Um dos principais nomes do movimento municipalista no Brasil, o presidente da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), Paulo Ziulkoski, liderou no início de julho a Marcha a Brasília pela Reconstrução dos Municípios do Rio Grande do Sul para apresentar demandas ao Congresso e ao governo federal. Ziulkoski foi eleito neste ano como chefe da entidade, que já havia comandado entre 1998 e 2018.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, o dirigente aborda reinvindicações municipalistas levadas às esferas federais, especialmente após o desastre climático que devastou o Rio Grande do Sul. O presidente da CNM defende a desvinculação de recursos para a reconstrução de municípios atingidos e pautas antigas da confederação, como a defesa do Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) e a autonomia dos municípios ante os governos federais e estaduais.
• LEIA TAMBÉM: Congresso de Municípios inicia com destaque para governança e prevenção de eventos climáticos
Jornal do Comércio - No contexto de enchentes que o RS enfrentou, o que foi debatido na Marcha a Brasília?
Paulo Ziulkoski - Depois de toda essa avalanche, quando se começa a ver as consequências, tem que focar no enfrentamento, na busca da salvação de pessoas, de vidas. Essa parte já está passando, essa fase mais aguda. Depois vem, em seguida, um segundo momento: como é que as pessoas fazem o retorno? Nesse segundo momento, tem o recolhimento de lixo, essa polêmica toda, que tem que preencher documentos e tal. Neste meio, o que é que acontece? Vem o governo federal e visita o Estado várias vezes, e o governador do Estado da mesma forma. Porque tudo o que ocorreu, ocorreu nos municípios. Não foi no Piratini e nem no Planalto. Foi lá no município, onde as coisas ocorrem, onde o cidadão mora. Então, nessas visitas e nesses anúncios, já depois dessa primeira etapa, se via muitos anúncios, mas todos eles direcionados basicamente no privado - também tem um recorte muito social -, mas o ente município, a prefeitura, os anúncios de bilhões de reais - que não vou discutir o mérito, alguns são importantes -, ao nosso ver, exceto alguns, são financiamentos. Então não é dinheiro que o governo investiu para a recuperação, é financiamento com juro. Portanto, o próprio banco não está perdendo, está ganhando em cima disso aí.
JC - E como observa que esses financiamentos impactam ou podem vir a impactar as prefeituras?
Ziulkoski - Isso soa, para o cidadão que está lá e que recebe, muito bom. Num primeiro momento, ele diz: "eu fui socorrido pelo governo". Mas, depois, quando isso para, aí não é socorrido, porque o governo federal não existe mais, existe quem está ali, a prefeitura. Tem o auxílio de R$ 5 mil (do governo federal), mas onde está escrito que a prefeitura que tem que cadastrar? Se a União que está dando, por que que não vai ela cadastrar? Então, ela empurra para a prefeitura, e o prefeito aceita isso. Em resumo, tudo que é anúncio que houve - em que é o foco no município -, o prometido de receita "livre", que o prefeito possa pegar dizer: 'vou recolher o lixo, arrumar a estradinha rural, o bueiro, a ponte que caiu'. Isso, de R$ 1,4 bilhão prometido, só pagaram, tudo somado, R$ 670 milhões. Isso é o que está no orçamento, o que está empenhado. O prometido são bilhões, o empenhado é uma parte de R$ 1 bilhão e pouco, e efetivamente transferido são R$ 670 milhões. Para um desastre dessa natureza, tenho afirmado que isso é zero. Não existem recursos da União para a prefeitura.
JC - E que iniciativas a CNM vem realizando para auxiliar os municípios?
Ziulkoski - Há um mês eu tomei uma iniciativa, marquei uma reunião da entidade e convoquei um evento em Lajeado dos prefeitos para discutir essa relação, e nós tivemos mais de 400 pessoas e mais de 250 prefeitos. Dali se tirou uma série de indicativos, e um deles foi fazer uma mobilização em Brasília. Nos preparamos, com um recorte do Rio Grande do Sul, de todo esse levantamento e de propostas efetivas e concretas. Porque a gente sabe que tem muito discurso parlamentar, muito discurso de pessoas que vão fazendo diagnósticos, mas sem apresentar coisas concretas. Com base nisso, a confederação fez estudo em várias áreas; por exemplo: onde é que tem dinheiro? Na assistência social? Na saúde? Na educação? Inclusive, já é dinheiro que está depositado na conta da prefeitura, só que está depositado há 3, 4, 5 anos, mas que aquele objeto daquela transferência é um objeto chamado vinculado. Ou seja, tem que ser (investido) naquilo, e às vezes aquilo nem existe mais, ou tá parado. Então não é nem pedir dinheiro para o governo, mas transformar o vinculado em livre. Porque o prefeito não vai precisar para aquilo lá (que a verba foi originalmente destinada) naquele momento, ele precisa para o lixo, ele precisa para estrada, para o colégio que foi destruído.
