Em mais de 30 anos de carreira - nas bandas TNT e Cascavelletes e depois em carreira solo (atendendo pelas personas Júpiter Apfel/Maçã/Apple) -, Flávio Basso criou uma música que ultrapassou fronteiras. Afeito a mudanças estilísticas radicais, e nunca preso à rotulagem "rock gaúcho", o legado artístico de Júpiter encontra-se mais vivo e presente do que nunca. Nascido em 26 de janeiro de 1968, a trajetória do aquariano Flávio é única.
Para se ter ideia, no Rio Grande do Sul, em 2007, uma votação feita com 50 especialistas de todo o Brasil (jornalistas, músicos, produtores) cravou A sétima efervescência, seu cultuado disco, como o primeiro de todos os tempos no Estado. Nacionalmente, sua música foi reconhecida, entre outros, por artistas da importância de Caetano Veloso, Rita Lee e Arnaldo Baptista.
No entanto, A sétima efervescência significa apenas metade do que Basso um dia produzira. E não é pouco. O "big-bang" é o TNT (banda que, ainda adolescente, ele fundou com Charles Master), uma das responsáveis por detonar o amor tórrido da juventude gaúcha pelo rock'n'roll. São dele rebeldes petardos como Cachorro louco, Ana banana e Liga essa bomba.
Basso, então, logo revelaria outra faceta de sua personalidade: a ousadia. Quando o TNT estava prestes a assinar contrato com uma grande gravadora (sonho de qualquer banda iniciante), a RCA, para a gravação do primeiro disco, ele abandona o barco para apostar no protopunk desbocado dos Cascavelletes. Os "Casca" emplacaram pelo menos um sucesso nacional: Nega bom bom, música incluída na trilha da novela global Top model.
As reviravoltas estéticas seriam uma marca registrada na carreira de Flávio. Com o fim dos Cascavelletes, ele se assume Júpiter Maçã e lança A sétima efervescência, um disco cantado em português que, futuristamente, liquidifica mod, jovem guarda, space rock e psicodelismo. Causou frisson. E, contrariando as expectativas de quem esperava por aquele deveria ser seu natural sucessor, ele, em seguida, apresenta Plastic soda, um álbum em inglês inspirado na bossa nova de João Gilberto e na lisergia de Syd Barret. Agora vestido na persona de Jupiter Apple, ele definiu: "Plastic soda é uma continuidade e um aprimoramento em cima das coisas com as quais eu já lidava. Ele definitivamente é mais jazzy, mais bossy".
Criativamente, a primeira década do novo milênio foi, sem dúvida, a mais produtiva para o "planeta" Júpiter. Em 2002, ainda como Apple, mais uma vez ele se reinventa com a sonoridade do (às vezes incompreendido) Hisscivilization, que sobrepõe, em densas camadas, jazz, bossa e psicodelia. Em 2007, os fãs são presenteados com dois discos: Jupiter Apple and Bimbo presents: Bitter (em clima de jam session) e Uma tarde na fruteira - este, para muitos, seu melhor álbum. Em seu derradeiro álbum, Maçã volta cantado em português e, em meio ao caos polifônico, cita textualmente vultos da intelectualidade e da contracultura como Woody Allen, Tom Zé, Aldous Huxley e Os Mutantes.
A astróloga e escritora Amanda Costa observa que Flávio era de Aquário com ascendente em Gêmeos, o que, no mapa astral, indica "multiplicidade". Amanda diz que, somado a isso, há o fato de Flávio ter nascido em 1968, um ano "muito porrada". "Imagina uma cabeça aquariana com ascendente em outro signo de elemento ar, que é Gêmeos? Ou seja, são múltiplas faces - a capacidade de se multiplicar, de ser vários. Isso diz muito a respeito de como o Flávio era".
Numa das diversas conversas que teve com este repórter, Júpiter Maçã alegou, certa vez, que nada que fizera ao longo de sua caminhada fora planejado. Pelo contrário, conforme ele, tudo havia sido um "processo de expansão natural", consequência de uma obra. "No primeiro show que fiz em Porto Alegre, em 1995, no [bar] Garagem Hermética, havia apenas sete pessoas. No segundo já eram 150 e, depois, mais pessoas se mostravam interessadas na minha música". Passados mais de 25 anos, esse público não para de crescer. E uma série de homenagens - documentário, músicas e gravações estão por vir.
