Michele Rolim
Um panorama do Brasil dos anos 1980 pode ser observado no cotidiano da época presente no livro Ifigênia em Sodoma e outros textos curtos (págs. 96, Giostri Editora, R$ 40,00). O pesquisador Luís Francisco Wasilewski reuniu 10 esquetes de um dos principais expoentes do gênero besteirol, o dramaturgo Mauro Rasi (1949-2003).
Nunca editados, os textos foram material de estudo de Wasilewski em sua tese de doutorado sobre o teatro de Rasi, defendida em abril de 2015, na USP, sob orientação de João Roberto Faria. O lançamento na Capital ocorre hoje, das 19h às 21h, na Palavraria (Vasco da Gama, 165), com sessão de autógrafos do livro e um debate sobre a obra do organizador com o dramaturgo Júlio Conte.
JC Panorama: Quais são os principais elementos que caracterizam o teatro besteirol?
Luís Francisco Wasilewski: O teatro besteirol surge na década de 1980, com intensa força, no Rio de Janeiro e São Paulo. Suas características mais notórias foram a construção dramatúrgica feita em esquete (o gênero traz de volta ao teatro brasileiro a esquete, herança que ele assimilou do Teatro de Revista) e um humor que dialogava com a geração oitentista. Abundavam as referências literárias, cinematográficas e musicais. Os autores também utilizavam a paródia como elemento cômico. Uma das peças emblemáticas do gênero é Quem tem medo de Itália Fausta?, de Miguel Magno e Ricardo de Almeida, cujo título parodiava Quem tem medo de Virginia Woolf, de Edward Albee. Havia também o uso constante do travestimento, no qual os atores interpretavam personagens femininos. Houve a formação de duplas de atores, como Miguel Falabella e Guilherme Karam, Pedro Cardoso e Felipe Pinheiro, além dos já citados Magno e Almeida. Eram duplas que também atuavam como escritores.
Panorama: Por que o besteirol foi (ou ainda é) mal-compreendido por parte da crítica?
Wasilewski: Há uma parte da crítica teatral que detesta comédia, qualquer que seja ela. Barbara Heliodora sempre foi uma exceção. Para ela, o besteirol representava um renascimento da comédia de costumes. Quando comecei a pesquisa para este livro, me deparei com a crítica de Sábato Magaldi sobre Pedra, a tragédia, de Miguel Falabella, Mauro Rasi e Vicente Pereira. Em seu texto, Magaldi diz que riu muito quando assistiu o espetáculo e que considerava os três autores muito inteligentes. Opinião diversa da qual ele expressou na reedição de seu Panorama do teatro brasileiro, em 1997, no qual disse que o gênero era algo 'próximo da debilidade mental'. Havia também a parcela da crítica que detestava o besteirol porque achava que, na década de 1980, o assunto que devia permanecer como foco da cena teatral era a triste herança deixada pela ditadura militar no Brasil. O besteirol surge justamente no período em que começava a abertura política no País e não demorou para que os críticos e dramaturgos daquela esquerda combativa rotulasse o gênero como "alienado".
Panorama: Você acredita que nos últimos anos o teatro besteirol passou a ter sua importância reconhecida para o teatro brasileiro?
Wasilewski: Não. Trata-se de um gênero que não é estudado no âmbito acadêmico. Até o momento, os únicos estudos universitários sobre o besteirol são meus mestrado e doutorado, defendidos na USP. Há pouca informação sobre o gênero e sobre a importância de autores como Mauro Rasi e Vicente Pereira que, infelizmente, estão esquecidos na memória teatral brasileira.
Panorama: No Estado, como você vê o reconhecimento do gênero?
Wasilewski: No Rio Grande do Sul aconteceram alguns espetáculos do gênero. Cito A verdadeira história do Édipo Rei, A mãe da miss e o pai do punk, Passagem para Java e Carrie, a histérica. Tangos e Tragédias, quando fez sua primeira temporada no Rio de Janeiro, foi classificado pela crítica carioca como sendo um besteirol. Como artistas representantes do gênero na cena local, lembro de Ilana Kaplan, Renato Del Campão, Zé Adão Barbosa, Luís Artur Nunes, Patsy Cecato, Paulo Vicente, Roberto Camargo e Lauro Ramalho.
Panorama: No que os textos de Mauro Rasi se diferem de outros autores de besteirol, como Vicente Pereira, Luiz Carlos Góes e Miguel Falabella?
Wasilewski: Considero Mauro Rasi o mais ferino de todos os autores. Ele era um escritor deliciosamente mordaz. Também é o mais sofisticado deles. O esquete Ifigênia em Sodoma, que dá nome ao livro, tem uma plêiade de citações fílmicas, literárias e teatrais. Foi o texto no qual tive mais trabalho na elaboração das notas de rodapé. O que comprova algo que abordei tanto no meu mestrado quanto no doutorado, a de que o espectador dos espetáculos do besteirol precisava de uma boa dose de erudição para rir de certas piadas.
Panorama: Como os textos de Rasi escritos na década de 1980 conversam com a atualidade? Por serem textos de humor eles não ficam datados?
Wasilewski: Sim, há alguns textos que ficaram datados. Por isso, tive a preocupação de elaborar as notas de rodapé para que o leitor de hoje entenda a citação que ele faz nos esquetes a determinada personalidade, que foi famosa naquela época e hoje é desconhecida. Porém, há outros que permanecem atuais, como As telefonistas, no qual o autor faz uma sátira ao sistema burocrático das atendentes telefônicas, um problema que, infelizmente, persiste.