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reportagem cultural

- Publicada em 14 de Maio de 2020 às 21:34

Julio Reny completa quatro décadas de carreira e não pensa em aposentadoria

Músico em frente ao Winston Churchill, onde tem início a lenda do delinquente Pé na Cova, terror dos líderes de gangue na cidade

Músico em frente ao Winston Churchill, onde tem início a lenda do delinquente Pé na Cova, terror dos líderes de gangue na cidade


NÍCOLAS CHIDEM/JC
Após quatro décadas (e um dia antes ao isolamento social imposto pela pandemia do novo coronavírus) estamos de volta ao tradicional colégio Winston Churchill, situado na Rua da República, no coração da Cidade Baixa em Porto Alegre. O local, por inúmeras razões, tem marcantes significados para o cantor e compositor Julio Reny, 61 anos, um dos ícones do rock gaúcho.
Após quatro décadas (e um dia antes ao isolamento social imposto pela pandemia do novo coronavírus) estamos de volta ao tradicional colégio Winston Churchill, situado na Rua da República, no coração da Cidade Baixa em Porto Alegre. O local, por inúmeras razões, tem marcantes significados para o cantor e compositor Julio Reny, 61 anos, um dos ícones do rock gaúcho.
Foi nas dependências do Churchill que, após cansar de sofrer bullying, Julio resolveria revidar e, assim, criaria em torno de si a lenda do temido brigador de rua "Pé na Cova". "Aqui no Churchill eu aprendi a me defender. E nunca mais fui derrotado. O Pé na Cova nunca foi derrubado nem por caras que tinha o triplo de meu tamanho", vangloria-se. Nos anos 1970, Pé na Cova fez história nas ruas de Porto Alegre pelas quais circulou em bairros como Bom Fim, Santana e Cidade Baixa.
Outra especial razão é que, não muito longe do Winston Churchill, Julio estrearia musicalmente com a sua primeira banda, do sugestivo nome Uma Canção Nas Trevas. Realizado no anfiteatro da Faculdade de Medicina da Ufrgs, o show foi em novembro de 1979.
Pouco antes da estreia, Julio compôs cerca de 10 canções no tempo recorde de um mês - uma por noite -, para ter repertório para o show. Eram músicas como A noite se move, Tomás e a lagoa e Um rio que refletia a cidade. Outras, feitas nessa leva, como, por exemplo, Fantasia para Terna, Apenas um gato com uma mancha preta no olho e a autobiográfica Memórias de um brigador de rua, infelizmente, nunca chegaram a ser gravadas, e terminara perdendo-se na poeira do tempo. O jovem músico contava, então, apenas 19 anos.
O rock, naqueles distantes dias, lembra Reny, ainda gozava status de maldito em Porto Alegre. Na realidade, ainda demoraria alguns anos até que o gênero caísse no gosto (e ouvidos) dos jovens porto-alegrenses. "Eram dias em que eu me via como um 'desbravador do underground'. E olha que, na época, nem mesmo existia algo por aqui que pudesse ser chamado de 'underground'. Os Almôndegas, um dos grupos de maior sucesso do Rio Grande do Sul, para lembrar, já haviam partido para o eixo Rio-São Paulo e há muito não cabiam em tal definição", analisa.
O músico ainda tem vívida na memória a primeira apresentação do grupo Uma Canção nas Trevas, a qual ele define como "muito louca". No meio da estreia, corroborando que o destino é mestre na arte de pregar peças, narra, sucedeu-se uma grande ironia: faltou luz.
Supersticioso, ele acredita que algo sobrenatural ocorreu naquele momento. "Mal tocamos a primeira música, e a luz se foi. Algum espírito zombeteiro rondava por ali... Então toquei a introdução de Super-Homem está esquecendo as suas melodias sozinho, com as luzes apagadas. Porém, tive espírito de palco e driblei o imprevisto. Burlei o sacana do destino. Vi-me em meio à plateia tocando com o violão desplugado. Escuridão total. Mas, com certeza, coisas mágicas acontecem. E exatamente quando deveria entrar o refrão, eletrificado, a luz voltou. Então me pluguei, a banda voltou com tudo, e a música prosseguiu do ponto onde parara. O público presente nem se deu conta, mas, para nós, iniciantes, aquele acontecimento foi misteriosamente lindo. Piramos". Ali, envolto em trevas e luz, estreava o Julio Reny músico e compositor.

