Juliano Tatsch e Suzy Scarton
Uma sociedade polarizada, na qual os radicalismos se sobrepõem ao equilíbrio ponderado de opiniões, vive um dilema de responsabilidades. Por onde passa a radicalização na esfera social? Ao mesmo tempo em que o recrudescimento das ações de intolerância é percebido como um elemento de massa, o papel do indivíduo nesse cenário não pode ser desprezado.
Assim, surge a seguinte questão: a intolerância é um fenômeno da sociedade, no qual a pessoa se vê como uma folha em meio à ventania, sendo levada pelo comportamento geral; ou é uma ação própria do indivíduo, que decide, sem grandes influências do fator externo, tomar o caminho da radicalização com base em sua visão de mundo?
Para o psicanalista e pós-doutor pela Universidade de Londres, na Inglaterra, João Angelo Fantini, a tolerância implica algo que as pessoas não aprovam, mas não podem evitar. Segundo o professor da Universidade Federal de São Carlos, em São Paulo, a tolerância pode ser pensada como "um tipo de defesa narcísica inconsciente, cuja compensação para o sujeito se faria em termos do centralismo cultural ou impotência benevolente". A intolerância, por outro lado, indica que o "ponto de partida para reconhecer o outro é sempre negativo".
Organizador do livro Raízes da Intolerância (EdUFSCar, 2014), Fantini observa que a psicanálise aponta que as mais virulentas manifestações de intolerância são reservadas às pessoas "estranhas", que tentam agir e falar como aqueles que se julgam cidadãos natos. "Quanto mais esses 'estranhos' tentam emular e imitar, isto é, quanto mais eles tentam 'pertencer', mais feroz aparece a rejeição", observa.
Isso pode ser observado, por exemplo, no preconceito aos homossexuais. A rejeição mais forte é direcionada àqueles que, a um primeiro olhar, não deixam clara sua orientação sexual. O mesmo é percebido quando comunidades imigrantes deixam seus "guetos", ou bairros e ruas vistas como pertencentes a eles. O bairro árabe, a zona cigana, a rua dos profissionais do sexo não incomodam tanto como quando essas pessoas se misturam às outras. Diante disso, a concepção de uma sociedade "tolerante" e não "respeitosa" aponta para um conflito em constante latência, um quadro de tensão permanente.
Novas tecnologias são terreno fértil para fanatismos
MANIFESTAÇÃO PRÓ-IMPEACHMENT – NA AVENIDA GOETHE
FREDY VIEIRA/JCNão há quem não tenha presenciado ou participado de algum debate ríspido, às vezes agressivo, sobre um assunto qualquer. O embate de ideias é a base de uma democracia livre, e, assim sendo, deve ser fomentado. Quando esse enfrentamento, porém, ultrapassa o limite da civilidade e das opiniões, e se transforma em uma troca vazia de ataques sem argumentos, de ofensas sem pensamento reflexivo a respeito da questão, o que antes era o oxigênio de uma sociedade democrática vira o laço que a enforca.
É possível que o surgimento da internet tenha ocasionado a mais impactante transformação nos modos de comunicação, se não de vida, no último século. Os conceitos de distância e tempo foram ressignificados por meio das redes. O que era distante, agora, está ao alcance de um clique. O que demorava dias, semanas, meses para chegar, agora, é recebido instantaneamente.
A internet, com seus incontáveis benefícios, porém, é apenas uma ferramenta. E, assim como qualquer outra, pode ser usada para fazer o bem ou para fazer o mal. Se, desde o seu surgimento, ela já foi espaço propício para a disseminação da maldade, foi, mais recentemente, com o surgimento e posterior disseminação do uso das chamadas redes sociais, que a propagação do discurso de ódio, da intolerância, do extremismo chegou ao ápice.
