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Publicada em 30 de Junho de 2024 às 18:27

Rubens Ricupero avalia legado e desafios do Plano Real nos 30 anos da moeda

Há 30 anos, Ricupero era ministro da Fazenda no governo Itamar Franco, quando foi lançado o Real

Há 30 anos, Ricupero era ministro da Fazenda no governo Itamar Franco, quando foi lançado o Real

UNESP/DIVULGAÇÃO/JC
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Nícolas Pasinato
Nícolas Pasinato
O ex-presidente do Brasil Itamar Franco (na época PRN) convocou, as vésperas do lançamento do Real, Rubens Ricupero para ser "a cara do plano". Diplomata de carreira, ele assumiria o lugar de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que se afastara para concorrer às eleições presidenciais de 1994. Em livro de memórias recém-lançado, Ricupero recorda que tentou recusar o convite para assumir a Fazenda por não ser da área econômica, mas acabou recebendo como resposta de Itamar a de que "ele seria a única opção".
O ex-presidente do Brasil Itamar Franco (na época PRN) convocou, as vésperas do lançamento do Real, Rubens Ricupero para ser "a cara do plano". Diplomata de carreira, ele assumiria o lugar de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que se afastara para concorrer às eleições presidenciais de 1994. Em livro de memórias recém-lançado, Ricupero recorda que tentou recusar o convite para assumir a Fazenda por não ser da área econômica, mas acabou recebendo como resposta de Itamar a de que "ele seria a única opção".
Em entrevista ao Jornal do Comércio, que faz parte de uma série de reportagens sobre os 30 anos do Plano Real, o ex-ministro da Fazenda lembra desse e de outros bastidores da época do lançamento do plano. Faz ainda uma reflexão sobre o legado do Real e sobre o que ficou faltando para a economia do País após a estabilização da moeda. Também comenta caso marcante de sua biografia, que ficou conhecido como o "escândalo da parabólica", quando transmissão televisiva vazada o captou dizendo "o que é bom a gente fatura e o que é ruim a gente esconde", o que fez pedir demissão após apenas cinco meses no posto.
Jornal do Comércio - Qual a reflexão que faz ao chegarmos neste marco de 30 anos do Real, sendo um dos responsáveis pela sua implementação na época?
Rubens Ricupero - Esta data (dos 30 anos) deveria ser não só um dia de celebração pelo que se conquistou, mas também uma forma de alerta, porque esse tipo de conquista nunca é algo definitivo. Sempre há o risco de se recair no passado, por erros cometidos, sobretudo, devido à falta de continuidade de políticas entre os diferentes governos. Por isso, acho que é uma excelente oportunidade para refletir, primeiramente, o que se conquistou. Quando se olha para a Argentina, é possível medir a diferença que fez o Real. É como se eles tivessem perdido 30 anos, porque eles estão no ponto em que estávamos em 1993 e 1994. Há tudo ainda a fazer por lá em matéria de inflação e na situação externa, já que eles nunca resolveram o problema da dívida externa, que nós resolvemos na mesma época (do Plano Real). Então para mim, embora tenha consciência clara de que minha participação foi limitada, chegar nesta data e ter podido contribuir me alegra muito.
JC - Quem foram os protagonistas do Plano Real na sua visão?
Ricupero - No plano político, a importância maior foi mesmo do presidente Itamar Franco, porque com todas as suas contradições que descrevo no meu livro, os seus instintos populistas etc foi quem criou as condições políticas. Se não fosse Itamar, Fernando Henrique ministro da Fazenda nunca teria existido. Eu tão pouco. Nem a equipe (econômica). E com todos os problemas que ele tinha, no final, sempre acabava por escutar o que tínhamos a dizer. Mas o grande mérito diria que foi do Fernando Henrique. Isso é indiscutível. Ele aceitou a convocação (para ministro da Fazenda) em uma hora difícil. Foi capaz de trazer uma equipe de primeira qualidade. Até hoje acho que é a melhor equipe econômica que o Brasil já teve. Logo em seguida vem o mérito deles (equipe econômica). De terem elaborado um plano muito original. A originalidade do Pérsio Arida e do André Lara Resende foi que eles foram os primeiros a perceberem que, com a indexação brasileira à época, nossa inflação tinha um caráter de inércia. Então, a grande invenção do Real foi a URV (Unidade Real de Valor).
JC - E qual foi o seu papel?