JC - Quais as respostas do governo federal e do Congresso durante a marcha?
Ziulkoski - A maior de todas foi a proposta, que a confederação fez há 5 meses e está no Senado, que trata da dívida do Regime Geral, que atinge R$ 2,5 bilhões aqui no Rio Grande do Sul, os precatórios - que está todo mundo apavorado -, que é a questão do reparcelamento da dívida e a questão de que a reforma que a União fez da Previdência em 2019 não passou para os municípios. Então nós também estamos pedindo que a União passe para os municípios, porque isso desonera esses fundos de 50%, esse passivo também permanente. Como isso é um processo legislativo, tem demora. A crise no Rio Grande do Sul está ajudando a precipitar, mas essa emenda mesmo não tem nada que ver com a crise do RS, é um trabalho da marcha que eu fiz em maio do ano passado, é outra história. E o principal é isso, o prefeito de agora em diante é o "pau de enchente" lá na ponta, porque tudo recai sobre ele.
JC - Uma das pautas defendidas pela CNM é o RPPS. Acredita que é uma solução para as dívidas previdenciárias dos municípios?
Ziulkoski - A parte mais complexa, a mais grave de todas, é na área da previdência, do Regime Geral de Previdência Social (RGPS). Veja bem, no INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), 4,2 mil municípios no Brasil devem R$ 250 bilhões. Os do Rio Grande do Sul devem R$ 2,5 bilhões. Agora, por outro lado, os precatórios são quase R$ 100 bilhões, e são 220 ou 230 municípios do Rio Grande do Sul que têm precatórios para pagar. Então nós estamos flexibilizando, através de uma proposta, para parcelar a dívida do Regime Geral e ver a questão dos precatórios. Tudo já está andando, inclusive entrou em votação essa semana, que versa R$ 400 bilhões, isso não é coisinha. No Brasil, são 2,1 municípios que têm o chamado RPPS, e os outros 3,5 mil estão no Regime Geral. E qual é a dívida dos fundos próprios? É uma dívida interna da prefeitura. A proposta da CNM é que essa dívida seja rolada também por 3 anos para os municípios, para a prefeitura pagar aquele passivo. Ela vai pagar, mas em um prazo para fazer enfrentamento (à crise no RS). Porque isso é que está liquidando com as prefeituras do Rio Grande do Sul. E da onde que o prefeito que tem esse passivo no município tira dinheiro para pagar aquilo? Ele tira da chamada receita disponível, e não da vinculada. Então a prefeitura, a gestão pública, tem uma receita que é livre, que eu posso botar no orçamento e executar, e tem outra que é vinculada, para saúde, educação, Bolsa Família. Então o que estamos propondo agora? É que o ministro da Previdência (Carlos Lupi) aceite fazer esse diferimento. Só que isso não precisa ser por lei federal, nós estamos mostrando tecnicamente que pode ser uma portaria. Isso, se avançar, vai dar, em três anos, R$ 7,5 bilhões para as prefeituras do RS.
JC - Na marcha, a CNM realizou encontros com os ministros da Saúde e do Desenvolvimento Social. O que foi pautado?
Ziulkoski - Para a Nísia Trindade (ministra da Saúde), a CNM mostrou alguns pontos, como quantos problemas de saúde tem o Rio Grande do Sul, quanto é que paga por cada um, quantos que não estão sendo pagos e que estão habilitados. Então, pedimos para liberar esse valor. Isso a gente levou com dados oficiais da entidade. Depois, com a Assistência Social, com o ministro Wellington Dias, a gente entregou também (os dados). Por exemplo, para receber tal coisa, precisa ter um grupo de 50 pessoas. Mas como é que vai ter 50 se, às vezes, foi num município menor, mas que foi atingido? Então o pedido é flexibilizar, baixar para 5, 10 pessoas, para poderem receber. Senão, como é que agrupa aquilo ali?
JC - Havia reunião com o ministro de Portos e Aeroportos, Silvio Costa, que acabou não ocorrendo. O que pretendiam pautar?
Ziulkoski - Era para esclarecer melhor qual política estão pensando em adotar, principalmente em aeroportos regionais, porque muitos eles não comandam, são privatizados, e outros são estatais. Então era para ver o que eles poderiam fazer, o que poderiam anunciar, e o que os prefeitos poderiam fazer. Por exemplo, no município Torres, pode ser ampliado o aeroporto, mas não tem dinheiro do Estado, então como é que poderia se buscar recurso. Enfim, não é para cobrar, é para ter uma ideia do que está acontecendo. Mas a partir do ministro Silvio Costa mesmo, e não do Paulo Pimenta (ministro da Reconstrução do RS).