Pioneiro da música independente

Depois de ter biografia publicada, artista ainda será tema de documentário dirigido por Fabrício Costa e Tamires Kopp

Depois de ter biografia publicada, artista ainda será tema de documentário dirigido por Fabrício Costa e Tamires Kopp


TAMIRES KOPP/DIVULGAÇÃO/JC
Antes de virar músico, Julio Reny dividiu-se entre a lei, sendo brigadiano-mirim; atleta, como goleiro do Sport Club Internacional; e delinquente juvenil, exercendo sua habilidade de ladrão de discos (roubou mais de 300 em lojas da cidade). Na verdade, só desabrochou musicalmente após ter passado pelo teatro, onde já atuava desde 1977 integrando a trupe Vende-se Sonhos (em espetáculos como Trenafor e Das duas uma). E, em 1978, dirigido por Luciano Alabarse, atuando na peça O evangelho segundo Zebedeu, em que interpretava um padre e também um despótico general.
Após o teatro ("atuar me tirou o medo dos palcos", afirma), viria a experiência no cinema, participando de Deu pra ti, anos 70 e Verdes anos, dois filmes geracionais do cinema jovem porto-alegrense do começo dos anos 1980.
Prolífico compositor, Julio Reny é pioneiro da chamada "música independente" em Porto Alegre (os outros desbravadores foram Nei Lisboa, com seu disco Pra viajar no cosmos não precisa gasolina - resultado do primeiro crowdfunding feito no Estado, a popular "vaquinha", cujo projeto recebeu o nome de Neilisbônus -, e Juntos, LP de Nelson Coelho de Castro). Mais do que desbravador do hoje popularizado independente, pode-se dizer que Julio, por excelência, é um dos criadores-mor da música jovem-rock-pop-adulta porto-alegrense.

Uma temporada conturbada e prolífica

Amigo do compositor, o produtor musical Gordo Miranda era fã do disco Último verão

Amigo do compositor, o produtor musical Gordo Miranda era fã do disco Último verão


ACERVO LUCIENE ADAMI/DIVULGAÇÃO/JC
Em 1976, o "street fight man" Pé na Cova apaixonou-se por Denise, uma garota rica que morava nas redondezas, só que ela não correspondeu ao seu amor. O jovem Julio Reny foi, então, acometido de um surto psiquiátrico e os pais resolveram interná-lo no Hospital Espírita de Porto Alegre, onde passou uma conturbada temporada. Seria naquele ambiente - que o músico compara ao do filme Um estranho no ninho (protagonizado por Jack Nicholson) - que ele gestaria as letras das canções que seriam sulcadas no cultuado Último verão, sua estreia fonográfica, em fita cassete, lançada em 1983.
Ainda expurgando a traumática experiência da internação, e do desamor de Denise, Julio escreveu sua primeira música: a pungente Uma tarde de outono de 73. No pátio do hospício, relembra o músico, um louco chegou nele e disse a frase que, latente, ficou retumbando em seus ouvidos (e que virou o refrão da música): "No hospital, você tem todo o tempo do mundo".
Lançado pela Pirata Sulista, selo de propriedade de Julio, Último verão, gravado nos estúdios da Eger, traz músicas como A noite se move, Barbearia, Um rio que refletia a cidade e Cine Marabá, seu primeiro hit. Apesar de não ter vendido mais do que 12 cópias na época, nos cálculos do artista, a fita, com o passar do tempo, converteu-se em verdadeiro objeto de culto.
Amigo íntimo de Julio, Carlos Eduardo Miranda, o Gordo Miranda, era um que não escondia toda a sua emoção ao falar sobre Último verão, do qual ele era um grande fã. Na biografia de Julio Reny, Histórias de amor & morte, Miranda considera o disco, sem medir palavras, "uma das melhores coisas feitas na música brasileira em todos os tempos".
 

