Ricardo Gruner
Conhecida por seu trabalho como documentarista, a cineasta Marília Rocha entrou com o pé direito no universo da ficção. Com estreia no circuito comercial hoje, A cidade onde envelheço já carrega na bagagem quatro prêmios no Festival de Brasília do ano passado - incluindo melhor filme. Drama de ares cômicos sem deixar a poesia que o título sugere de lado, o longa-metragem destaca relação entre Brasil e Portugal através de duas imigrantes. "Há um ligeiro deslocamento de olhar", adianta a diretora.
O enredo apresenta Teresa, uma portuguesa recém-chegada em Belo Horizonte. Ela ficará uma temporada na casa de Francisca - conterrânea e velha conhecida que já está no Brasil há cerca de um ano. Apesar da situação em comum - o estrangeirismo -, as duas vivem momentos distintos: enquanto a energia de uma se torna encantamento com o novo país, a calma da outra contempla uma saudade irremediável de casa.
O projeto teve início quando Marília conheceu algumas portuguesas que estavam no Brasil, por volta de 2012. Era um período de crise no país do continente europeu, e muitos jovens locais viam na emigração uma oportunidade de vida. Entre elas, estava Francisca Manuel, que ficou com o papel da Francisca da narrativa. "A ideia é cruzar uma história ficcional com uma abordagem real", explica a cineasta, sinalizando que a equipe se valeu de experiências de vida próprias para enriquecer os personagens.
O processo de criação foi coletivo. O roteiro serviu apenas como base para dar uma direção ao andamento do enredo. Em vez de seguir exatamente um programa, o elenco compôs cenas a partir de improvisações.
Teresa, a recém-chegada, é papel de Elizabete Francisca - selecionada em Portugal, país coprodutor do filme. Em terras lusitanas, a busca pela intérprete ideal se transformou também em parte da pesquisa. "Falamos com dezenas de jovens que estavam na situação da personagem. Isso alimentou o roteiro", pontua a diretora, espantada com a velocidade com que a economia muda: "parece que foi há mais tempo, porque já virou tudo (o fluxo da migração) de novo.
No longa-metragem, entretanto, questões sociais e pessoais aparecem mais do que as financeiras. Mesmo que as protagonistas venham de outro país, não são totalmente deslocadas - e tampouco deixam de ter obstáculos na adaptação. "É a mesma língua, mas também não é", expõe a realizadora. "Lá em Portugal nós somos compreendidos muito bem. Ao contrário, isso não ocorre", exemplifica: "Acontecia muito de as pessoas acharem que elas eram argentinas ou começarem a falar em inglês com elas na rua".
Essa sensação de estranhamento com o próprio idioma aparece tanto em diálogos como na percepção do espectador. Por vezes entender a conversa das personagens pode ser um desafio.
O elemento que completa as reflexões das personagens sobre ficar e partir é a própria capital mineira e seus personagens. Na ala vinda de terras canarinhas, o elenco conta com nomes como Wederson Neguinho, Paulo Nazareth e Jonatta Doll. Nenhum deles é ator profissional - assim como as lusitanas também não são -, mas todos trabalham com arte de alguma forma. Jonatta Doll, por exemplo, recentemente chamou atenção como cantor convidado em shows da turnê Legião Urbana 30 anos e colocou disco no mercado.
Além do prêmio de melhor filme no Festival de Brasília, A cidade onde envelheço ainda levou os troféus Candango de melhor direção, ator coadjuvante (Neguinho) e atriz - destaque dividido entre Elizabete Francisca e Francisca Manual. Contente pelas láureas, a cineasta comemora também a abertura de portas proporcionada pelas distinções: o longa é sua produção que mais rapidamente chegou às salas comerciais. "Essa é sempre uma etapa dura", afirma.
Para o futuro, ela prepara um roteiro que integrará uma série documental. O projeto reúne trabalhos que falam de literatura e cinema. Ainda não há previsão de exibição.