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Publicada em 12 de Maio de 2024 às 10:00

Crises climáticas têm de entrar na agenda política, afirma pesquisador do Centro Polar e Climático da Ufrgs

Pedro Valente alerta para necessidade de investimento em pesquisa para prevenção de desastres climáticos

Pedro Valente alerta para necessidade de investimento em pesquisa para prevenção de desastres climáticos

FOTOS: THAYNÁ WEISSBACH/JC
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Bruna Suptitz
Bruna Suptitz
Um evento climático extremo como o que está atingindo o Rio Grande do Sul nas duas últimas semanas já era previsto pelos cientistas climáticos - mas não para agora. O geógrafo e climatologista Pedro Valente, pesquisador do Centro Polar e Climático da Ufrgs, lembra de estudos apontado que episódios como este ocorreriam a partir de 2030. As projeções, no entanto, se anteciparam em quase uma década, e estão castigando o Estado desde o ano passado.
Um evento climático extremo como o que está atingindo o Rio Grande do Sul nas duas últimas semanas já era previsto pelos cientistas climáticos - mas não para agora. O geógrafo e climatologista Pedro Valente, pesquisador do Centro Polar e Climático da Ufrgs, lembra de estudos apontado que episódios como este ocorreriam a partir de 2030. As projeções, no entanto, se anteciparam em quase uma década, e estão castigando o Estado desde o ano passado.
Fenômenos como este que estamos vivenciando são consequência das mudanças climáticas, por sua vez resultantes da intervenção humana no meio ambiente e na temperatura média da atmosfera - o aquecimento global. Acontece que "essa mudança, na intensidade e na frequência dos eventos, veio muito antes do que se esperava", aponta Valente. Ou seja, embora enchentes tenham sim ocorrido em outros momentos da história do Estado, "a questão é que o intervalo de tempo entre esses eventos está ficando cada vez menor" e "as chuvas chegam em volumes iguais ou mais intensos em menos tempo".
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Pedro Valente explica a relação da chuva intensa com o El Niño, com base nos estudos que realizou sobre as precipitações em solo gaúcho ao longo do século XX. Ele ainda alerta para o impacto social e econômico da crise climática em curso e defende investimento em pesquisa e prevenção.
Jornal do Comércio - A tragédia em curso no Rio Grande do Sul é considerada a maior catástrofe climática do Estado e um fenômeno climático extremo. O que são esses conceitos?
Pedro Valente - Dentro do cenário climático, temos hoje um El Niño muito forte, apesar de ele já ter entrado em declínio. Mas tivemos um episódio muito forte em nível global. A temperatura média da superfície oceânica no mundo em 2023 foi muito mais alta do que em 2022. Em 2024, a temperatura segue os mesmos padrões de 2023. Então, a nível global, temos o El Niño contribuindo para essas mudanças climáticas. Esse fenômeno natural afeta toda a dinâmica da climatologia brasileira. Em períodos de El Niño, a umidade que está na Amazônia acaba se deslocando na direção dos Andes. No entanto, quando chega na cordilheira, essa umidade é barrada e, pelo próprio movimento da Terra, é conduzida até o Rio Grande do Sul. O Estado está, de certa forma, no meio do caminho entre a Antártida e a Amazônia. Isso nos coloca em uma situação de muita umidade, de muitas condições para precipitações altas. Além disso, muitos sistemas de baixa pressão e muitos ciclones que se desenvolvem no Atlântico Sul e têm origem na Antártica acabam afetando o Rio Grande do Sul. Dessa forma, nós somos afetados tanto pelo que vem do Sul quanto pelo que vem do Norte.
JC - Como disse, a gente está nesse meio do caminho. Mas parte da Argentina também está. Isso tem acontecido lá?
Valente - Tem. A minha área de estudo no doutorado foi justamente o sudeste da América do Sul: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Uruguai e Argentina. A gente vê uma mudança no padrão das chuvas, como elas estão ficando mais intensas. Mas a intensificação das chuvas não está ocorrendo na mesma proporção nas diversas regiões. Se compararmos o nordeste da Argentina, o Uruguai e o Rio Grande do Sul, vemos que aqui é o lugar onde as chuvas estão ficando mais intensas. Apesar disso, no ano passado, o Uruguai também teve um total anual de chuvas tão alto quanto aqui. Ao mesmo tempo, a Argentina está ficando cada vez mais chuvosa, mas também possui uma onda de calor muito intensa. Aqui no Brasil, também temos essa onda de calor, mas ela se concentra mais no Centro-Oeste e no Sudeste do País, e acaba fazendo com que a umidade também venha para o Sul e afete o Rio Grande do Sul.