A primavera do pop

Fernanda Chemale registrou show da Expresso Oriente no Ocidente nos anos 1980

Fernanda Chemale registrou show da Expresso Oriente no Ocidente nos anos 1980


FERNANDA CHEMALE/DIVULGAÇÃO/JC
Julio Reny conta que, ao gravar Último verão, colocou um ponto final em seu período "folk-outsider-dylanesco". A seguir, arrebatado pela sonoridade new wave e pós-punk que germinou no pop brasileiro no começo dos anos 1980, dá uma guinada estética e cria o supergrupo Expresso Oriente. O nome, diz, foi pego emprestado do filme Assassinato no Expresso Oriente, baseado na obra de Agatha Christie, autora pela qual se diz fissurado desde guri, assim como pela cultura oriental. A Expresso Oriente durou até 1992 e deixou apenas um LP, de mesmo nome, gravado em 1990 e lançado pelo selo Abreu Discos.
Admirador confesso de Julio Reny, o músico e pesquisador Arthur de Faria observa que o disco da Expresso Oriente, com seus misteriosos ecos do Saara e sutis orientalismos, estabeleceu "um novo padrão de sofisticação para aquele cenário de meados dos anos 1980, com ecos de world music, soul, música negra e muita brasilidade".
O grupo tinha, entre outros integrantes, Jimi Joe na guitarra, Vasco Piva na guitarra e sax, e o ex-Engenheiro do Hawaii Marcelo Pitz no baixo. No repertório do LP, hits como Amor & morte, Não chores Lola e Anita. E, sem autorização prévia, uma bela versão para Amada amante, de Roberto Carlos. "Nada poderia soar mais insólito, naquele momento, no rock gaúcho (gravar Amada amante). O disco da Expresso reforça a mítica de Julio e o estabelece como uma referência de sofisticação, ainda que, no final, não resulte em nenhum estouro de popularidade", avalia Arthur.
 

Cancionista de mão-cheia

Frank Jorge (esq.) tocou com Reny no grupo Cowboys Espirituais e no power trio Guitar Band

Frank Jorge (esq.) tocou com Reny no grupo Cowboys Espirituais e no power trio Guitar Band


ESPET/DIVULGAÇÃO/JC
Em sua tese de mestrado, intitulada A gênese da bossa nova: João Gilberto e Tom Jobim, o músico, professor e compositor Carlo Pianta não mede louvores para homenagear Julio Reny, a quem chama de "o maior cancionista gaúcho". Eis cinco canções do bardo que justificam tal deferência:
Amor & morte (1984) - Um dos hinos definitivos da música pop adulta rio-grandense de todos os tempos. Julio encomendou a letra da canção à sua primeira esposa, a poetisa Jacqueline Vallandro, após o insight de que as letras do chamado "rock gaúcho" eram todas de cunho masculino. Em seus celebrizados versos, o músico se coloca na pele (e alma) de uma mulher para cantar: "Às vezes você se parece/ Com James Dean/ E realmente a gente sente vontade de roçar/ Neste blue jean/ Mas no seu beijo falta corte/ Esqueça a lua, baby, e me dê/ Amor & morte".
Não chores Lola (1985) - Imortalizada pelos incendiários riffs de guitarra engendrados por EduK (na época, um piá de apenas 16 anos), futuro vocalista do DeFalla, Não chores Lola rodou direto na programação da rádio Fluminense - A Maldita, junto com artistas e bandas como Os Paralamas do Sucesso e Kid Abelha. E, também, na rádio Ipanema FM. No entanto, o que poucos sabem é que a Lola que pranteia na música, na verdade, é o próprio Julio, que, naqueles dias, vivia um período de grande solidão amorosa.
Lua rosa do Nilo - Em 1992, Julio encerrava as atividades da Expresso Oriente e, escoltado pelos músicos Carlo Pianta e Frank Jorge, da Graforréia Xilarmônica, dava uma nova guinada estética em sua carreira, formando o power trio Guitar Band. O grupo compôs um repertório com várias canções novas, como Café Marrakesh, Madrid Motel e Aconteceu no verão. Para criar Lua rosa do Nilo, um reggae de letra com alto teor erótico, Julio conta que se inspirou na série de TV Twin Peaks. A música emplacou imediatamente na programação da Ipanema FM e virou clássico instantâneo entre seus fãs.
Jovem cowboy (1998) - O único hit nacional de Julio Reny, até agora, foi com os Cowboys Espirituais. A música é Jovem cowboy e seu improvável crossover, beirando à perfeição, entre o country e o rap (declamado pelo rapper Piá). A banda tinha, nessa formação, os músicos Márcio Pretacco, ex-TNT, e Frank Jorge, da Graforréia Xilarmônica (também com passagem pelos Cascavelletes). Tudo começou com um jingle, feito para uma loja de vestuário country, que terminou nos antológicos versos: "Lá vem o jovem cowboy/ Chegando na cidade/ Depois do trabalho no campo e uma longa viagem/ Cansado procurando uma pousada pra dormir/ E um bom lugar pra se divertir". O resto é história.
Carinho e conforto (1998) - A belíssima canção faz uma junção entre os violões de Marcio Petracco e Julio Reny. "Em Carinho e conforto é como se o Marcio fosse o Roger McGuinn, solando, e eu o David Crosby, dos The Byrds, dialogando com seus instrumentos de corda", coteja Julio. A sonoridade dos Byrds, aliás, é muito presente nos Cowboys Espirituais. Carinho e conforto, porém, não se trata de uma letra romântica. Julio a fez para sua mãe. A letra fala sobre uma "princesa querendo amar": "Um verdadeiro porto/ Um mar de carinho e conforto".