Revolução recente
Para o filósofo Roberto Romano, ainda é cedo para se fazer uma análise definitiva sobre o papel da internet na formação de uma sociedade que não respeita o diferente. Segundo ele, toda grande inovação cultural leva muito tempo para ser assimilada e, antes de ser totalmente, já surgiu outra inovação mais avançada do que ela. "A humanidade precisa de certo tempo para digerir o que de mais profundo a revolução tecnológica produz. No caso da internet, das redes sociais, estamos apenas no começo. Não há, ainda, uma maturação, sequer tecnológica. Por enquanto, é um instrumento de ataque de todos contra todos", afirma.
Romano salienta o fato de que boa parte das pessoas que fazem uso de redes sociais, como Facebook e Twitter, não possui base da cultura anterior à revolução tecnológica. "Não tem a base da História, da Economia, da Matemática, por exemplo. A grande maioria não conseguiu dominar completamente essa cultura anterior. A humanidade ainda não conseguiu isso com o Renascimento (período compreendido entre os séculos XV e XVI)", aponta.
Falso anonimato
A novidade que as redes sociais representam também é ressaltada como um fator importante pelo psicanalista João Angelo Fantini. Ele alerta que, mesmo não existindo mais, o sentimento imaginário de anonimato que as redes proporcionam permanece. Assim, é possível pensar que as redes funcionam na mesma lógica da experiência dos indivíduos na massa (como em um estádio de futebol, por exemplo). "Ela oferece um falso anonimato e a possibilidade de imersão e de perda de limites, isto é, de o sujeito agir em público como se estivesse individualmente fora do alcance dos outros, revelando os segredos sujos que evitaria mostrar em sociedade", afirma.
Assim, se vendo em um espaço onde tudo é permitido, no qual não há limites nem regras, o indivíduo se comporta sem saber muito bem para onde ir, dançando conforme a música. Fantini salienta que o espetáculo nas redes sociais pode ser "um teatro onde cada um tenta defender - mais que suas ideias políticas - a sua própria crença". No campo da política, isso pode significar uma forma de defesa de crença pessoal que, não raramente, resulta em uma posição que ultrapassa os fatos, vindo a ser entendida mais como uma garantia à integridade do próprio indivíduo, uma forma de defesa narcísica. "Essa situação não atinge somente 'ignorantes', 'fascistas', 'comunistas' ou tantos outros significantes utilizados nos posts agressivos encontrados nas mídias sociais. Atinge qualquer um", afirma o pesquisador, lembrando a lição freudiana de que a informação e a educação não necessariamente afetam o modo como os indivíduos percebem o mundo. "Nosso inconsciente afeta nossa percepção de mundo, e nossos preconceitos podem nos levar a conclusões independentes da veracidade ou não das mensagens."
Bolhas de opinião
Caminhando por um terreno que não conhece bem, o indivíduo acaba por ser um ator pouco consciente do papel que interpreta, sendo, em boa parte das vezes, levado pela força do movimento de arrasto das redes. As redes sociais também provocam a formação de "bolhas", nas quais o indivíduo se isola de quem pensa diferentemente de si. O fenômeno é fator importante na formação da narrativa de pensamento único.
O papel que as "bolhas" possuem também é salientado pelo doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul Marcos Rolim. Por se aproximar e se ver cercado de pessoas que pensam como ele, o indivíduo passa seus dias dialogando com seus iguais. "Isso produz engrandecimento sistêmico. Perco a diferença, que só me pode ser oferecida pelo estranho, por quem vê o mundo diferente. E, quando há um contato, uma fricção entre as bolhas, isso só produz descarga elétrica", diz.
Debate cego
Por fim, a perda de espaço por parte da imprensa tradicional na formação de narrativas, que deveria atuar como mediadora e contraponto ao quadro de desinformação consciente - ou pós-verdade -, incrementa o cenário de radicalização dos discursos. "Com frequência, o resultado disso é um esgarçamento dos laços sociais em que, não raro, não apenas inimigos ou desconhecidos, mas mesmo velhos amigos param de trocar ideias e se entrincheiram junto a outros que - aparentemente - compartilham seus pontos de vista, passando a fazer fila com aqueles que, às vezes, têm apenas uma opinião em comum, mas outras não necessariamente compartilhadas", observa Fantini.
