O filósofo Denis Rosenfield acredita que o presidente Jair Bolsonaro e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT, 2003-2010) devem continuar trocando farpas pelos próximos três anos, porque a polarização política do País inviabiliza uma candidatura de centro para a eleição presidencial de 2022. A radicalização dos discursos é uma maneira de manter as bases engajadas na defesa desse ou daquele agente político. "Lula e Bolsonaro são os inimigos preferidos. São os inimigos do coração. Cada um quer ter o outro como inimigo", resume o filósofo, em um comentário bem-humorado.
Para Rosenfield, uma candidatura moderada venceria qualquer um dos dois, se chegasse ao segundo turno. Por isso, de um lado, o presidente ataca qualquer nome que se apresente como uma alternativa de centro-direita: o governador de São Paulo, João Doria (PSDB); o apresentador Luciano Huck; e o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC). De outro, o petista busca inviabilizar, sobretudo, a candidatura de Ciro Gomes (PDT), principal opção de centro-esquerda.
O problema dessa polarização, conforme Rosenfield, é que tem atrapalhado o Planalto na reforma da máquina pública, como a tributária, do pacto federativo etc. "Um ganho que o governo produziu foi a aprovação da reforma da Previdência. Mas a discussão já estava madura desde o governo Michel Temer (MDB, 2016-2018). Agora, estamos parados no processo de reformas, porque o presidente não abandona a lógica do confronto", analisa.
Rosenfield é amigo e foi conselheiro de Temer. Inclusive, foi cotado para assumir o Ministério da Defesa na gestão do emedebista. Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, elencou uma série de medidas que fazem parte do legado do governo Temer, como a reforma trabalhista, Lei do Teto de Gastos e a concessão de aeroportos.
Jornal do Comércio - O governo do presidente Jair Bolsonaro está terminando o primeiro ano de gestão. Como o senhor avalia esse início de mandato?
Denis Rosenfield - Ao analisarmos o governo Bolsonaro, nos deparamos com duas lógicas: a eleitoral e a de governo. Do ponto de vista eleitoral, o atual presidente adotou uma lógica de confronto. Utilizou a formulação teórica de um filósofo do Direito alemão, o Carl Schmidt. O pensamento dele estipula o seguinte: a política é a arte de distinguir o amigo do inimigo. Esse filósofo foi um teórico do nazismo. Isso não quer dizer que estou fazendo referência ao nazismo no que diz respeito ao Bolsonaro. Até porque o Lula usou a mesma estratégia. No caso dele, tínhamos o "nós contra eles". No de Bolsonaro, há aqueles que estão comigo e aqueles que estão contra mim. Essa lógica funcionou bem durante as eleições, porque conseguiu se contrapor ao PT, se apresentando como o candidato que faria algo totalmente diferente em relação às políticas de esquerda. Se colocou como alternativa aos governos petistas, como se o governo do MDB, do ex-presidente Michel Temer, não tivesse existido. Conquistou o poder no embate com o PT, embora não estivesse sucedendo um governo petista, mas sim o governo Temer, que era uma gestão democrática de moderação, negociação e reformista. Foi uma estratégia extremamente inteligente do ponto de vista eleitoral.
JC - E a segunda lógica, a de governo?
Rosenfield - Eu tinha a expectativa de que, chegando ao poder, Bolsonaro abandonaria a lógica do confronto e partiria para a lógica de governo. O que é uma lógica de governo? É uma lógica de negociação, de diálogo, de apresentar projetos de reforma, de negociar a aprovação das reformas. O problema é que ele manteve a lógica do confronto no seu governo. Isso implica criar incessantemente o conflito, o que impede a negociação. Impedindo a negociação, como é que vai aprovar uma reforma? Então o traço mais marcante desse primeiro ano de governo Bolsonaro foi a manutenção dessa lógica de confronto, a criação incessante de conflitos. Para isso, o presidente reuniu, em torno de si, pessoas que comungam única e exclusivamente dessa ideia.
JC - Por exemplo?