Shows e novos discos

Músico segue fazendo shows com sua atual banda, os Irish Boys

Músico segue fazendo shows com sua atual banda, os Irish Boys


CRISTIANO PY/DIVULGAÇÃO/JC
Atualmente, fora os shows que segue fazendo com sua atual banda, os Irish Boys, Julio Reny vem gestando as canções daquele que será o quarto álbum de sua banda paralela, os Cowboys Espirituais. O disco ainda não tem data para ser lançado, mas quatro músicas já foram compostas: Ela foi para Paris, o novo single, disponível na internet; Larissa não mora mais aqui, canção feita para sua segunda filha; Joey contra o vulcão, cuja letra, segundo Julio, tem, por acaso, a ver com os dias pandêmicos que atravessamos; e Corações legendários, em homenagem a Lou Reed, o cantor e compositor nova-iorquino com o qual ele muitas vezes foi comparado.
No final do ano passado, ao melhor estilo Serge Gainsbourg, Julio Reny brindou sua fiel esquadra de fãs com a compilação O homem que amava as mulheres, que define como "uma coleção de memórias afetivas" sobre as mulheres e amantes que passaram por sua vida - muitas das quais garotas de programa. O sexo feminino, ele confessa, seja na vida ou na arte, sempre foi sua inspiração maior. "As mulheres são a luz que abrandam a minha solidão", resume poeticamente.
Aos 61 anos de idade, 11 discos e centenas de canções na bagagem (muitas das quais emblemáticos hinos do pop gaúcho: a nietzschiniana Super-Homem está esquecendo as suas melodias, A garota do carro vermelho, Ivone, Razões do coração, Não chores Lola, Amor & morte, entre tantas outras), Julio segue compondo incessantemente. E faz questão de frisar: "Quero, literalmente, tocar, compor e gravar até morrer. E, de preferência, se Deus me permitir, quero morrer no palco, assim como aconteceu com Altemar Dutra, meu ídolo de infância".

Julio cinematográfico

Como ator, encarna Sid Vicious, o trágico baixista dos Sex Pistols, no curta de Rogério Brasil Ferrari

Como ator, encarna Sid Vicious, o trágico baixista dos Sex Pistols, no curta de Rogério Brasil Ferrari


MATHIAS CRAMER/DIVULGAÇÃO/JC
Deu pra ti, anos 70 (1981)
Longa-metragem filmado em Super-8 dirigido por Nelson Nadotti e Giba Assis Brasil que revoluciona e introduz a linguagem pop ao cinema gaúcho. O filme tece histórias da década de 1970, as quais são contadas do ponto de vista de quem despertou para o mundo no período. Marcelo e Ceres, os personagens centrais, encontram-se e desencontram-se em reuniões dançantes, bares, cinemas, universidades e acampamentos. Tem participações especiais de artistas que viriam a ser expoentes da cena musical gaúcha, como Nei Lisboa, Wander Wildner e Augusto Licks. Julio faz o papel de Fred e protagoniza uma das cenas mais cômicas do filme, acampado com estes em Garopaba, com a consciência alterada, querendo ver o sol nascer às 2h da madrugada.
Verdes anos (1984)
Em Verdes anos, dirigido por Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil, Julio faz o disc-jockey Ângelo Renato. Gerbase conta como se deu a escolha do músico para o papel e louva sua condição de "outsider" por excelência: "Radialista e DJ sintonizado com o rock internacional - além, é claro, de qualquer coisa que colocasse as pessoas para dançar numa reunião dançante em 1972 -, o Ângelo Renato não tinha nada a ver com o bando de jovens alienados que formavam o resto da galeria de personagens do filme. Por isso, a escolha de Julio era óbvia para mim e para o Giba Assis Brasil Julio era ator, com passagem teatral pelo Grêmio Dramático Açores e, fora isso, tinha tido uma grande atuação cinematográfica em Deu pra ti, anos 70. E era um grande músico. E era nosso amigo. A sua atuação em Verdes anos é sincera e emotiva. Grande Julio! Rei dos outsiders desta pequena e provinciana cidade de Porto Alegre".
Vicious (1988)
Neste curta-metragem em clima punk-noir dirigido por Rogério Brasil Ferrari e produzido por Adriana Borba, Julio Reny encarna (de corpo, alma e também nas veias) o Sex Pistol Sid Vicious. A atriz Márcia do Canto vive Nancy Spungen, sua namorada louca e junkie. Brasil Ferrari explica que, quando começou a pensar na produção de Vicious, assistiu as atuações de Julio nos filmes em que atuara. E, vendo sua imagem na tela, caiu-lhe a ficha: "Ficou claro para mim que, além de talentoso e carismático, ele tinha tudo a ver com o personagem do jeito que eu imaginava, numa transmutação narrativa entre Londres, Nova York e Porto Alegre. Trabalhar com ele na construção de Sid foi uma vivência fantástica e intensa, durante os ensaios e as filmagens. Viagens stanislavskianas de muita improvisação madrugadas adentro, num clima de absoluta criatividade e confiança. Longa vida ao rei!".