JC - Citou a mudança no padrão de chuva. Qual é o padrão e o que é essa mudança?
Valente - No Rio Grande do Sul, de 1900 até 1982, tinha episódios intensos de chuva, especialmente em períodos de El Niño. A partir de 1982, houve uma mudança no padrão pluvial, os valores de chuvas aumentaram e a duração de cada evento mudou. Na enchente de 1941, tivemos volume de chuva similar aos que estamos vendo agora, um pouco menor até, mas a chuva caiu no Estado todo, em média, em 22 dias. Agora, os mesmos valores de chuvas foram registrados em 5 dias. A duração dos eventos está mudando e as chuvas chegam em volumes iguais ou mais intensos em menos tempo. Além disso, tem a diminuição da frequência. Chuvas que ocorriam de 10 em 10 anos, ou de 20 em 20, agora estão ocorrendo em menos tempo, a cada cinco anos ou a cada dois. Nos últimos sete meses, os municípios do Vale do Taquari registraram três das cinco maiores enchentes de suas histórias. As estações de transição, outono e primavera, estão exibindo os maiores eventos extremos. Em 2024, a enchente está ocorrendo no mesmo período do ano que em 1941. O que preocupa hoje é que até o próprio padrão de comportamento da chuva e da temperatura nos períodos de El Niño e La Niña está se modificando. Ainda existe aquela máxima de que o El Niño traz chuva e temperaturas maiores e que o La Niña traz estiagem e temperaturas menores. Mas o intervalo entre episódios, chamado de período neutro, está diminuindo. Especialmente nos últimos 10 anos, estamos quase constantemente sob a ação de um desses fenômenos. De 2020 até o início de 2023, nós enfrentamos um período de La Niña e, dois ou três meses depois, começou a atuar o El Niño em que estamos.
JC - Característica das mudanças climáticas…
Valente - O difícil de trabalhar com mudanças climáticas hoje é que elas mudam a regra no meio do jogo. Então, padrões que a gente conhece podem se alterar numa velocidade maior do que a gente está esperando. O relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) de 2021 já indicava que o sudeste da América do Sul, que engloba a região Sul como um todo, ia ficar mais chuvoso. Segundo o relatório, os episódios extremos ocorreriam a partir de 2030, mais ou menos. No entanto, já temos esses cenários apontados acontecendo em 2023 e agora em 2024. Então, essa mudança, na intensidade e na frequência dos eventos, veio muito antes do que se esperava.
JC - A situação que estamos enfrentando era algum dos cenários apontados?
Valente - Sim, era o cenário mais provável. Só que a gente esperava esse cenário um pouco mais para o fim da década, e não para o início.
JC - Ainda mais com chuva em excesso, nesse sentido?
Valente - Isso. Até porque, historicamente, sempre teve enchentes. Muito se fala de 1941, mas (a bacia hidrográfica que banha Porto Alegre) teve muitas outras, em 1926, 1928, 1936, 1959, 1967, 1972, 1973, 1982, 1983 e em 1997. A questão é que o intervalo de tempo entre esses eventos está ficando cada vez menor. Tanto que a gente falava, por exemplo, em mais ou menos uma enchente por década. Quando a gente para para ver, já tem hoje cinco por década, dois em um ano, três em sete meses…
JC - E com muito mais impactos…
Valente - Isso é muito ruim do ponto de vista não só climático, porque uma enchente é um fator social, ela é socioeconômica também. Pega as pessoas do Vale do Taquari que foram afetadas, por exemplo. Em setembro, aquelas que tinham algum dinheiro guardado começaram a reconstruir as suas casas e a prefeitura começou a reconstruir a cidade. Em novembro, mais uma enchente e, como consequência, muito daquilo foi perdido. Daí, quem ainda tinha um pouco de dinheiro começou a reconstruir. E veio uma terceira enchente agora em abril e maio, muito pior que as duas primeiras. De novo esse mesmo cenário. Então, econômica, geográfica, social e culturalmente, precisamos construir. Precisamos pensar e reavaliar se as regiões atingidas pelas enchentes ainda são o melhor espaço de construção, ou se podem ser modificadas, transplantadas e reorganizadas em outros lugares. Se não for possível, investir em maneiras de conter enchentes, hoje existem várias bombas, diques e todo um aparato. A Defesa Civil, nos níveis municipal, governamental e nacional, precisa de mais técnicos, de mais cientistas e de mais gente engajada. Precisa de maquinário, de pessoal técnico e de divulgação. A Defesa Civil tem hoje sistemas de alerta que já funcionam super bem, mas ainda são pouco divulgados ou não tão conhecidos. Uma Defesa Civil forte demanda algo muito maior do que um plano de mandato de quatro anos, tem que ser uma coisa interligada e uma preocupação constante de todo mundo, a nível municipal, estadual e nacional.