Dos Cascavelletes à volta ao TNT
Antes da carreira solo, cantor fez sucesso como vocalista das bandas locais
ANDRÉ FURTADO/DIVULGAÇÃO/JC
Após a aventura rocker vivida ao lado dos Cascavelletes (foram centenas de shows em todo o Brasil), em 1992, Flávio Basso, sem eira nem beira regressa ao TNT, onde ficaria por alguns movimentados meses. Tempo suficiente para que cometesse pelo menos um memorável clássico: Tá na lona, uma vitoriosa canção sobre fracasso que talvez nem os Rolling Stones tivessem feito melhor.
Cantada por Basso, a letra versa sobre o universal tema da vingança: "Você já foi tão rica e tão famosa/ Gostava de esnobar/ Teve um passado de glória/ Você se deliciava/ Mais isso acabou/ Tá na lona/ Pra nunca mais voltar". Baterista do grupo à época, Paulo Arcari diz que Flávio, naquele momento, deixara de ser o famoso frontman dos Cascavelletes para, em sua volta ao TNT, ocupar o espaço de um "sideman de luxo". "Lembro de ter ficado deslumbrado com as habilidades vocais do Flávio e, além disso, com sua desenvoltura ao piano e na guitarra", diz Arcari.
De quebra, nessa leva o TNT fez ainda a hot (Você) Me deixa insano, que emplacou nas rádios gaúchas na época e rendeu à banda inúmeros shows. Seria, no entanto, o canto do cisne do TNT, que logo em seguida se dissolveu.
Flávio, por sua vez, foi viver seu período de misantropia folk-dylanesca gestando uma persona que, anos mais tarde, ele chamaria de "Woody Apfel", a qual, em cuja translação seguinte, desabrocharia Júpiter Maçã.
Um hitmaker do rock gaúcho
Um ponto permanente da trajetória versátil de Flávio Basso/Júpiter Maçã é produzir hits que marcaram não apenas o rock gaúcho, mas que ainda são reverenciados pela crítica e músicos pelo Brasil.
Cachorro louco - A canção mais marcante do repertório do TNT. Nasceu da rivalidade de Flávio com Charles Master, que compusera antes a incendiária Entra nessa. Indignado, o adolescente Basso trancou-se em seu quarto determinado a superar o feito do amigo e de lá só saiu quando deu sua música por acabada. A primeira pessoa a ouvir Cachorro louco foi a sua mãe, Iara. Seus versos, que atravessam gerações, eternizaram-se entre a juventude riograndense: "Nada que ele faz tem sentido/ Ele é um cara loucão/ Transa só menina casada/ Ele é mesmo um cão". O ataque de guitarra de Márcio Petracco, que abre a música, é um dos mais viscerais do rock gaúcho.
Menstruada - Disparada a mais famosa gravação dos Cascavelletes, o esboço original ("Ela disse hoje não meu amor/ Mas eu disse hoje sim, por favor") foi obra de Frank Jorge; o decisivo toque de safadeza, no entanto, foi dado por Flávio ("Ela disse hoje não meu tesão/ Mas eu disse hoje sim, por que não"). Outra sacada de sua autoria foi a nevrálgica parte: "Baby, eu sei que tu sabe/ Com quantos paus se faz uma canoa / Mas baby, tu não sabe com quantos paus/ Se faz rock'n'roll".
Lugar do caralho - No livro Gauleses irredutíveis, Júpiter Maçã define Lugar do caralho como "uma ideia absurdamente literal". Segundo ele, representa uma busca expressa na letra da música que abre A sétima efervescência: "Sozinho pelas ruas de São Paulo/ Eu quero encontrar alguém pra mim/ Um alguém tipo assim/ Que goste de beber e falar/ LSD queira tomar". Há quem diga, porém, que o tal lugar do caralho ao qual Maçã se refere também poderia ser três outros locais: o bar paulistano Persona, onde ele fez seus primeiros shows escoltado pela banda Os Pereiras Azuis; o bar porto-alegrense Garagem Hermética; ou, ainda, o bar Megazine, de propriedade da cineasta Biah Werther, do qual ele era assíduo frequentador.