Dessa forma, o debate se desvirtua em seu sentido - de troca de ideias e pontos de vista -, passando a ser um ringue de imposição de visões. "Há uma diferença essencial entre um debate em busca de uma verdade e um confronto dirigido à imposição de convicções. O primeiro requer o reconhecimento de um limite de todo e qualquer saber e a existência de um vasto território de ignorância. O segundo somente requer domínio das artimanhas de uma grande habilidade retórica", aponta o psicanalista e doutor em Educação e Desenvolvimento Humano Alfredo Jerusalinsky.
O estudioso ressalta que toda a ilusão de ser detentor de uma verdade total é fértil para o surgimento de posições extremistas, pois se tratam de discursos que suprimem a dúvida e a interrogação. "A liberdade consiste no exercício das diferenças. As diferenças não cabem onde somente há certezas", diz.
O individual e o coletivo
A polarização das discussões no campo político é influenciada pela relação entre fatores de cunho individual e de cunho coletivo. Jerusalinsky afirma que, quando uma pessoa ataca outra para fazer a defesa de um ponto de vista, o que ela esconde, na verdade, é o desejo de defender a si própria. Conforme o psicanalista, em termos de discurso e linguagem, o sujeito é o ponto de intersecção entre o individual e o coletivo. "Ele tem uma série de significações que o singularizam e o permitem saber quem é. Com essa bagagem de significações, ele vai em direção ao coletivo", explica.
De acordo com o pesquisador, que é mestre em Psicologia Clínica, quando o cidadão não se vê representado no campo do discurso - que compreende, entre outros, as políticas de Estado e de governo, os sistemas de poder, as leis escritas, que substituem as leis simbólicas -, começa a pedir que alguém resolva esse dilema. Assim, em desespero, o sujeito vai em busca de algo que represente alguma solução. Nessa busca, ele se torna passional, pois é a vida dele que está em jogo. "Ele não pode discutir isso com calma. Essa é a razão de a discussão não ser muito sensata."
Na análise do psicanalista, a radicalização das posições passa umbilicalmente pela ausência de representatividade do indivíduo na teia social, pois, quando o discurso social se torna totalitário, como atualmente, ele reduz o leque de alternativas de representação para o sujeito. Sem se ver representado por quem comanda o discurso social, a busca de novos traços identificatórios se amplifica. É aí que a internet ganha espaço. "A rede pode servir para criar grupos. Esses pequenos núcleos permitem viver na ilusão de que, pelo menos, não se está só. Não há para onde ir, mas, pelo menos, não se está só", conclui Jerusalinsky.
Linha que separa condutas opostas é frágil
Demonstrators protest along Paulista Avenue in Sao Paulo, Brazil on December 4, 2016 against corruption and in support of the Lava Jato anti-corruption operation that investigates the bribes scandal of Petrobras. / AFP PHOTO / Miguel SCHINCARIOL MANIFESTAÇÕES E PROTESTOS, SÃO PAULO, LAVA JATO, CORRUPÇÃO, Caption
MIGUEL SCHINCARIOL/AFP/JCConforme o Dicionário Houaiss, respeito e tolerância são conceitos diferentes. Respeito é definido como "consideração, deferência, reverência", além de "estima ou consideração por alguém ou algo". Já a definição de tolerância é "indulgência, condescendência. Tendência a admitir, nos outros, maneiras de pensar, de agir e de sentir diferentes ou mesmo diametralmente opostas às adotadas por si mesmo".
Assim, a linha que separa a tolerância da intolerância é tênue. A história já deu provas disso. Uma crise econômica, com consequente aumento do desemprego, faz com que imigrantes passem a não ser mais vistos com olhos condescendentes. A ascensão de classes menos favorecidas a postos antes impossíveis de serem ocupados gera um inconformismo por parte daqueles que, até então, detinham o monopólio dessas conquistas. No Brasil, esse fenômeno se deu recentemente. "O preconceito de classe ganhou mais espaço depois da chamada década inclusiva. Segmentos que antes não circulavam em determinados espaços, passaram a circular. A chegada desses 'outsiders' causa um incômodo nos grupos que estavam estabelecidos", corrobora o pós-doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Dilton Cândido Santos Maynard.