Rosenfield - Os filhos do presidente são pessoas despreparadas para a tarefa de governar. Mas Bolsonaro os alçou à categoria de governantes. E eles estão reproduzindo a lógica de confronto - com exceção do primeiro filho, o senador Flávio Bolsonaro, que tem uma atitude de negociação. Eles continuam alimentando uns aos outros com essa política do confronto, fazendo até com que uma pessoa sensata, como o ministro da Economia, Paulo Guedes, por exemplo, venha a defender o Ato Institucional nº 5. Isso é uma coisa extremamente perigosa, que as pessoas não estão se dando conta. Não importa qual é o Ato Institucional, o que importa é que qualquer um deles está baseado na ruptura institucional. Isso significa que o governo se coloca como fonte geradora da lei. Ou seja, ele é a lei, não tem mais que seguir a Constituição. Quando o filho do presidente ou o ministro da Economia fala em Ato Institucional, o risco é a ruptura com a Constituição. Se você quer estabelecer a ordem, a Constituição tem mecanismos. Por exemplo, a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que foi utilizada no governo Temer no Rio de Janeiro, e, no governo Lula e Dilma (Rousseff, PT), também utilizaram em vários lugares do Brasil.
JC - O presidente encontrou uma correspondência do ex-presidente Lula nessa lógica do conflito, que, depois de solto, também adotou um discurso de enfrentamento em relação a Bolsonaro. Quais os riscos da radicalização da polarização? Quem ganha com isso?
Rosenfield - A lógica do confronto vale tanto para o Bolsonaro e o bolsonarismo como para o Lula, o lulismo e o petismo. O Lula e o Bolsonaro são os inimigos preferidos. É o inimigo do coração. Cada um quer ter o outro como inimigo. Eles não aceitam nenhuma opção de centro. Na esquerda, o Lula inviabiliza a candidatura à presidência do Ciro Gomes. Por outro lado, na direita, se o Luciano Huck levanta a cabeça, o Bolsonaro vai lá e corta; se o Wilson Witzel levanta a cabeça, ele vai lá e corta; se o João Doria levanta a cabeça, vai lá e corta. Ou seja, também inviabiliza as candidaturas de centro.
JC - Uma candidatura de centro teria força para ganhar do Lula ou do Bolsonaro?
Rosenfield - Uma candidatura de centro vence tanto o Bolsonaro quanto o Lula (no segundo turno). Por isso, eles querem inviabilizar que uma candidatura de centro vá para o segundo turno. Grosso modo, Bolsonaro tem 30%, 35% do eleitorado. Tem as milícias digitais, que fazem um trabalho bem feito nas redes sociais; tem os evangélicos, que continuam unidos, e talvez se unam ainda mais, dependendo da política em relação à transferência da embaixada de Israel, de Tel Aviv para Jerusalém. E o Lula também tem entre 30% e 35%. Se (nas próximas eleições) tiver o Huck, o Witzel e o Doria, cada um deles vai ter, no máximo, 10% ou 15%. Nenhum deles chega ao segundo turno. O Ciro, que vai entrar pela esquerda, vai ter os seus 10%. Então a equação não fecha para que uma candidatura de centro seja competitiva. Por isso, o Bolsonaro e o Lula vão ficar batendo de frente um com o outro nos próximos anos.
JC - Então, se a política do confronto der certo, teremos Lula/PT e Bolsonaro no segundo turno da eleição de 2022...
Rosenfield - A reeleição do Bolsonaro seria mais provável do que uma eventual eleição do PT. Afinal, provavelmente, o Lula não será o candidato petista, porque acabaria vetado pela Lei da Ficha Limpa. Então o que ele vai fazer? Vai indicar um laranja. O problema é que o laranja nunca é a mesma coisa que o original. Por sua vez, o Bolsonaro vai ficar batendo no Lula e no seu laranja. E o Lula vai ter que bater no Bolsonaro e, ao mesmo tempo, vai ter que privilegiar o seu laranja, que não sabe muito bem ainda quem é. Provavelmente, vai ser o Fernando Haddad (PT).
JC - A eleição presidencial de 2022 já está bem presente nas discussões políticas...