Eu e minha ex - Um dos pontos altos de A sétima efervescência, Flávio compôs essa canção de amor/desamor para Fabi Alves, um de suas sua ex-namoradas à época. Cinematográfica, a música traça um roteiro pelas "alamedas de Porto Alegre". Os arranjos sinfônicos levam assinatura de Marcelo Birck (Aristóteles de Ananias Jr., Graforréia Xilarmônica): "Eu e minha ex/ Queremos amizade/ Mas acho que eu não superei/ Talvez ainda goste dela/ Eu e minha ex/ Na tempestade, sob o mesmo guarda-chuva/ Pelas alamedas de Porto Alegre/ Mercadão até Bom Fim".
Please don't disturb (Por favor, não incomode) - Bossa nova intergaláctica do álbum Plastic soda. Ou fuzzy bossa, como indica a letra. O título diz "por favor, não incomode". Curiosamente, a campainha que surge nos segundos finais da música não foi planejada. Alguém chegou ao estúdio e apertou o botão. O ruído intrometido casou perfeitamente com a faixa. "It's fuzzy bossa/ Just fuzzy bossa there", Apple canta de mansinho no refrão.
Beatle George - Nessa canção que é um dos pontos altos de seu prolífico cancioneiro, Júpiter Maçã, envolvido pela cítara de Lúcio Brancato, num momento de lucidez reconhece: "Ah, eu deveria parar de beber/ Porque (ah!) não estou fazendo bem a quem me ama". Para, na estrofe seguinte, louvando Krishna, então perguntar: "Aonde foi parar aquele menino? Que (ah!) queria cantar como Beatle George". É uma de suas mais belas e melancólicas canções.
Discografia
A sétima efervescência (1997)
REPRODUÇÃO/JC
Com o TNT
Coletânea Rock Grande do Sul (1986)
Entra nessa/Estou na mão EP (1993)
Você me deixa insano/Tá na lona
Com Os Cascavelletes
Demo tapes
Vórtex Demo (1987)
Álbuns de estúdio
Os Cascavelletes (1988)
Rock'a'ula (1989)
Como Júpiter Maçã/Apple
A sétima efervescência (1997)
Plastic soda (1999)
Hisscivilization (2003)
Jupiter Apple and Bibmo presents: Bitter (2007)
Uma tarde na fruteira (2007)
Marchinha psicótica de Dr. Soup
Personagem em frente a espaço igualmente emblemático: Garagem Hermética
/SIDD RODRIGUES/DIVULGAÇÃO/JC
Este 2020 é o ano em que, segundo as previsões feitas por Júpiter, a Marchinha psicótica de Dr. Soup, faixa que abre o disco Uma tarde na fruteira, se tornaria "cult-underground", ainda que ela tenha nascido cult-underground. No começo deste ano, o carioca Rogério Skylab - que anteriormente versionara Casa de mamãe, música presente no mesmo disco - lançou uma releitura carnavalesca da marchinha. A história de Skylab com Júpiter vinha de outros carnavais. Em 2014, Rogério protagonizou um dos momentos mais polêmicos da carreira do artista gaúcho, quando o entrevistou, desastrosamente, em seu talk show Matador de passarinhos, 2014.
Outro que vem se empenhando para fazer com que a marchinha, mais do que "hit nacional", mantenha-se viva no coração dos incontáveis fãs de Júpiter Maçã é Lucas Hank, o "Cabelo", músico que acompanhou Flávio em muitos shows e gravações. Cabelo vem preparando uma versão eletrônica da Marchinha psicótica, com previsão de lançamento para este segundo semestre. "Esse momento [da Marchinha psicótica] é único para nós, fãs do trabalho do Júpiter, que sempre foi um artista autêntico, futurista e jovem. Por isso, para homenageá-lo, pensei numa versão eletrônica. Algo que fugisse da versão original e falasse a linguagem da juventude de 2020", explica. Para tanto, Lucas chamou dois amigos seus para que participarem da produção: o DJ Eduardo Basso e o produtor Ricardo Blumenkranz, também baterista e tecladista da banda argentina Inmigrantes. "Estamos em processo de criação dessa versão que vai flutuar entre trap, eletrônico, psicodelismo e rock", pontua.