O embate com o semelhante, com a reserva de nossas emoções mais virulentas àqueles que mais nos lembram e nos ameaçam por essa semelhança, foi chamado por Sigmund Freud (1856-1939), "pai" da psicanálise, de "narcisismo das pequenas diferenças". O psicanalista Alfredo Jerusalinsky afirma que esses sentimentos negativos são provocados por um efeito de espelho: o sujeito vê no outro o que ele desejaria ser (inveja), percebe o que o outro tem como uma privação de si próprio (ódio), e sente sua frustração como causada pelo outro (agressão). "Quase todo intolerante vive em constante pavor de não ser quem ele acredita ser. Cabe evocar uma magnífica obra de Saramago, O Homem Duplicado, em que o maior horror é descobrir que o outro é, em verdade, eu mesmo", salienta Jerusalinsky.
A incapacidade do diálogo e a intolerância religiosa
'Quanto mais a religião tenta se sistematizar, maior é a tendência de se tornar intolerante', afirma o teólogo Ricardo Gondim
MARCELO BERGAMINI/DIVULGAÇÃO/JCAinda que posições e atos radicais ocorram e sejam vistos em todos os campos sociais, praticamente sem exceções, atualmente, quando se ouve a palavra "extremismo", a primeira imagem que vem à cabeça é a dos terroristas islâmicos levando o horror ao mundo ocidental. A contradição entre uma religião e ações violentas em nome dela é evidente. A relação entre ambas, porém, é histórica, e é impossível falar de uma sem mencionar a outra. Perseguir quem professa uma fé diferente da sua faz parte do processo de desenvolvimento e consolidação das crenças religiosas.
Doutor em Filosofia pela L'École des Hautes Études en Sciences Sociales, da França, e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Roberto Romano observa, porém, que o extremismo ganha espaço em um momento posterior ao seu surgimento das religiões. O filósofo aponta que, uma vez atingido esse momento do estabelecimento de dogmas, há o perigo do extremismo, uma vez que o fato religioso se tornou um fato de poder. "Aí, a intolerância aumenta, pois se trata de garantir a obediência, e não mais a revelação divina."
A forma como a fé é professada é ponto primordial para se entender as tendências intolerantes de cada religião. Uma das considerações diz respeito à linha-base das crenças, ou seja, as figuras divinas que devem ser louvadas. Dentro desta análise, é comum a constatação de que religiões monoteístas - que professam um deus único - seriam mais passíveis de se tornarem ou criarem ambientes propícios a atitudes radicais.
O teólogo Ricardo Gondim aponta, entretanto, que a crítica não se sustenta, pois, dentro do próprio monoteísmo, existem diversas ideias e concepções a respeito de Deus. "Quanto mais a religião tenta se sistematizar, se estruturar dogmaticamente, maior é a tendência de se tornar intolerante", pondera o pastor e presidente da Igreja Betesda.
Motivos do extremismo
Paralelamente a isso, surge a curiosidade a respeito dos motivos que levam as pessoas a se tornarem adeptas de uma religião. As normas que fundamentam as crenças são pontos preponderantes na decisão de um indivíduo em seguir aquela fé? Para o professor de Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo Jung Mo Sung, os praticantes de qualquer religião consideram os dogmas como fator secundário. "Se você perguntar quais são as doutrinas fundamentais às pessoas que vão às igrejas, elas não sabem. A religião é muito mais do que doutrina. É pertencer a uma comunidade que compartilha de uma certa visão de mundo. Se você perguntar para católicos e protestantes o que é a Santíssima Trindade, ninguém sabe", enfatiza.
O teólogo explica que todas as religiões - assim como qualquer grupamento - têm delimitações do que é certo e do que é errado, que acabam por condicionar a formação de grupos. "Diferenciação é diferente de intolerância", salienta.
