A arrecadação do governo do Rio Grande do Sul sofreu uma queda brusca desde o início da crise do coronavírus. Se o esforço do ajuste fiscal ainda não era o suficiente para equilibrar as contas do Estado neste ano, a situação se tornou dramática, com um atraso na folha de pagamento do funcionalismo que já supera 40 dias. A projeção de déficit para 2021 é de R$ 7,9 bilhões. Nesse cenário, o governador Eduardo Leite afirma que irá manter o compromisso de não renovar a alta das alíquotas do ICMS em 2021. "A sociedade gaúcha já está sendo enormemente sacrificada nas condições atuais", sustenta. Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, o governador analisa a situação do Estado e avalia que é possível aderir ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF) da União ainda neste ano. Apesar do otimismo, Leite aponta a instabilidade política do País como a maior dificuldade para fechar o acordo com o governo federal.
Jornal do Comércio - O auxílio emergencial da União para repor perdas de arrecadação de estados e municípios com a crise do coronavírus viria no início de maio, mas não veio. Qual é a sua expectativa?
Leite - Essa ajuda não é ao governador ou ao prefeito, é uma ajuda ao povo brasileiro, para que não sofra o colapso dos serviços públicos. Sem esse suporte, fica impossível manter a regularidade dos pagamentos. O Estado do Rio Grande do Sul está tendo uma queda de 20% na sua receita no mês de abril e cerca de 30% de queda de receita no mês de maio. Os salários dos funcionários públicos estavam sendo quitados com 13 dias de atraso, já vão a mais de 40 dias, porque temos um desencaixe no fluxo de caixa em função desse socorro que está atrasado.
JC - Mais demora, mais difícil...
Leite - Já temos dois meses de queda de arrecadação. E quem paga o preço é a população.
JC - Antes da pandemia, o Estado encaminhava o Regime de Recuperação Fiscal. O auxílio emergencial da União inviabiliza o acordo do RRF ou é possível retomá-lo?
Leite - Mais do que possível, é necessário. Uma coisa é a crise da pandemia, em que está sendo oferecido auxílio emergencial aos estados, outra coisa é a crise fiscal no Rio Grande do Sul. O RRF é o caminho para reequilibrar as contas ao longo dos próximos anos. Temos um plano consistente, o governo federal fez ajustes com o relator da matéria, o deputado Pedro Paulo (MDB-RJ), que deveriam ser votados no Congresso, que evidentemente colocou suas atenções nas questões emergenciais do coronavírus. Temos expectativa de que, com o Plano Mansueto, tenhamos ajustes na lei de recuperação fiscal e possamos nos próximos meses retomar esse tema.
JC - O Regime de Recuperação Fiscal tinha diferenças em relação ao Plano Mansueto, era para Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Agora abriu-se a porta para o Rio Grande do Sul entrar no Plano Mansueto, que seria mais vantajoso, é isso, governador?
Leite - Não é exatamente isso. O Regime de Recuperação Fiscal é uma lei já aprovada, em 2017, no governo (Michel) Temer (MDB), em que o único estado que assinou foi o Rio de Janeiro. Com base nessa experiência, o governo federal chegou à conclusão de que a lei do RRF precisa de ajustes, e essa conclusão veio quando o Plano Mansueto estava no Congresso. O Plano Mansueto é um plano de equilíbrio fiscal para os estados que já tem problemas fiscais, mas não tão graves quanto Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, os estados com nota D na classificação da STN (Secretaria do Tesouro Nacional) em capacidade de pagamento. O Plano Mansueto seria para estados nota C e B. Só que a oportunidade de alterar o RRF viria na discussão da mesma lei que aprovaria o Plano Mansueto, ali se fariam as alterações necessárias para que se encerre o capítulo do Rio Grande do Sul nessas negociações.
JC - Considerando que são quatro parcelas de auxílio emergencial e que estamos em maio, seria viável pactuar ainda neste ano essa outra questão do equilíbrio fiscal?