Documentário sobre o garoto Flávio Basso
Biah Werter produz documentário com título que remonta à infância do artista
ANDRÉ FURTADO/DIVULGAÇÃO/JC
Também em processo de produção (e captação de recursos) encontra-se o "documentário ficcional" O garoto de Júpiter - Um filme sobre a vida de Flávio Basso, dirigido pela cineasta, atriz e produtora Biah Werter. Até agora, já foram entrevistadas 17 pessoas (entre familiares, músicos e amigos de Flávio) para o filme. As cenas ficcionais, explica Biah, serão divididas em quatro temáticas: O menino Júpiter, O casulo, A maçã e A passagem.
A questão da pandemia do novo coronavírus, literalmente, não estava no script e acabou sendo um dos fatores que contribuíram para o atraso do filme. No entanto, afirma Biah, a produção de O garoto de Júpiter em nada mudou. Segundo ela, continua sua busca em retratar as várias "verdades" em torno do camaleônico Júpiter Maçã: "Estamos fazendo um documentário investigativo, tentando entender as muitas histórias por detrás do mito".
Um dos motivos (houve outros) que levaram Biah Werter a dar nome de O garoto de Júpiter ao filme, ela conta, foi a passagem ocorrida na infância do músico, na qual o pequeno Flávio, enfadado com o professor de violão que só queria lhe ensinar o infantil Parabéns a você, pediu aos pais que arrumassem um que pudesse lhe mostrar as canções dos Beatles. "O episódio com o professor de violão é um dos momentos em que Júpiter inicia um processo autônomo de criação, a partir do qual também descobre muitas outras coisas, artisticamente falando, mas sem perder a alma de menino", diz Biah.
Thunderbird vai gravar música feita com Júpiter
Gaúcho teve banda com ex-VJ
ANDRÉ FURTADO/DIVULGAÇÃO/JC
O músico, radialista, apresentador, dentista e ex-VJ da MTV Luiz Thunderbird (que recentemente lançou autobiografia Contos de Thunder) terá, como primeiro single de seu primeiro álbum solo, intitulado Pequena minoria de vândalos, uma versão acústica da disco-new wave Modern kid. A música é uma parceria dos tempos em que Thunder integrou a banda de Júpiter: "Tive o privilégio de fazer essa música [Modern kid] com ele", regozija-se Thunder. A ideia de fazer uma versão acústica de Modern kid, ele conta, surgiu das lives que tem feito nos últimos tempos: "As pessoas ficam pedindo: 'Toca Modern kid! Toca Modern kid!'".
Em sua autobiografia, Thunder fala com sinceridade sobre como enfrentou seus demônios relacionados às drogas, período que chama de "idade das trevas", e também de como ofereceu ajuda a Flávio, que enfrentava problemas relacionados ao álcool, levando-o para se internar numa clínica de reabilitação no interior de São Paulo. No livro, porém, o amigo não se atém apenas às vicissitudes do artista: "Os meus momentos ao lado do Júpiter foram de felicidade, de imenso prazer de estar ao lado dele. Ele era um cara muito vibrante e inspirador. Conversávamos muito avidamente sobre vida e arte", enaltece Thunderbird.
Uma estátua para Júpiter Maçã
Incrível história ocorrida com monumento de Chapecó virou música e mocumentário
JOSÉ MARIA PALMIERI/DIVULGAÇÃO/JC
A monumental história começou com uma entrevista que o músico chapecoense Roberto Panarotto, da banda Repolho (na época também apresentador do programa de televisão Voo do morcego), fez com Júpiter Maçã em 1995. Panarotto recorda que, anos antes, em 1990, ainda como Flávio Basso, ele havia tocado com os Cascavelletes em Chapecó. Ou seja, Maçã já estivera na cidade, cujo símbolo maior é o Monumento ao Desbravador, criado pelo artista plástico Paulo de Siqueira para homenagear os primeiros colonizadores, a maioria provenientes do Rio Grande do Sul, que vieram dar no município do Oeste catarinense.