Ricupero - Diria que meu papel foi limitado: tive três funções. A primeira foi resistir às pressões para mudar o plano, e foram muitas. Sobretudo por parte de um grupo que era mais chegado ao presidente. Naquela época, a situação geral não era muito diferente da de hoje. O governo queria fazer bondades. Queria aumentar o salário-mínimo, dar aumento aos funcionários, aos professores, à Polícia Federal, aos militares e aos civis. Eram metas justas. Só que a economia do País não permitia naquele momento. O orçamento estava muito no limite. Então, meu papel era muito ingrato, era dizer não a tudo. Eu passei cinco meses negando tudo o que queriam fazer. A segunda é que eu tive que fazer todo o meio de campo com o Congresso. Por exemplo, o Fernando Henrique achava que não ia dar para aprovar a Medida Provisória (do Real) no Congresso. Eu levei adiante o esforço com Edmar Bacha (da equipe econômica) e nós aprovamos tudo. A terceira função que carregava, que foi a que apareceu mais, foi a comunicação com o público. A cada semana eu preparava um programa para ir a televisão sobre um tema, como explicar a URV, como ia ser a mudança, que data seria, como seria a taxa de conversão. A grande diferença entre o real e os planos anteriores é que não houve choque ou confisco de poupança. Não houve surpresa. Tudo foi anunciado antes.
JC - A comunicação foi essencial para o sucesso do real?
Ricupero - Na verdade, não há uma resposta única para a sua pergunta. Não existiu uma "bala de prata". As explicações são várias. Uma é aquela que nós já falamos, da ideia muito original e inteligente da URV, de que a nossa inflação era um animal diferente, não era como as outras inflações, tinha o problema da correção monetária. O segundo fator foi que a população também não aguentava mais. Já havíamos tido muitos outros planos. Então todo mundo queria que desse certo. O terceiro fator eu diria que foi a comunicação, porque o povo queria que desse certo, mas não sabia direito como. Era preciso dar informação e eu procurei, talvez pelo fato de não ser economista profissional não usar aquele linguajar que eles costumam usar, o 'economês'. Falava tudo em linguagem simples e as pessoas compreendiam.
JC - Isso teve reflexos no cenário político da época também?
Ricupero - Sim, quando sucedi Fernando Henrique ele começou a preparar a candidatura dele (à presidência) e as pesquisas de opinião mostrava (Luiz Inácio) Lula (da Silva, PT) com cerca de 42% (de intenções de voto) e o Fernando com aproximadamente 15%. Um mês após lançamos a moeda, em 1° de julho, o cenário inverteu. Fernando Henrique passou a ter 40%, e Lula foi para 20%. Um fato curioso é que 70% dos eleitores do Lula disseram que apoiavam o Real, apesar de que ele era contra. Dizia que era um estelionato. Ele e o PT cometeram um grande erro. Hoje, eles mais ou menos admitem, mas na época não admitiam. Eles ficaram contra a moeda e, por isso, perderam a eleição.
JC - O que faltou para que a economia decolasse após o Real?
Ricupero - A responsabilidade fiscal ficou por fazer. Em toda a parte. No RS mesmo há um problema crônico de orçamento. Então faltou completarmos esse trabalho da responsabilidade fiscal, mas a moeda é uma conquista. Hoje, ninguém se elege no Brasil se promover a inflação. O próprio governo atual procura, nessa parte, ser mais cuidadoso. A parte da inflação está feita, mas se não fizer a parte fiscal, vai acabar comprometendo o que já fizemos.
JC - O governo atual tem levantado o debate sobre um conflito entre responsabilidade fiscal e responsabilidade social…
Ricupero - Acho esse um falso dilema. Se, para atender as demandas sociais, você sacrificar o orçamento, em pouco tempo, terá uma crise econômica, um buraco enorme de gastos. Com isso, precisará imprimir dinheiro, o que criará inflação de novo. Com a inflação, quem mais sofre são os pobres, porque eles dependem de salário fixo. Quem depende de renda pode se defender da inflação, aplicando no overnight ou, até mesmo, mandado dinheiro para fora do Brasil. Agora, quem depende de salário no fim do mês não tem essa defesa. É, portanto, um erro a ideia de que se você aumentar as despesas sociais, vai resolver os problemas das pessoas, mesmo que não se tenha arrecadação.
JC - Em um capítulo de livro de memórias, o senhor utiliza a expressão "algodão entre cristais" para exemplificar o papel que tinha ao gerenciar a tensão entre Itamar e a equipe econômica. A sua carreira na diplomacia ajudou nessa função?
Ricupero - Você percebeu bem, porque, embora em teoria o fato de eu ser diplomata não me qualificasse para a área da Fazenda, o que acabou acontecendo foi que eu tive que exercer essas qualidades diplomáticas. O presidente, quando tinha esses impulsos que contei, eu lhe dizia para trazer alguém da equipe para explicar a ele melhor algum ponto, já que eles eram os economistas. Mas ele respondia negativamente. Dizia: "eu só falo com o senhor, o senhor é meu ministro". Por outro lado, a equipe também se sentia um pouco insegura, porque eles tinham ido para Brasília atendendo a convite do Fernando Henrique e ele saiu para concorrer à presidência. Quando entrei, eles até me conheciam do passado, mas não estavam tão acostumados comigo. Então havia um pouco de receio da parte deles de como eu iria me comportar. Às vezes, diziam que se houvesse alguma interferência política, iriam embora. Então eu tinha que amortecer, porque se fosse muito duro, muito inábil, teria ou brigado com o Itamar ou com a equipe. Eu tratava bem tanto um lado quanto o outro.
