Juliano Tatsch e Suzy Scarton
O consagrado historiador britânico Eric Hobsbawn denominou como a Era dos Extremos o período compreendido entre o início da Primeira Guerra Mundial, em 1914, e o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), em 1991. Foi nesse curto espaço temporal, do ponto de vista histórico, que o planeta viu uma guerra explodir na Europa entre trincheiras, o comunismo surgir como sistema de governo, o fascismo ganhar corpo e, unido ao seu irmão mais cruel, o nazismo, arrastar o mundo ao seu maior conflito armado de todos os tempos, com o ódio político, religioso e racial tendo sido elevado ao nível mais alto já visto. A civilização conheceu os campos de concentração e as câmaras de gás, e assistiu ao que a genialidade da mente humana, somada ao insano desejo de poder, é capaz de fazer quando as bombas atômicas devastaram Hiroshima e Nagasaki. Ditadores sanguinários, genocídios, perseguições. Stalin, Mussolini, Hitler, Mao, Franco, Pol Pot, Pinochet, Idi Amin, Videla, Sadam, Milosevic, Bin Laden, Bush. Todos eles governaram nessa era dos extremos, na qual o diferente foi visto como inimigo.
O terrorismo de cunho religioso, com cabeças sendo decepadas em frente às câmeras, trouxe um novo elemento para esse cenário de intensos embates entre pontos de vista, ideologias ou simples opiniões.Com o surgimento das redes globais de comunicação e, mais recentemente, das redes sociais, as demonstrações de ódio, intolerância, desrespeito e extremismo tiveram seu espectro de alcance ampliado. Ataques, insinuações, difamações, mentiras. Xenofobia, homofobia, machismo, racismo, intolerância religiosa, divergências político-ideológicas. Esses são apenas alguns dos ingredientes de um caldo de gosto amargo e perigoso.
Se esse estado de coisas já era, por si só, potencialmente inflamável, a eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos foi um passo a mais em direção ao recrudescimento da intolerância em nível político internacional. A conquista do posto mais poderoso do mundo por uma figura como o bilionário republicano, com declaradas posições preconceituosas e extremistas em relação às mais diversas questões, causou temor em relação aos riscos ao respeito e à garantia aos direitos humanos.
De certo modo, Trump é o retrato de um cenário global de guinada a posições não conciliatórias, de confronto, de intolerância, de desrespeito ao diferente. Na França, a extrema-direitista Marine Le Pen chegou ao segundo turno nas eleições presidenciais. No Brasil – onde o deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ), apoiador da ditadura e da tortura, e reconhecidamente homofóbico e machista, é considerado um herói por uma considerável parcela da população –, o caso do pai que matou o filho e depois se suicidou em razão de discordar das posições políticas do jovem ligou o alerta em uma sociedade doente, na qual apenas o ato de discordar passou a ser considerado uma ofensa, um ataque pessoal.
As consequências desse processo de desumanização das relações ainda são vistas em seu estado gestacional. E, mesmo neste estágio, percebe-se a criação de um cenário hostil, a preparação de um terreno fértil no qual brotam conflitos locais, nacionais e até transnacionais.
Durante o mês de agosto, em suas cinco edições, o Jornal da Lei irá tratar da questão, abordando-a pelos mais diversos pontos de vista, buscando dar um panorama amplo a respeito do tema.
Intolerância ao diferente caminha ao lado da história da humanidade
LEIS - Entrada dos Cruzados em Constantinopla - Cruzadas -Reprodução de quadro de Eugène Delacroix
REPRODUÇÃO/JC
O extremismo não é filho do século passado. Os grandes impérios da história se ergueram sob o fio da espada. Otomanos, babilônicos, macedônios, mongóis, persas, romanos, entre tantos outros. Todas as grandes civilizações antigas surgiram, se expandiram e se sustentaram à base de muito sangue derramado.
No caso dos impérios modernos expansionistas, como o britânico, a violência, mesmo presente, perdeu espaço diante de um processo de exploração econômica. O capitalismo falou mais alto.
Já em relação ao único império ainda existente, o fator econômico também é o principal. Com outro perfil, sem o intuito da tomada de territórios, os Estados Unidos se consolidaram no último século como a maior potência econômico-militar do planeta. Para isso, valeu-se recorrente de guerras e ataques militares para fazer valer seus interesses.
Não apenas os Estados, porém, atuam como disseminadores do conflito, do desrespeito ao outro e da intolerância. As religiões, da mesma forma, possuem papel de protagonistas desse cenário histórico. Se, hoje, nenhuma delas prega, por meio de seus líderes maiores, o uso da violência contra quem não compactua com seus dogmas e crenças, no passado, isso era não apenas comum. Era praxe.