A figura do desbravador é a de um gaúcho que na mão direita segura um machado que simboliza o trabalho e, na esquerda, um louro, simbolizando "a vitória e a conquista das terras". Na entrevista, conta Panarotto divertidamente, ele falou sobre o show dos Cascavelletes ocorrido anos atrás e perguntou o que ele achava de Chapecó. Segundo Panarotto, Maçã foi bem evasivo, devido à sua pergunta, que era "bem ruim". Mas quando perguntou se lembrava do desbravador, o rosto de Júpiter iluminou-se e ele respondeu: "O quê? Eu fui o desbravador? O primeiro show de rock em Chapecó?". Roberto, ironizando, concordou: "Sim, claro, a estátua foi feita em tua homenagem, segurando um machado e tudo". Panarotto diz que Júpiter, que acreditou na pegadinha, com seu espírito zombeteiro, também quis saber: "Mas porque não colocaram logo uma guitarra?".
Panarotto rememora que, anos depois, quando ele retornava à cidade, sempre que contava tal passagem a Júpiter ele se matava rindo. A história virou lenda e, inclusive, várias pessoas e músicos, quando vão à Chapecó, querem conhecer a célebre "Estátua de Júpiter Maçã". Entre um dos divulgadores mais entusiastas dessa história está o vocalista e letrista Carlinhos Carneiro (Bidê ou Balde, Império da Lã, Bife Simples), fã confesso tanto de Júpiter quanto da Repolho. Carlinhos diz que sempre que pode faz questão de falar sobre a estátua nas redes sociais, tirar foto ou simplesmente comentar a respeito quando está no palco. E, numa de suas idas à Chapecó, após o falecimento de Flávio, Panarotto convidou Carneiro para dar uma entrevista sobre a lenda da estátua no Voo do morcego.
A ida ao programa é o ponto de partida para a montagem de um falso documentário (o chamado "mocumentário") tendo a história como pano de fundo. Carlinhos Carneiro adorou o convite e a ideia, por sua vez, acabou virando também uma música. Numa das vindas dos irmãos Panarotto (Demétrio e Roberto) a Porto Alegre, para gravações com o produtor Thomas Dreher, Carlinhos e uma tropa de "cavaleiros" do Império da Lã invadiram o estúdio e juntos deram luz à música Estátua para Júpiter Maçã, falando sobre a romaria de pessoas que vão a Chapecó para visitar a imagem. A faixa, adianta Carneiro, será a canção-tema do mocumentário que está sendo editado por um grupo de videoartistas gaúchos e que deverá lançado neste segundo semestre.
Gravadora prepara lançamentos
A gravadora goiana Monstro Discos, responsável por editar em vinil os álbuns Uma tarde na fruteira e A sétima efervescência (o primeiro também foi editado em CD), também lançou os compactos A marchinha psicótica do Dr. Soup/Madeimoiselle Marchand e Beatle George/Scotch And Coffee At Regent Street, ambos esgotados e custando altos valores entre os colecionadores.
Para Leo Razuk, um dos proprietários da Monstro, a grande importância dessas reedições em vinil (e também em CD) é "manter viva a arte e o legado de Júpiter". Ele confirma que a Monstro Discos pretende, sim, lançar mais gravações do artista e que tal possibilidade vem sendo avaliada ainda para este ano. Possivelmente, adianta Razuk, para alegria dos fãs, o que esteja por vir seja, até mesmo, algo inédito. E, como é de conhecimento de muitos, músicas guardadas no "Baú do Júpiter" é o que não faltam.
Uma viagem astral com Giovanni Caruso
No final de 2019, um sonho do músico rio-grandino Giovanni Caruso com Júpiter Maçã – que teve como ponto de partida o conto Ônibus (do livro Bestiário, 1951), de Julio Cortázar – virou a música Viagem astral com Júpiter Maçã. A canção foi gravada por sua banda, a Escambau, radicada em Curitiba (PR).