JC - E quanto ao encontro com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP), quais foram as demandas?
Ziulkoski - Junto ao Congresso, fizemos uma emenda, porque aqui foi dado, por medida provisória, o Fundo de Participação dos Municípios (FPM) apenas para quem estava em calamidade, que eram 46 municípios no início, e pagaram aqueles ali. Depois, como aumentou para 95 em calamidade, fizeram outra medida provisória para pagar os restantes. Então, fizemos uma outra emenda para estender para todos que estão em emergência. Os outros 300 e pouco, que estão em emergência, estão agora incorporados naquela discussão que deverá ocorrer em seguida por medida provisória, de 60 dias com prorrogação para mais 60. Por outro lado, criaram uma ideia de que o ICMS é uma grande demanda, e não é. Eu mostrei e mostro os números do que representa para os municípios o FPM e o que representa o ICMS, e quais as projeções que têm. Então como é de interesse do governo do Estado, houve unidade. Mas quando foi para discutir a dívida do Rio Grande do Sul, os municípios que têm não foram incluídos, só o Estado. Aí nós fizemos uma emenda em um outro projeto de medida provisória para fazer a compensação das perdas que venham a ocorrer ou que estão ocorrendo. Tudo isso a gente foi formatando.
JC - Em relação à desoneração permanente da folha, o que foi discutido?
Ziulkoski - Propusemos, em uma emenda, a reoneração se votassem a dívida dos precatórios e mais a reforma. Então nós estamos propondo que esse ano tenha 8 (reonerações), ano que vem 10, no outro 12 e no seguinte 14, parando nestes 14, que é o mesmo do Regime Próprio. A conversa do Lira é que eles vão votar separado do relatório do Jaques Wagner (líder do governo no Senado), num projeto extraordinário, e aí vão manter os 8, mas vão começar a reonerar, mas até 22. É uma possibilidade que tem lá. Não sei como é que vai ficar, porque um é da emenda constitucional e o outro tá lá. Então, estamos discutindo como é que vai ficar a questão da reoneração.
JC - A centralização e concentração de recursos na União é um problema no Brasil. Como a CNM atua para que isso diminua?
Ziulkoski - Todo problema de uma federação, e o Brasil é uma federação - primeiro país do mundo que colocou o município como ente federado com autonomia. Está escrito na Constituição que tem autonomia, só que autonomia no papel, pois, na prática, não tem. Então tem que ir construindo a duras penas para poder chegar ao chamado pacto federativo e ir o aprimorando. Nós somos protagonistas em preparar e fazer esse contraditório, porque não existe democracia sem conflito. O que não pode ter é confronto, conflito tem que ter, porque temos que discutir, uma pessoa entende algo de um jeito, outra de outro. Conflito de ideias, para poder chegar a um denominador e ver o que a sociedade quer avançar ou não. Então, o nó todo está assim em duas palavras: desconcentração e descentralização. O que é desconcentrar? Se cria um programa como o Bolsa Família, escreve meia dúzia de palavras, faz 3 artigos, cria um programa, define quanto de dinheiro o presidente da República dá e tal. Depois de criado, manda quem executar? E o governo federal tem na mão o controle, de tudo que tem que prestar conta. Tudo tem que levar lá de baixo para ele, mas é ele que comanda. Isso é concentração. Se arrecada muito no Brasil, dá na mão da União, e, ao invés de descentralizar, se desconcentra: se mantém o problema na mão, mas não dá autonomia para o cara lá na ponta. Agora descentralizar, como é em países da União Europeia, que têm democracia, se pode mandar um dinheiro X. Manda para a prefeitura, e ela vai cadastrar e ver quem precisa. A imagem que se cria é assim, "tudo é ladrão, tudo é sem vergonha, tem que fiscalizar", é isso que acontece no dia a dia. É uma luta vai demorar uns 500 anos para resolver.
Perfil
"Se avançar, isso vai dar, em três anos, R$ 7,5 bilhões às prefeituras do Rio Grande do Sul"
/Fotos: THAYNÁ WEISSBACH/JCPaulo Ziulkoski, 78 anos, é o atual presidente da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), entidade a qual comandou entre 1998 e 2018. Natural do município de Guaíba, graduou-se técnico agrícola pela Escola Técnica Agrícola de Viamão em 1967. Em 1973, formou-se em Direito pela Pucrs. Sua trajetória política iniciou-se em 1967, com a filiação ao MDB. É ex-prefeito de Mariana Pimentel e idealizador da Marcha a Brasília em Defesa dos Municípios. Expoente do movimento municipalista no Brasil, tem destaque na luta por mudanças na partilha dos royalties e por justiça na distribuição do Imposto Sobre Serviços (ISS) entre os municípios, a Previdência própria dos municípios, entre outros. Em maio de 2017, inaugurou a sede própria da CNM, em Brasília