'Uma tarde de outono de 73', por Paulo Scott

Retrato do músico na praia de Garopaba, nos anos 1990

Retrato do músico na praia de Garopaba, nos anos 1990


TAMIRES KOPP/DIVULGAÇÃO/JC
"Uma canção de nove minutos cuja letra daria um belo curta-metragem; não, daria um belo longa. É a mais perturbadora faixa de um disco de estreia, um disco que, lá na primeira metade dos anos mil novecentos e oitenta, marcou a produção musical urbana do Rio Grande do Sul para sempre. Uma canção escrita e executada por um artista cuja vida também daria um baita longa. Essa canção é a Uma tarde de outono de 73, e o artista é Julio Reny, o eterno local hero de Porto Alegre, o anti-herói perfeito, um compositor brilhante, para dizer o mínimo.
Último verão, o álbum onde está Uma tarde de outono de 73, é o meu disco preferido do Julio - até onde lembro, consegui como fita cassete pirata de um amigo, depois adquiri, também no formato fita cassete, na loja-bar dos Replicantes, que ficava na Avenida Protásio Alves, na altura do Bairros Rio Branco e Santa Cecília, a Vórtex. Para mim é o número um entre todos os discos produzidos no Rio Grande do Sul. Talvez porque nele, do começo ao fim e sem concessões comerciais, estejam letras de músicas que, impressas em um livro, dariam um ótimo livro de contos, contos épicos, causa e efeito uns dos outros, um livro cult.
A faixa narra a paixão, em todos os sentidos, de um jovem levado pela família para um sanatório e deixado lá com seus fantasmas e suas esperanças para se submeter por um tempo à lógica carcereira dos supostos tratamentos de recuperação para pessoas dependentes do consumo de álcool e das drogas químicas ilícitas.
Na memória perdida do narrador, no salão do refeitório da clínica, o rádio tocava uma canção, e ele, confuso e inseguro, convidou uma garota para dançar enquanto os enfermeiros os observavam de braços cruzados rindo, uma garota que, enquanto dançava com ele, chorava. Ali, sem compreender o que deveria ser o certo e o errado, juntos, os dois, enfrentam, do modo que lhes é permitido, todo o tempo opressor do mundo. E ele beija a garota na boca, beija pela primeira vez. Incontido, como todos os que sonham e querem mais da vida do que apenas migalhas, apaixonando-se, desfazendo um pouco a dor, desobedecendo o certo e o errado do mundo.
Obrigado, Julio Reny, por sua obra, por esse disco, o Último verão, e por essa inesquecível canção que é Uma tarde de outono de 73."
 

Discografia

Bola 8, um dos álbuns lançados com os Irish Boys

Bola 8, um dos álbuns lançados com os Irish Boys


DIVULGAÇÃO/JC
Solo
Último verão (1983)
Julio Reny & Expresso Oriente (1989)
A caminhada de Julio Reny (2004)
Diários da chuva (2006)
A primavera do gato amarelo (2008)
Bola 8 (2010)
O homem que amava as mulheres (2015)
Com os Cowboys Espirituais
Os Cowboys Espirituais (1998)
De Luxe (2001)
Cowboys Espirituais III (2007)
Outros
Projeto Histórias do Rock Gaúcho
Estradas - Volume 1 (2005)

* Cristiano Bastos é autor de Julio Reny – Histórias de amor & morte, obra vencedora da categoria Especial do Troféu Açorianos de Literatura 2015, e das biografias Júpiter Maçã: A efervescente vida & obra e Nelson Gonçalves – O Rei da Boemia. Recentemente, publicou Nova carne para moer: Seleção de textos sobre cultura pop, grandes reportagens, entrevistas, perfis e artigos