Fã de Cascavelletes desde criança, Giovanni conheceu Júpiter pessoalmente em 1995, quando o músico porto-alegrense morou em sua casa, em Rio Grande – seus irmãos Emerson (baixista) e Glauco Caruso (baterista) são os músicos que tocavam com Maçã na época e o acompanharam nas gravações de A sétima efervescência. Ainda adolescente, Caruso chegou a tomar algumas aulas de contrabaixo com Júpiter nesse período.
No sonho, conta Caruso, ele e Paraguaya, sua muher, também cantora e musicista, estão zanzando por Buenos Aires e entram no Museo del Rock Garage. Lá, reencontram, não de cera, mas vivíssima, a figura de Júpiter Maçã.
No sonho, conta Caruso, ele e Paraguaya, sua muher, também cantora e musicista, estão zanzando por Buenos Aires e entram no Museo del Rock Garage. Lá, reencontram, não de cera, mas vivíssima, a figura de Júpiter Maçã.
Viagem astral... foi gravada pela Escambau numa sessão ao vivo no Estúdio Old Black Records, em Curitiba. “Fizemos apenas dois ensaios e decidimos gravá-la sem enfeites, para que permanecesse com a crueza e o realismo do sonho”, explica Giovanni. Ele diz não esquecer aquelas aulas que, nos tempos de guri, tomou com seu grande ídolo, que lhe ensinou tocar, “de forma muito gentil”, ele frisa, músicas dos Beatles, as quais ele sabia todas: “Pensem em um guri feliz”, vibra.
"Rio Curvilíneo" - entrevista do músico concedida ao autor em 2007
Lançamento em inglês Plastic Soda (1999), como Jupiter Apple
REPRODUÇÃO/JC
A cédula de identidade não mente: o cara se chama Flávio Basso. Com esse nome de ascendência italiana, ele foi frontman dos Cascavelletes, uma das bandas que inventou o rock no Rio Grande do Sul e cuja (má) fama está registrada em artefatos como Menstruada, O dotadão (gravada pelos Ratos de Porão) e Minissaia sem calcinha.
Nos vetustos 1989, Basso protagonizou um dos grandes momentos de picardia do rock brasileiro, quando o semi-hit Nega bom bom (do refrão bubblegum “Bom-bom-bom faz aquela nega do outro lado daquela rua/Baby/Punhetinha de verão") entrou na trilha sonora da novela Top model.
Flávio Basso, então, saiu de cena. Voltou realinhado, anos mais tarde, folk e dylanesco, como Woody Apple – mas também foi fogo de palha. Transformou-se em Júpiter Maçã, alcunha com a qual lançou o clássico A sétima efervescência, com devidos créditos a Timothy Leary, Albert Hofman e aos laboratórios Sandoz.
Mas não durou.
Num ataque semântico-artístico, renomeou-se outra vez como Jupiter Apple e adotou o inglês para embarcar de vez no desbunde do álbum Plastic Soda (1999). Em Hisscivilization (2002), a criatura seguinte, deu um passo a frente ao testar sonoridades que – é preciso perseverança, às vezes – não se decidem entre o indigesto e o incompreendido.
O lançamento do próximo rebento, Uma tarde na fruteira (que não é mais segredo desde que vazou na web), já está engatilhado. Sai primeiro na Espanha, em julho, pelo selo madrilenho Elefant. Pouco depois, será lançado no Brasil pela gravadora Monstro Discos. Enquanto isso não acontece, Júpiter liberou um aperitivo para aplacar a curiosidade dos fãs: Bitter, um álbum com canções assinadas por ele e Bibmo (sua atual consorte e companheira de banda).
Bitter é gravado em inglês, no melhor estilo take one – rápido e cru. Outra novidade é a reedição de A sétima efervescência, no segundo semestre de 2007, acrescido de quatro faixas bônus dos tempos dos Pereiras Azuis, banda que o acompanhou no início da sua imersão psicodélica.