JC - Há um paradoxo, o senhor se destacou como o porta-voz do Real e acabou saindo por um ato falho na comunicação, no episódio da parabólica. Que lições tirou disso?
Ricupero - É verdade. A lição que tirei de tudo aquilo não é contra a comunicação, acho que foi essencial eu ter tido aquele empenho à época. Talvez o excesso. Porque naquele dia, o número de entrevistas foi muito elevado, eu já estava muito cansado. Acho que eu presumi que tinha mais forças do que tinha na realidade. Também tem o lado de que reconheço que tudo aquilo, de certa forma, havia subido à cabeça. No fim, eu estava envaidecido. Lembrando que o que acabou acontecendo não era propriamente uma entrevista. A entrevista não tinha começado. Foi uma conversa captada por uma câmara que eu não sabia que estava ligada, mas não importa. Naqueles 19 minutos acabei dizendo muita bobagem. E teve repercussão. Até hoje é um episódio do qual me envergonho e não gosto de falar, mas reconheço que foi responsabilidade minha. Pedi demissão ao Itamar. No começo, ele não queria, achava que não era tão importante, mas depois concordou. Agora, tirando o lado de vaidade pessoal, não é como esses episódios da Lava Jato, em que as pessoas foram surpreendidas confessando crimes que estavam tramando. Não era nada disso. Pela transcrição da conversa, tudo aconteceu porque o jornalista era cético. Achava que o plano já tinha fracassado e eu disse a ele que não, que tínhamos elementos para crer que a inflação iria cair muito no mês seguinte. Ele queria que eu desse essa notícia. Podia ter dado, mas acabei dizendo a ele que não poderia por uma combinação com a equipe de só dar a notícia quando o mês estivesse completo. Estava evitando divulgar uma notícia que era boa para mim, que se tivesse dado ia ser favorável. Se tivesse, digamos, realmente provado que eu "não tinha escrúpulos", paradoxalmente, teria me saído melhor.
JC - Como vê a condução da política monetária no País hoje e a tensão entre governo e Banco Central (BC)?
Ricupero - Sobre os juros, acho que pode se discutir se eles não poderiam ser reduzidos um pouco. Vejo que o nível da inflação atual - apesar de não estar inteiramente controlada - não justifica juros tão altos. O Brasil tem juros reais que estão entre os maiores do mundo. O problema é que, neste momento, qualquer redução terá um efeito psicológico negativo. Vai enviar a mensagem de que as coisas já estão resolvidas. Por isso, acho que o BC faz bem em resistir, porque a economia e a inflação não dependem apenas da taxa de juros. Dependem muito do orçamento, do que se chama de política fiscal. Infelizmente, a nossa situação não é boa. O déficit é muito grande e precisamos reduzir. Vejo o ministro da Fazenda (Fernando Haddad, PT) na direção correta. O problema não é ele, nem a equipe dele. O problema é que ele não tem o apoio, aparentemente, nem do presidente, nem do partido. Agora, o presidente do Banco Central poderia ser mais cuidadoso no seu comportamento pessoal. O BC está correto na sua política de juros. O problema é que o presidente do BC tem um comportamento pessoal que às vezes dá impressão de que ele é muito partidário em relação às suas ambições pessoais ou ao governo anterior, e isso prejudica a instituição, porque cria uma suspeita sobre ele.
JC - Na política externa, como vê a ascensão de extremismos em alguns países e de que forma isso pode afetar o Brasil?
Ricupero - A tendência que há no mundo hoje é muito preocupante. A ascensão da extrema direita em países como EUA, França e Alemanha não afetará somente a economia. A questão mais importante aqui é o clima. Vocês mesmo (do RS) ainda não saíram disso. O aquecimento global, a mudança climática vai provocar grandes desastres. Tenho medo que o que estamos vendo no RS seja apenas o começo. E o que me parece grave na extrema direita é que, no momento em que é mais necessário, eles afastam atenção disso para outras coisas como aborto e pautas de costumes. Isso faz com que percamos de vista a questão mais urgente. 
 

Perfil

José Cruz/Agência Brasil
Rubens Ricupero é natural de São Paulo (SP) e tem 87 anos. Diplomata de carreira, exerceu funções políticas: foi assessor internacional do presidente eleito Tancredo Neves e assessor especial do presidente José Sarney, de 1985 a 1987. Ricupero foi ministro do Meio Ambiente (1993-1994) e ministro da Fazenda, em 1994, no governo Itamar Franco. Ficou conhecido como "o sacerdote do Real". Cursou a Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo) para, depois, prestar concurso para o Itamaraty. Foi embaixador em Washington, Buenos Aires e Roma e representante junto a órgãos da ONU (Organização das Nações Unidas).
 

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