JC - O sistema de contenção das enchentes aqui em Porto Alegre não funcionou, ao menos não a pleno. Faltou manutenção e faltou que se adequasse às novas condições. Como se constrói um sistema, pensando que não se pode ter nem muita certeza do que prever, porque as mudanças, como observou, vão acontecendo no meio do caminho?
Valente - Bom, a maneira que eu vejo isso é ampliar o corpo técnico-científico desses órgãos. Não só climatologistas, mas também meteorologistas, hidrólogos, engenheiros ambientais e biólogos. Sociólogos também, porque, quando a água baixar, vai ser tão duro quanto o que a gente já está vendo. A enchente não acaba quando a água baixa. Depois dela, existe a necessidade de limpeza das casas e o medo das pessoas de voltarem e passarem por isso de novo. Existem várias camadas, escalas e dimensões nesse problema. Então, esses sistemas que já existem precisam ser reconstruídos ou replanejados, com base no novo conhecimento que já se tem. Muitos desses sistemas são de 20 ou 30 anos atrás, ou até anteriores. Daqui a pouco existe um material mais resistente ou um investimento em radares e sistemas de previsão do tempo. O pessoal que opera na Defesa Civil hoje faz um bom trabalho, mas ainda é um corpo muito pequeno, que precisa ser mais técnico e mais científico. Precisa haver um diálogo maior e cada vez mais fortalecido entre Defesa Civil e academia. Existem maneiras de se conciliar e a que eu vejo hoje é justamente dando espaço para pesquisas e para bolsas de incentivo das pessoas que estudam mudanças climáticas. O cientista brasileiro é muito bom, e a prova disso é que somos bastante valorizados lá fora. Fazemos muito com o que temos no Brasil hoje. Se a gente tivesse esse corpo fortalecido, com vagas para essas pessoas poderem atuar em órgãos públicos, seria crucial para mitigar os efeitos das enchentes.
JC - Vê condição para que isso aconteça no campo político e econômico do País?
Valente - Existem muitos políticos hoje que estão adotando a pauta das mudanças climáticas justamente porque isso está deixando de ser uma opção. Estamos cada vez mais expostos a enchentes e estiagens. A estiagem afeta a agricultura e também a cidade, só que ela é diferente da enchente porque é silenciosa e lenta. Daqui a pouco vai deixar de ser uma opção não trabalhar com mudanças climáticas. Da mesma forma que hoje em dia sempre se fala em educação, saúde e segurança como as três pautas clássicas da política, acredito que a mudança climática tem que ser uma quarta pauta. Para mim, ela está no mesmo nível e precisa dos mesmos investimentos.
JC - Veremos essas três e várias outras pautas afetadas se a questão climática não for atendida...
Valente - Exatamente, tudo está sendo influenciado. Todos nós estamos expostos ao que acontece. Isso independe de classe social, todo mundo é afetado. Claro, algumas pessoas, nós sabemos, são muito mais afetadas que outras. Quem mais está sendo afetado é quem não tem as melhores condições e vive em regiões mais expostas aos eventos climáticos. Mas todo mundo contribui para a economia de alguma maneira. Portanto, se um setor para, a economia vai parar e as coisas vão colapsar.
 

Pedro Valente

Natural de Porto Alegre, Pedro Valente é geógrafo climatologista formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). Participa do Centro Polar e Climático da Ufrgs como pesquisador e de uma parceria público-privada do CNPq com a BAT em um projeto de predição de safra para agricultura familiar. Estuda as conexões trópico-polo (climatologia polar e subtropical) e seus impactos no hemisfério sul. É especializado em eventos extremos de precipitação, trabalha com a climatologia histórica do século XX no Rio Grande do Sul e Sudeste da América do Sul.
 

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