Recém-chegado da Inglaterra e ainda tentando achar a chave para voltar para “dentro da casinha”, em Porto Alegre, Júpiter Maçã concedeu essa entrevista exclusiva. Depois, ele pretende marcar a coletiva de imprensa Bed In II – Beatnik Talks, onde quer reunir cerca de 30 jornalistas (!) no quartíbulo de hotel onde mora no Centro de Porto Alegre. “Mais do que coletiva, o encontro terá clima de happening, juntando música, artes e bate-papo”, diz.
Se você tem alguma ideia a respeito do universo e dos códigos jupiterianos, já sabe: não espere dele respostas convencionais para perguntas “mais ou menos convencionais”. Ou você acha que é todo o mundo que fica um mês sem tomar banho, que se diz um “encantador de um rio curvilíneo” e que, um belo dia, acorda e pensa que é o John Lennon em pessoa?
Cristiano Bastos - Em Uma tarde na fruteira (pelo que já podemos ouvir nas nossas cópias falsificadas) você assume uma cultura tropicalista. Já em Bitter, o tráfego de influências é o oposto: new wave, pós-punk, Dylan, Stones fase Emotional Rescue, Jefferson Airplaine, Buzzcocks, The Jam. Onde estava com a cabeça quando redirecionou sua musicalidade para o rock de língua inglesa?
Júpiter – Andava meio zonzo... Mas, na realidade, sempre fui o mesmo. Minhas influências já fazem parte de mim. Portanto, não importa por quais caminhos eu ande – o fato é: a canção não está diretamente ligada à influência em si e, sim, a uma espécie de complemento da existência. Algumas vezes soa melhor e, em outras, é melhor ainda! It's getting better all the time!
Bastos - Por que lançar Uma tarde na fruteira primeiro na Espanha?
Júpiter – Porque, na real, foi o único selo que se interessou pelo disco antes de qualquer outro.
Bastos - Em três músicas do disco (Síndrome de pânico, Beatle George e Casa de mamãe) você evoca eflúvios alcoólicos. O componente etílico interfere no seu processo de composição?
Júpiter – Sou obcecado por chá, todavia, nunca tive coragem de assumir. A propósito, o vinho espanhol é bem interessante.
Bastos - Como foi o seu encontro com Sean Lennon?
Júpiter – Foi como encontrar meu cúmplice!
Bastos - Quando lançou A sétima efervescência, em 1996, tinha noção do culto que o álbum teria com o passar dos anos?
Júpiter – Na época, não tinha noção do que iria acontecer. Era um período em que eu era um solteirão, dormia em praças e tomava o café da manhã no Bar João [lendário moquifo da avenida Osvaldo Aranha, em Porto Alegre, tragado pelo empreendedorismo imobiliário]. Na real, eu não sabia o quanto estava inspirado. Foi uma época lisérgica, sim! Uma década depois eu entendo a importância deste álbum, do quanto ele mexeu com a vida de algumas pessoas. Na nova capa, elaborada para a sua reedição, particularmente, me pareço bem melhor – pareço Syd Barrett... [risos] Ele foi remasterizado, mas mantém as características originais. Foi um disco que me surpreendeu – e me assustou – quando se tornou um clássico com vida própria.
Bastos - Recentemente, A sétima efervescência foi eleito o melhor disco do rock gaúcho numa votação com 50 especialistas do Rio Grande do Sul. Isso te toca?
Júpiter – A lisonja me pegou de surpresa quando eu tinha 15 anos, portanto, já sei lidar com este tipo de sensação há bastante tempo. Quando me elogiam em excesso, posso reagir como Liam Gallanger ou Bob Dylan, mas não me importo. Pra você ver, hoje acordei pensando que era John Lennon...
Bastos - Em Golden light, de Bitter, a Bibmo emite alguns vocais que lembram Grace Slick nos tempos do Jefferson Airplaine. Esses vocais, que as vezes parecem os duetos que Slick fazia com Paul Kantener no Airplaine, transportam diretamente praquele climão São Francisco, White Rabbit, LSD...