Globalmente identificado com o islamismo, o extremismo religioso parte da interpretação de que aqueles que não seguem as palavras do Alcorão - escritura sagrada - são infiéis e que, por isso, não merecem viver; e que a sociedade muçulmana foi corrompida pelos valores morais do Ocidente, sendo necessário um retorno ao Islã original. A religião criada pelo profeta Maomé no século VI, porém, não é, em sua totalidade, a motivação para o terror, sendo usada por alguns grupos extremistas como uma "cortina de fumaça" para esconder suas reais razões, político-econômicas.
Gondim não crê que documentos e textos sagrados provoquem manifestações extremas por parte de fiéis. Para ele, o conservadorismo, dentro de determinada crença, faz com que surja a ideia de que a herança legada pelos primeiros seguidores daquela religião possa ser perdida. "Vemos isso com exuberância no mundo muçulmano, mas não é privilégio deles. Tem o fundamentalismo judaico, que legitima o atropelo que estão fazendo com os palestinos, porque, no passado, essa terra foi dada por Abraão", exemplifica.
Jung Mo Sung, por sua vez, identifica, junto com interpretações equivocadas dos escritos fundadores, pontos de intolerância nos textos religiosos sagrados. No caso da Bíblia cristã, o teólogo lembra que o critério para a aceitação do diferente não passa pela religião do outro, mas sim se o que ela professa vai contra o que é entendido como aliança. "Se essa religião defende o direito do pobre, do órfão, da viúva e do estrangeiro, que é a ladainha dos profetas, ótimo. A intolerância deles não é com religião. É com o princípio ético que está por trás do discurso religioso."
Um caso recente ocorrido no Brasil exemplifica bem a posição do estudioso. Quando das últimas eleições presidenciais, em 2014, conservadores católicos e evangélicos se uniram contra candidatos defensores do casamento entre pessoas do mesmo sexo e do aborto. As diferenças religiosas foram suplantadas pelos interesses comuns.
Para Gondim, no caso da intolerância islâmica, é necessário salientar que ela se relaciona mais fortemente com os regimes ditatoriais que dominam o Oriente Médio do que com a própria religião em si. "A pergunta que temos que fazer é como se desenvolveu essa intolerância do Islã em relação ao mundo ocidental. A resposta está no colonialismo, principalmente o inglês, que devastou com a configuração do Oriente Médio meramente por fins econômicos", argumenta.
A religião como 'cortina de fumaça'
O ingrediente político-econômico, aliás, está intrinsecamente ligado aos casos de radicalização, aparentemente, de motivação religiosa. O professor de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Francisco Marshall enxerga, no cenário global, um conflito pouco insuflado por motivações religiosas, e sim alimentado pela indústria armamentícia e pela disputa por fontes e canais de transmissão da produção petrolífera.
"O que parece, para o mundo, uma guerra religiosa é um cenário fomentado por indústrias que vivem dessas guerras. Quando olhamos para o Estado Islâmico, temos de ter o cuidado para não enxergar, ali a cultura islâmica, que tem, em todo o mundo, soluções de convívio saudáveis", aponta.
O extremismo religioso e as ideologias são as duas grandes vertentes que, caminhando lado a lado, favorecem posturas extremas. Para o doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul Marcos Rolim, é improvável que uma pessoa seja capaz de praticar o mal absoluto se não compartilhar de uma ideologia e de uma religião. "É preciso que alguma ideia, algum dogma ampare essa decisão que permite que alguém exploda uma bomba e mate centenas de inocentes", reflete.
Os grupos terroristas organizados - Estado Islâmico, Al Qaeda, Boko Haram, entre outros - proporcionam, também, uma outra forma de relação entre seus integrantes. Esses movimentos oferecem, aparentemente, uma nova forma de laço social. O psicanalista João Ângelo Fantini indica, também, estudos que apontam o tédio e a falta de perspectivas futuras como motivação para um engajamento em atividades aparentemente mais significativas. "Estudos mostram que a adoção de uma ideologia política mais extrema seria uma maneira que as pessoas têm de voltar a injetar significado em uma situação chata, ou seja, o tédio parece ser também uma influência, muito embora não se saiba qual a importância do seu papel", observa.