Leite - Acho que é possível. Estamos vivendo um período de grandes incertezas, não sabemos como serão os próximos meses, mas tendo a acreditar que retomemos algum grau de normalidade para que possamos avançar no Regime de Recuperação Fiscal nos próximos meses. Diria que é menos a crise pandemia do coronavírus que me preocupa para que isso evolua, e mais a crise política que se estabelece nos confrontos políticos que o governo está tendo nesse momento, que são talvez mais prejudiciais do que a própria crise da pandemia em termos de pauta de votações e definições com relação a esse tema.
JC - O País aguenta até quando com essa instabilidade política?
Leite - Infelizmente o País, que tinha uma crise econômica, se viu diante da crise da pandemia e ainda se cria uma crise política. Isso é bastante negativo. Se já tinha havia desconfianças do mercado de investimento em função da crise econômica, a grande agenda para o País deveria ser a de reconquistar a confiança de investidores. Diante da pandemia, evidentemente o ambiente se tornou pouco propício. E tudo que a gente não precisava era agregar uma crise política, que gere expectativa negativa em relação ao futuro do País e à nossa capacidade de resolver nossos problemas. A crise política gerada pelos conflitos estimulados pelo próprio presidente (Jair Bolsonaro) acaba trazendo enormes prejuízos econômicos e, consequentemente, na vida das pessoas. Esperamos que haja condições de retomar o mínimo de sobriedade institucional para endereçar ações nas agendas mais importantes: enfrentar problemas sanitários do coronavírus e o problema econômico.
JC - A previsão para o orçamento do Estado, em 2021, é de um déficit de R$ 7,9 bilhões. Considerando a perda brutal de arrecadação que o Estado está tendo, o senhor mantém o compromisso de não enviar uma proposta de renovação, de alta das alíquotas do ICMS?
Leite - Mantenho. Esperávamos, agora, estar discutindo um sistema tributário que nos possibilitasse ganhar competitividade em setores específicos e que revisasse a estrutura tributária do Rio Grande do Sul. Infelizmente, isso se tornou inviável. Passado esse momento mais crítico do enfrentamento ao coronavírus, estamos retomando essa agenda para que possamos ter uma proposta a ser levada à Assembleia Legislativa nos próximos meses, que substituirá esse modelo do regime emergencial de alíquotas do ICMS. Mas não considero a hipótese de mantê-las porque seria resolver os problemas do governo impondo sacrifícios a quem financia o governo, a sociedade gaúcha, que já está sendo enormemente sacrificada nas condições econômicas atuais.
JC - Havia outras iniciativas encaminhadas nesse ano. A privatização da CEEE estava prevista para ocorrer até setembro. O cronograma fica prejudicado ou se mantém?
Leite - Sofre alguma alteração, mas não deve gerar grande comprometimento do calendário. A expectativa é de que façamos o leilão ainda neste ano.
JC - Mesmo com uma conjuntura que possa prejudicar a venda?
Leite - Evidentemente, dependendo de uma análise conjuntural, de oportunidade para o Estado.
JC - E a privatização da Sulgás?
Leite - Deve acontecer no primeiro trimestre do ano que vem.
JC - A oferta inicial de ações (IPO) da Corsan a mesma coisa?
Leite - Possivelmente.
JC - E as novas parcerias público-privadas (PPPs) da Corsan?
Leite - É cedo para dizer, continuamos trabalhando na modelagem. Vai depender da análise de oportunidade no mercado, de ambiente, de segurança para o investidor para que haja a melhor disputa. Ao mesmo tempo, a concessão é uma forma de retomada econômica, uma alavanca para gerar investimentos privados que vão ajudar depois dessa crise. Quanto mais conseguirmos colocar negócios em parcerias público-privadas seja no saneamento, seja nas rodovias, seja nas privatizações no setor elétrico, em todos esses contratos estamos contratando mais do que a venda de ativos; estamos contratando investimentos no Estado, que movimentam nossa economia, geram emprego e arrecadação. Então, serão parte da nossa estratégia de reaquecimento da economia.