Rosenfield - O Bolsonaro e o Lula vão estar voltados para essa dinâmica (do conflito, que inviabiliza as candidaturas de centro) nos próximos três anos, o que, para o Brasil, é um absurdo. Temos um ano de mandato e já estamos discutindo a eleição de 2022. Temos três anos de governo pela frente. O Brasil tem questões em suspenso: quais reformas vão ser aprovadas? Qual será o crescimento da economia? Qual o nível de desemprego? Teremos manifestações de rua no Brasil? Os partidos vão se reorganizar? Qual será o resultado da eleição municipal de 2020?
JC - A lógica do confronto está atrapalhando as reformas?
Rosenfield - A lógica do confronto está contaminando a agenda de reformas do presidente Bolsonaro. Como os investidores internacionais e nacionais vão ter segurança para investir no País se, a qualquer momento, o presidente pode romper (com a Constituição) e manter o confronto? Um ganho que o governo produziu foi a aprovação da reforma da Previdência. Mas a discussão já estava madura desde o governo Temer. Teria preferido que tivesse aprovado a reforma da Previdência do Temer em março, não em novembro. Mas, agora, estamos parados no processo de reforma, porque o presidente não abandona a lógica do confronto.
JC - Mas algumas reformas encaminhadas pelo ex-presidente Temer estão em andamento...
Rosenfield - A recessão, que iniciou no governo Dilma, foi revertida no governo Temer. Depois, o crescimento (econômico) deveria ter acontecido no governo Bolsonaro. Mas (os membros do governo Bolsonaro) empacaram nas reformas no primeiro ano, não souberam o que fazer. Ou seja, não tivemos processo de privatizações, as concessões foram as mesmas que estavam previstas no governo Temer, fizeram aqui algumas coisas na reforma trabalhista que também é do governo anterior... Quer dizer, até agora, (o governo Bolsonaro) não deu ainda a sua cara. Na narrativa, sim. O discurso é ultraliberal. Mas o que, desse discurso, está se traduzindo na realidade? No final das contas, o problema é o seguinte: a população brasileira quer comer, quer educação, saúde, emprego, melhores condições de vida. O Lula quer a volta das ideias do PT que redundaram na recessão. O governo Bolsonaro ainda não disse a que veio. Os dois ficam sempre no confronto entre eles, como se outros problemas não existissem. Até quando o Brasil vai conseguir conviver sem que os problemas (da população) apareçam fortemente no processo eleitoral? Se o desemprego estiver elevado, se o crescimento econômico não deslanchar, as chances do Bolsonaro, em 2022, são, certamente, menores.
JC - O senhor acompanhou de perto o governo Temer. Qual foi o legado?
Rosenfield - O governo Temer fez mais, em dois anos e meio, do que a maior parte dos governos na vida republicana, digamos, pós-redemocratização. Primeiro, é um governo reformista, baseado na negociação e no respeito das tradições democráticas. Entre as realizações da administração Temer está o Teto dos Gastos Públicos, que é uma questão fundamental de responsabilidade fiscal. Também fez a reforma trabalhista, que modernizou a legislação trabalhista pela primeira vez, desde Getúlio Vargas, fazendo com que o Brasil pudesse ter relações trabalhistas baseadas na livre escolha dos trabalhadores e dos empregadores. Ainda controlou a inflação, que fugia no governo Dilma; profissionalizou a Petrobras, que estava falida; diminuiu os juros, que também estavam indo para a estratosfera; promoveu a reforma do Ensino Médio; e começou o processo de concessão de aeroportos, inclusive o nosso, de Porto Alegre.
JC - A que o senhor atribui a baixa popularidade do ex-presidente Temer?
Rosenfield - Acho que ele escolheu mal alguns ministros. Já disse isso para ele na época (em que estava na presidência). Como o presidente da República não vai sofrer desgaste se um dos seus ministros aparece com mais de R$ 50 milhões em um apartamento em Salvador (ex-ministro-chefe da Secretaria de Governo, Geddel Vieira Lima, MDB-BA)? Como não vai se desgastar se um assessor direto anda com mala de dinheiro pela rua? Outro ministro dele, o do Turismo (Henrique Eduardo Alves, MDB-RN), renunciou porque não soube explicar a origem do dinheiro que mantinha em contas na Suíça. Isso contamina um governo. Terminou ofuscando os ganhos. Além disso, não teve uma boa equipe de comunicação para poder veicular isso.