Livros queimados em grandes fogueiras, perseguição a quem professava outra fé ou nenhuma fé, conversão forçada. Em um ambiente no qual se espera que prevaleçam o humanismo, a solidariedade, o respeito, a paz e o amor, aqueles, antes eram perseguidos, passaram a perseguir. Matar, agredir, torturar, mutilar, humilhar, ofender, cercear direitos, impedir a prática de outra fé que não a sua. Tudo isso em nome de Deus, do seu Deus.
Linha do tempo
Desigualdade está nas origens do preconceito no Brasil
Marshall, Maynard e Tadeu César apontam razões para casos de radicalismos crescerem no Brasil
FOTOS FREDY VIEIRA, ARQUIVO PESSOAL E CLAITON DORNELLES/JC
Último país do continente a dar fim à escravidão, o Brasil ainda colhe em 2017 os frutos plantados em séculos de exclusão de grupos sociais. Historicamente alijados das instâncias de poder, pobres e negros sofrem hoje em dia com as mais diversas formas de preconceito.
Para o historiador Francisco Marshall, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), a polarização política e cultural tem como marco de anterioridade a condição de desigualdade social que permeia toda a história brasileira. Conforme o estudioso, por trás do atual ambiente político-social do Brasil, há uma polarização entre a defesa de um projeto social e a de um projeto de capital.
A crise cultural, porém, não é exclusividade brasileira, destaca o historiador. "Nos Estados Unidos, a eleição do Donald Trump provocou uma onda de irracionalidade etnocêntrica, de atitudes de obscurantismo ético, de nacionalismo exacerbado, de xenofobia", salienta. Essa onda, segundo Marshall, está por trás de outro fenômeno, o de "uma certa irracionalidade disseminada", que tem como amparo a pós-verdade difundida por políticos que se movimentam nesse território de formulações irracionais.
A posição é compartilhada pelo doutor em Ciências Sociais pela Unicamp e professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) Benedito Tadeu César. Para ele, a explicação para o extremismo no campo político passa intrinsecamente pela desigualdade extrema existente no País.
Crise política
Afora o fator socioeconômico, historicamente desigual e multiplicador de problemas no Brasil, o momento atual apresenta a maior crise no campo político desde a redemocratização, após os 21 anos (1964-1985) de regime militar. O sistema de poder representativo, no qual o povo escolhe os governantes por meio de eleições diretas, fraqueja em um ambiente em que nenhum partido político consegue tomar para si os anseios da sociedade e, tampouco, apresentar respostas e caminhos a serem trilhados para que a crise chegue ao fim.
Inundado em um cenário de corrupção espraiada horizontal e verticalmente, em todos os níveis, o Brasil parece ter entrado em um vórtice de caótica volatilidade nas instâncias de poder. Assim, sem mais enxergar nas instituições políticas a representatividade que lhes havia sido atribuída, o cidadão perdeu a crença de que a política era o caminho para a resolução das dificuldades nacionais. Ser político - profissional ou ocasional - ou estar, de alguma forma, envolvido em atividades políticas passou a ser visto como um atestado de desonestidade.
O pós-doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Dilton Cândido Santos Maynard destaca que os ataques sofridos pela política como forma de articulação e organização social se originam em uma confusão entre o político - um cidadão que chega às instâncias de poder - e a política, aquilo que torna viável a vida em sociedade, que faz suportável o convívio entre povos diferentes sem que seja necessária a guerra. "Nos anos 1920, o fascismo ganhou força justamente criticando a política. Os primeiros sinais de que uma sociedade caminha para um ambiente de atos extremos é a desqualificação da política como ato cotidiano, ato ordinário da nossa vida", avalia.
No caso brasileiro atual, o descrédito é generalizado. Não há sigla política que escape, independentemente da linha ideológica que siga. A esquerda não presta para quem é de direita, e a direita não presta para quem é de esquerda. O que sobra? O centro. Historicamente fiel da balança nos governos de coalização do País, os partidos que não se vinculam a nenhum dos lados opostos - ao menos não publicamente - acabavam equilibrando a disputa entre discursos. Esse cenário, porém, já não existe mais. Para Tadeu César, no campo da Ciência Política, tem-se visto que, nos momentos em que o centro político perde força, os extremos se digladiam. "Acho que foi o que aconteceu aqui no Brasil", diz.
