datilografia, enormes, e depois transferidas para um livro em branco através de uma folha de gelatina. Tínhamos um fichário onde armazenávamos as fichas de Razão individualizadas por conta contábil. Uma trabalheira enorme. As GIAS informativas e guias de recolhimento de impostos eram feitas através de formulários padronizados e datilografados. Hoje em dia é tudo eletrônico, a remessa de informações é virtual, os dados digitados são mínimos pois a maioria é integrado e ainda temos softwares de conferência de informações e de controle de tarefas.
Rodrigues - A prestação do serviço contábil acompanhou a evolução tecnológica. Há 20 anos, os processos eram mais demorados e havia maior risco de erro. As atividades eram mais manuais. Trabalhávamos em meio a muito papel, havia espaços tomados por arquivos para consulta, as rotinas eram mais engessadas e frágeis. Atualmente, com a tecnologia e a evolução da própria contabilidade, atuamos num ambiente mais ágil, seguro e próximo, com rotinas modeladas de acordo com as melhores práticas de gestão, alinhadas às ferramentas que a tecnologia nos oferece.
Contab - Houve um receio inicial de adaptação a essas tecnologias e de que elas poderiam significar um enfraquecimento do profissional de contabilidade?
Silvia - Não, eu sempre fui muito mente aberta e tenho atração pelo novo. Me adequo facilmente com mudanças. Bem pelo contrário, o antigo guarda-livro aos poucos deu lugar para o contador consultivo.
Rodrigues - Num primeiro momento, qualquer mudança traz insegurança. Há o receio de não nos adaptarmos, a preocupação e a ansiedade para aprender rapidamente sobre as novidades, para desenvolver as novas habilidades, para acompanhar a evolução. Mas, se considerarmos que a revolução tecnológica não é mais algo novo, entendo que já nos acostumamos à necessidade de nos adaptarmos o tempo todo. O profissional de contabilidade que não acompanha a evolução tecnológica, não consegue permanecer atuando no mercado.
Contab - Conforme a sua experiência, o que precisou mudar na mente do empresário e do contador que encarou essa época transitória?
Silvia - Foi importante entender que a evolução faz parte do processo, requer mudanças e que o avanço tecnológico passou a ser nosso aliado. Não podemos ter medo de se reinventar.
Rodrigues - Acompanhamos a evolução da sociedade e, por consequência, da profissão contábil. Nós, contadores e empresários, tivemos que acompanhar as novidades, estar disponíveis para o aprendizado contínuo e para repensar os processos, os fluxos, a gestão, a prestação de serviços. Nada é estável, vivemos num mundo volátil e a contabilidade faz parte deste contexto.
Contab - Avalia que é ainda possível lidar com a contabilidade de um modo "clássico", ou analógico, atualmente? Por quê?
Silvia - Não, o analógico ficou para trás. Porque não tem mais como retroceder, os órgãos públicos não atendem mais presencialmente, exigem a entrega virtual de documentos e arquivos. A evolução nos últimos dois anos mudou até nossa forma de trabalho que atualmente é na modalidade híbrida, home office e alguns dias presenciais conforme escala. Além da evolução da necessidade do cliente, ele precisa receber informações mais dinâmicas e em tempo real, para a tomada de decisões.
Rodrigues - Do modo clássico, ficou o aprendizado, o legado, a experiência. Esse repertório fortalece o profissional contábil. Ficou também a importância das relações, de estar próximo dos clientes, de acompanhar o negócio de perto, tendo a tecnologia como aliada.
Contab - Quais os princípios e/ou habilidades da área que nenhuma tecnologia consegue substituir?
Silvia - Conhecimento técnico aliado à experiência de mercado, trazendo uma consultoria especializada. A tecnologia é uma aliada nos processos, mas nenhum robô conseguirá substituir a interação humana e a confiança que se estabelece neste tipo de relacionamento cliente/contador.
Rodrigues - Nenhuma tecnologia substitui princípios como honestidade, respeito e ética. Esses princípios devem ser o guia de todo profissional, independente se é um Contador ou não. Não há tecnologia que supere os princípios e valores de um ser humano.
Profissão passa por reformulação após boom tecnológico
Tecnologia deve ser vista como investimento, diz Patrícia
crcrs/divulgação/jc
O processo de digitalização tem impactado o dia a dia do contador. A necessidade de lançar notas manualmente no sistema, por exemplo, foi substituída pela importação de dados - sejam de notas fiscais, extratos bancários ou do próprio movimento financeiro do cliente - de modo automatizado.
Tudo isso tem gerado mudanças no próprio perfil do contador, bem como na cultura das organizações contábeis. E nesta transformação, algumas dificuldades também se fazem presentes. "Como tudo que é novo, há a dificuldade de adaptação. Estamos no processo de mudança, em transição, e isso ainda gera ruídos e desconfortos. Por isso, a importância do planejamento nesse processo de digitalização", avalia a vice-presidente de Desenvolvimento Profissional do CRCRS e diretora do Grupo, Patrícia Arruda.
Em 2016, uma análise feita pela consultoria Ernst & Young, com base em diversos estudos, apontou que a função do contador, em um futuro próximo (até 2025), poderia estar em risco de extinção, com os avanços da tecnologia.
A contadora Patrícia Arruda rechaça essa projeção, mas reconhece que a área passa por uma readequação. "Alguns profissionais entendem, ainda, que a tecnologia vai acabar com nossa profissão, o que não é verdade. O profissional da contabilidade está passando de um digitador, para um analista dos dados, uma peça fundamental na tomada de decisão das empresas. Ou seja, tem muito mais autonomia e consequentemente maior valorização da profissão", aponta.
Isso faz com que o mercado de trabalho busque profissionais da área contábil que possuam conhecimentos que vão além do tecnicismo. Ou seja, capazes de entender o negócio dos clientes e de participar das decisões e orientações junto aos gestores da empresa.
Na mesma linha, o contador Ricardo Bitencourt afirma que é preciso enxergar a tecnologia como uma aliada e não um substitutivo. "Considerando que a contabilidade existe antes mesmo da escrita, não é a tecnologia que vai superar ela enquanto ciência, muito pelo contrário, quanto mais tecnologia mais ágeis compilaremos as informações e utilizaremos para lastrear decisões na condução dos negócios", defende.
Para Patrícia, outra visão necessária, em especial para os empresários da área contábil, é a de considerar a implementação de ferramentas tecnológicas como um investimento e não como uma despesa.
"É um dos custos mais relevantes nas empresas contábeis, além do tempo de implementação e valor dispendido, mas existem opções para um início que caiba no orçamento. O importante é ver o que o mercado disponibiliza e ver qual a melhor alternativa com as possibilidades de investimento", aconselha.