Preconceito, sede de poder e intolerância religiosa no Brasil
Religiões de matriz africana são alvo recorrente de ataques
MARCELO CAMARGO/ABR/JCCaminhando em direção contrária às suas "irmãs" cristãs e islâmicas, nas religiões de matriz africana, o desenvolvimento de uma crença radical nunca se fez presente. São raros os casos de intolerância partindo de pessoas que seguem as religiões afro. Por outro lado, elas são vítimas recorrentes de preconceito e perseguição no Brasil.
O filósofo Roberto Romano aponta o escravismo e as desigualdades sociais como fatores de preconceito. "Há conexões muito fortes entre a intolerância e a composição socioeconômica dos seus seguidores", diz. Ele salienta que, apesar disso, não se pode dizer que é uma questão apenas de ordem econômico-social. "Há um elemento de fanatismo forte", enfatiza. O doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo Jung Mo Sung acredita, no entanto, que o preconceito contra religiões afro-brasileiras já foi maior, uma vez que já foram até proibidas no País.
No atual momento, o preconceito e a intolerância estão mais presentes nas chamadas igrejas neopentecostais. Tais instituições - que têm na Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd) a maior expoente - encabeçam um movimento político, religioso e socioeconômico razoavelmente recente. "Há um discurso antimoderno, de combate ao Estado laico, à pesquisa científica, à saúde pública, às questões de gênero, que representa um retrocesso muito forte", pondera o professor de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Francisco Marshall.
Invertendo a lógica da pregação religiosa, que, primordialmente, clama por amor, convivência harmoniosa, justiça social e paz entre os povos, o movimento neopentecostal no Brasil - principalmente por parte de sua maior representante - é focado na desconstrução do outro. "São igrejas baseadas em uma proposta negativa. O discurso religioso de certos pastores, que não sabem o que propor de positivo, vive da pregação agressiva contra os outros", afirma Sung.
A sedução do poder
A intolerância religiosa anda de mãos dadas com a assunção das crenças a posições de comando. Religiões ou doutrinas que nunca detiveram poder, de modo geral, não são origem e multiplicadores de posições radicais, vide as religiões afro e o budismo. Por outro lado, a Igreja Católica foi o próprio poder por séculos, e as evangélicas atuais estão, a cada eleição, ganhando espaço nos Legislativos e Executivos municipais, estaduais e federal.
A chamada bancada evangélica no Parlamento tem se fortalecido, com a religião assumindo posições de poder e fazendo uso de um discurso excludente para angariar mais fiéis/eleitores. Sung destaca que algumas autoridades de determinadas igrejas se beneficiam com o aumento de violência, pois, fomentando a agressividade no campo religioso, seus poderes são fortalecidos. "Se você ganha poder político em nome da intolerância, a intolerância passa a ser uma coisa vital. Como se elegeu a bancada evangélica? Dizendo que evangélico só pode votar em evangélico, porque o resto é do diabo. Se você abandona esse discurso, perde poder político", afirma.
Desta forma, incluso em um meio no qual questionar as diretrizes da religião e das lideranças religiosas é difícil - na medida em que isso significaria, de algum modo, questionar a própria fé -, o fiel se encontra entre a cruz e a espada quando vê que aquilo em que acredita já não mais é o que sua religião defende.
Para o teólogo Ricardo Gondim, o entendimento de que nem tudo o que as religiões defendem deve ser seguido cegamente passa pela percepção de que elas são constituições humanas, e não leis divinas que desceram do céu. Assim, por serem construtos sociais, convivem com lutas internas por poder, vaidades e tensões. O teólogo enfatiza que a intolerância religiosa consiste na inabilidade em dialogar com quem pensa diferentemente.
"Não gosto das expressões 'intolerância' e 'tolerância'. Gosto da expressão 'coexistência', saber coexistir com o diferente e dialogar. E diálogo pressupõe que eu não tenho toda a verdade, eu não sou dono da verdade; e quando a gente percebe que as nossas construções religiosas são humanas, e não vindas diretamente da boca de Deus, eu me abro para o diálogo. Sei que não tenho a única resposta e que ela está democraticamente espalhada entre todos", conclui.
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