Busca por culpados
Quando a ordem social está em desequilíbrio, a reboque da polarização das opiniões, surge a busca por culpados. Maynard acredita que, no momento em que a sociedade começa a retirar de si a responsabilidade por certos acontecimentos e passa a apontar bodes expiatórios, entra-se no caminho da intolerância. O historiador aponta o conceito do "outro inconveniente", criado pelo teórico alemão Peter Gay (1923-2015). A definição diz respeito a uma ou mais figuras apontadas como culpadas por problemas que atingem determinada sociedade.
A História comprova a observação de Gay. O caso mais célebre e de maiores consequências foi o da Alemanha em crise após a derrota na Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Em um país que se sentia injustiçado pelos acordos de paz, a ira da busca por responsáveis recaiu sobre os judeus - e sobre todos que, de algum modo, poderiam representar resistência ao regime nazista.
A figura do "outro inconveniente", de certa maneira, sempre esteve presente no imaginário moderno brasileiro. "A sociedade brasileira é assim, por conta da colonização portuguesa. Nós, enquanto cidadãos, não temos nada a ver com o que é feito. Culpa-se a colonização, uma outra sociedade pelo que estamos vivendo. O indivíduo não se assume como cidadão. Isso é sempre perigoso", observa Maynard.
Do 'homem cordial' à sociedade que clama por vingança
Fazer justiça pelas próprias mãos se tornou ato corriqueiro no Brasil do nós contra eles
FREDY VIEIRA/JC
Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) usou, em sua clássica obra "Raízes do Brasil", publicada em 1936, a figura do "homem cordial" para definir o brasileiro. O historiador aponta que a "lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro".
O intelectual aponta que seria engano supor que essas virtudes possam significar civilidade. Segundo ele, são, antes de tudo, "expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante". Buarque de Holanda salienta, porém, que na civilidade há "qualquer coisa de coercitivo", pois ela pode se exprimir em "mandamentos e em sentenças".
No célebre livro, o historiador indica a polidez como uma organização de defesa ante a sociedade. Segundo ele, a polidez se detém na parte exterior, epidérmica do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. "Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar intatas sua sensibilidade e suas emoções", afirma.
Para o "homem cordial" do estudioso, "a vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência". Buarque de Holanda diz que a maneira de expansão do indivíduo para com os outros o reduz, cada vez mais, à parcela social.
Na visão do professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) Benedito Tadeu César, o pacifismo aparente da sociedade brasileira se origina na submissão, ou seja, no impedimento de que aqueles que não são beneficiados se organizem e expressem suas demandas.
A cordialidade aparente do sujeito desaparece quando o meio que lhe faz colocar a máscara da polidez, a sociedade, não lhe proporciona a proteção e a estabilidade que ele espera. Assim, a bestialidade humana aflora, e a cordialidade dá lugar à sede por vingança. De preferência, pública e dolorosa.
O mais recente caso de reação extrema se deu no início de julho, no Rio de Janeiro. Um homem acusado de roubar a bolsa de uma mulher foi linchado, teve gasolina jogada no corpo e foi queimado vivo. Tudo isso sob os olhares e câmeras sedentas de vingança - e não de justiça - de vários espectadores.
Psicanalista Alfredo Jerusalinsky observa que a intolerância tem origem no medo
MARIANA CARLESSO/JC
Os justiçamentos têm se tornado cada vez mais corriqueiros no País. A compreensão do fenômeno passa pela análise de uma série de fatores, mas um deles, especialmente, se destaca. A fragilidade das instituições, com a consequente descrença na capacidade da estrutura do Estado em cumprir o seu papel como regulador das práticas sociais, gera o sentimento de que algo precisa ser feito, com urgência; e, se as instâncias de poder não o fazem, alguém precisa tomar as rédeas para si. Onde não há justiça, reina a vingança e a revanche.
O psicanalista Alfredo Jerusalinsky ressalta a tolerância como um sentimento instável, o qual facilmente se transforma no contrário, pois nasce de recortar no semelhante o que deve ser tolerado. "Esse foco, sempre latente, retorna assim que o 'tolerante' se sente em perigo. O caminho mais curto para o ressurgimento da intolerância é o medo coletivo", afirma.
E o ambiente de incertezas que o Brasil vivencia acaba por ser a mola para esse medo coletivo. Do bate-boca nas redes sociais até o policial que quebra o cassetete na cabeça de um estudante. Quando não há mais espaço para o diálogo e o contato respeitoso com o diferente, quando o impulso animal se sobrepõe à natureza racional, já não basta que o alerta seja ligado. É preciso que algo seja feito. O quanto antes.
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