Júpiter – A Bibmo me encontrou morando num quarto de hotel no centro de Porto Alegre. Ela me salvou daquele quarto de hotel. Foi lá que bati meu recorde: um mês sem tomar banho. Grace Slick tinha a mesma fama... O LSD e a química que ele ocasionou no mundo mudaram contextos e, de certa forma, mudaram o mundo também. Hoje, vivendo com a “Bib”, eu tomo banhos. Não sei se vou morar em Nova Iorque ou em qualquer outro lugar do mundo, mas a expectativa é que os próximos álbuns me levem a traduzir e a concretizar mais e mais – tanto no plano da existência como no da experiência.
Bastos - Dizem por aí que você anda chafurdando na literatura beatnik. Na busca do quê: escrita automática, jazz, acampamentos e fogueiras, vagões de trem, comida enlatada, vagabundos iluminados?
Júpiter – Respondo com um aforismo beat de minha lavra: “A partir do momento em que você simplesmente se rende a sua existência e procura um novo lugar pra viver um segundo de cada vez, o resto é conseqüência”.
Bastos - Até que ponto a Madonna – que você sempre cita – é mais uma influência?
Júpiter – Na inveja. Tenho inveja de duas pessoas: Madonna e Bob Dylan. Não tenho inveja do David Bowie... Nem do Lou Reed.
Bastos - E suas incursões cinematográficas? Depois da realização de Apartament jazz e Pescando Júpiter segundo Huxley, qual seu novo projeto de filme?
Júpiter – Depois que disseram que eu precisava de uma plástica para não parecer mais a Giulietta Masina [atriz de cinema italiana e esposa do cineasta Frederico Fellini], resolvi dar um tempo pra câmera [risos].
Bastos - O vídeo de Eu quis comer você dos Cascavelletes no Programa da Angélica virou hit no YouTube. Dá impressão que ninguém fazia a mínima ideia do conteúdo altamente sacana da letra. Como você explica isso, assistindo o vídeo quase 20 anos depois?
Júpiter – O Lobo Mau tem a resposta. Os Beatles também!
Bastos - E hoje, você renega aquele Flavio Basso com pinta de Mick Jagger ou espreme no seu caldo musical?
Júpiter – Já o engoli!
Bastos - Os Cascavelletes têm uma porção de hits. Tem gente que conhece as músicas da banda nos mais profundos recantos do Brasil. Ainda há lugar para reminiscências daquela fase?
Júpiter – Sou uma espécie de gene embrionário nos Cascavelletes. Logo, tudo que tenho feito desde então é seqüência daquilo que pode ser considerado – ou não – um resultado sonoro “similar” ao dos Cascavelletes.
Bastos - Você se orgulha dessa fase? Como definiria os Cascavelletes?
Júpiter – Caras muito bacanas agora e, ontem, um cantor super babaca – eu! Mas um ótimo dançarino, é verdade, como pode ser observado no vídeo de Eu quis comer você [risos].
Bastos - Algum déjà vu – ou flash back – na volta temporona dos Cascavelletes aos palcos?
Júpiter – Sim, eu era tão babaca... Uma vez o Nei Van Sória me chamou num canto e disse: “Eu sou um cara muito inteligente, mas você é um gênio. E você sabe que um gênio não sabe comer filé a parmegiana sem sujar as calças brancas, né?”.
Bastos - O que viu de legal na temporada que passou em Londres?
Júpiter – Me tornei a husband da Bibmo. Acordava as 10 da manhã pra comprar manteiga. No caminho, eu bebia um refrigerante. Eu era um poeta das docas, um encantador de um rio curvilíneo, the best and the worst – saca?
Bastos - Como foi tocar por lá? Acredita que o público o tenha compreendido?
Júpiter – Modéstia realmente à parte, se facilitar, ficaremos muito famosos...
*Cristiano Bastos é jornalista. É um dos autores do livro Gauleses irredutíveis – Causos & Atitudes do Rock Gaúcho. Escreveu Julio Reny – Histórias de amor e morte, Júpiter Maçã: A efervescente vida e obra, Nelson Gonçalves: O rei da boemia e o livro de reportagens Nova carne para moer. Também dirigiu o documentário Nas paredes da pedra encantada, sobre o álbum Paêbirú, de Lula Côrtes e Zé Ramalho.