JC - O Estado está fazendo um grande investimento com recursos próprios, a duplicação ERS-118. E 90% das obras estão concluídas. Já tem uma data para a conclusão?
Leite - Essa obra não tem problemas de financiamento, são recursos que viabilizamos junto ao BNDES. Temos expectativa de que a obra seja concluída nos primeiros meses do segundo semestre.
JC - Neste momento é natural que os esforços estejam voltados ao combate ao coronavírus. É possível tratar da agenda de desenvolvimento econômico paralelamente?
Leite - Acredito que dá. Naturalmente há uma espera para que que a poeira baixe, mas o Rio Grande do Sul tem sido um bom exemplo em reformas - da Previdência, reforma administrativa, privatizações, concessões. E novamente estamos sendo um bom exemplo no País com um modelo de distanciamento consistente, equilibrado entre proteção da vida e atividade econômica. Tudo isso coloca o Estado em evidência, anima investidores e se torna um bom ativo na atração de investimentos. Vamos trabalhar para viabilizar o melhor ambiente de negócios. Continuamos tendo reuniões com empresas, muitas com interesse de, assim que possível, viabilizar novos investimentos em nosso Estado.
JC - O setor da indústria é um dos que mais está sofrendo. O senhor vê alguma perspectiva de melhora nesse ano ainda?
Leite - Vivemos um momento de incertezas sobre a próxima semana, essa é a dificuldade. Trabalhamos com planejamento, o governo, as empresas com seus planos de investimentos, observando indicadores, estudos, projeções dos grandes bancos sobre a economia. Nenhuma previa o que está acontecendo. Ninguém diria que uma pandemia viria nas condições de impactar tão severamente a economia mundial. Projeções nesse momento passam a estar absolutamente frágeis.
JC - Alguma ação do governo?
Leite - O trabalho nesse momento é viabilizar as condições de segurança, o enfrentamento do ponto de vista sanitário, para que com a contenção da disseminação do coronavírus, possamos retomar uma estabilidade que permita as pessoas e as empresas retomarem os seus investimentos. E, por maior que seja a crise, sempre abre alguma oportunidade em algum setor. A gente está falando de indústria, mas vou dar um exemplo do turismo, muito afetado. Por outro lado, o dólar está a quase R$ 6,00, e as condições sanitárias vão estabelecer restrições a viagens internacionais. Isso poderá ali na frente significar uma alavanca para o turismo interno. Por pior que seja o momento, ali na frente isso pode significar oportunidade para, nos reinventando em outro contexto, extrairmos algo positivo. Então, estabilizar o quadro em relação ao coronavírus e ter políticas de estímulo, especialmente por parte do governo federal, de apoio para as empresas, crédito para que se sustentem com o capital de giro. E, em seguida, uma retomada dos investimentos, especialmente vinculados à infraestrutura, seja por investimento público ou privado, PPPs e concessões, para ajudarmos a construir um cenário que reabilite o mais rápido possível a retomada do crescimento econômico. Estamos no meio da tempestade, agora é segurar o leme para chegarmos ao outro lado e depois analisar o que precisa ser feito.
JC - E a estiagem que castiga o agronegócio do Rio Grande do Sul?
Leite - Buscamos mitigar os efeitos para o produtor com negociações para a rolagem de dívidas contraídas no financiamento da safra, conseguimos viabilizar isso, dar o suporte para que se possa resgatar o investimento nas próximas safras e até a aquisição de máquinas. O agronegócio faz girar a indústria tanto na hora do plantio quando na hora de beneficiar o que plantamos e criamos em pecuária. A estiagem é um desafio a mais, estamos tomando todas as medidas para reduzir impactos na nossa economia.