Ana Carolina Stobbe e Diego Nuñez
A vida e a história de Luiz Afonso Peres e da Câmara Municipal de Porto Alegre se confundem. O diretor legislativo completou, em 21 de março de 2024, 45 anos servindo ao Parlamento porto-alegrense - há 15 anos é o chefe da Diretoria Legislativa (DL). Entre os muitos anos em que passou praticamente co-conduzindo os trabalhos dos vereadores junto aos presidentes da Mesa Diretora e, antes, assessorando parlamentares de diferentes partidos, Luiz Afonso acumulou experiência.
A Câmara é a vida dele, como o próprio declarou nesta entrevista ao Jornal do Comércio, em que conta um pouco da sua história e a do Legislativo de Porto Alegre. Fala sobre os difíceis momentos da ditadura militar e da pandemia de coronavírus, sobre a retomada da democracia de pluripartidarismo, do avanço da política na Capital e da forma de exercê-la, das disputas políticas no plenário Otávio Rocha, sobre o que poderia ser diferente e sobre seus acertos. O principal deles: "permanecer na Câmara".
Jornal do Comércio - Como foi o início da sua história na Câmara?
Luiz Afonso Peres - Sou natural de Charqueadas e minha família era ligada à política local. Meu pai foi vereador, o meu irmão foi candidato a prefeito, eu mesmo fui candidato a vereador. O ex-vereador Sadi Schwerdt me convidou para ser assessor, naquela época a Câmara tinha dois assessores por gabinete. No primeiro dia, cheguei no gabinete, e o Sadi me mostrou uma pasta dos projetos de lei, outra dos pedidos de informação, outra de não sei o que e subiu para o plenário. Fiquei eu e as pastas. Aí fui me interessando e pegando o funcionamento da Câmara. Era um mundo totalmente novo. Vim direto do Interior e tinha gente que eu via só na televisão.
JC - Quando foi?
Luiz Afonso - Eu entrei exatamente no dia 21 de março de 1979.
JC - O Brasil ainda estava sob o regime militar, como era o Parlamento naquela época?
Luiz Afonso - Quando eu entrei ainda estávamos nesse período. O vereador com quem vim trabalhar, o Sadi, era do MDB. Tinha apenas dois partidos, o MDB e a Arena. Entrei em março e peguei justamente, em agosto de 1979, a Lei da Anistia. E aí começou todo um debate sobre a reorganização do pluripartidarismo. Foi uma efervescência muito grande. Já tinham se passado quase 20 anos de regime militar. Todo mundo estava ansioso pela reorganização partidária. Eram 21 vereadores e o debate era sobre a cidade. Até porque, se começasse a se falar sobre muitas outras coisas, tinha censura. Nós tivemos dois vereadores cassados na legislatura de 1977, em razão de discursos proferidos na tribuna. Eram os vereadores Glênio Peres e o Marcos Klassmann.
JC - O que fez o senhor se interessar pela política?
Luiz Afonso - Venho de uma família de políticos locais, paroquianos, digamos. E lá em casa eu sempre olhei para a política. Quando veio essa oportunidade eu disse "bah, é a hora". Eu mudei de curso, e hoje sou formado em Direito. E realmente fui militante, do grupo que reconstruiu o trabalhismo aqui. Fui um grãozinho de areia nessa imensidão toda, mas eu fui dirigente da juventude do PDT.
JC - Como é conciliar a relação entre diferentes partidos dentro da Câmara?
Luiz Afonso - No Parlamento, tem debates intensos. Naquela época também. Isso é da natureza do Parlamento. Mas todo Parlamento tem uma faixa de preservação institucional. As pessoas se relacionam, além dos debates. Às vezes falam "brigaram e depois estão abraçados". Faz parte do processo. As pessoas não podem simplesmente romper umas com as outras e não se falarem mais. Isso quebra a natureza do Parlamento. Essa riqueza ajudou a formar minha personalidade. Entrei com 19 anos aqui, era muito imaturo. Aprendi a lidar com isso. O foco da Diretoria Legislativa é no trabalho institucional. Eu não atuo politicamente aqui dentro. Mas consegui desenvolver uma capacidade de conversar com todos os partidos. Consigo perceber qual é a preocupação do vereador, o que é que ele deseja. O processo legislativo é formal, mas tem muitas questões políticas e atuamos para ajustar às vezes uma ou outra aresta política, mas não política partidária, política do processo legislativo. Eu sou filiado ao Partido dos Trabalhadores, todos aqui sabem e isso não interfere na minha relação com os vereadores e não interfere no meu relacionamento com o trabalho. E isso sempre foi público. Eu tenho muito cuidado exatamente para não misturar essas coisas.
JC - Durante seu tempo na Câmara, pegou muitas fases da política porto-alegrense. Primeiro governo em sequência do PT, depois partidos mais ao centro como MBD, PDT e PSDB se revezando na prefeitura, o que se reflete na Câmara. Como acompanhou isso?
Luiz Afonso - Os governos têm um período de apoio da comunidade e depois eventualmente eles se desgastam. Isso certamente aconteceu com o PT porque governou uma cidade por 16 anos. O dia a dia da administração é muito complicado. E às vezes a população quer uma coisa diferente. A política municipal tem uma característica de ser menos ideologizada. O mosaico político vai se movimentando e a eleição do prefeito de certa forma puxa um pouco a eleição para vereador.
JC - Como foi a experiência de atuar como diretor legislativo durante a pandemia, com as sessões remotas?
Luiz Afonso - Foi um desafio muito grande. No dia 16 de março de 2020, a Câmara amanheceu fechada. E o presidente Reginaldo Pujol (DEM) me ligou e disse "professor, e agora, como é que vamos fazer?". A Câmara tinha sessões que não podiam ser feitas presencialmente. O prefeito estava demandando algumas medidas para ajudar na contenção da disseminação do vírus. A primeira coisa que fiz foi buscar uma forma de fazer reuniões virtuais. O Senado já estava usando plataformas. Outro problema é como tramita o processo. Eram todos físicos, tudo no papel. Aí pensamos no sistema de processo administrativo que é o SEI. Tivemos que fazer alguns ajustes na forma de manejar o programa. Foi um grande desafio, a gente trabalhou muito. Na pandemia não tinha horário de expediente. Era da manhã à noite. Mas com o mini regimento, como a gente chamava, foi uma outra resolução. E conseguimos administrar. Proposições foram votadas, vereadores podiam fazer pronunciamento etc.
JC - O senhor ao longo do tempo tem conduzido os trabalhos legislativos, auxiliando os presidentes, inclusive. Como é que essa questão de acabar 'co-conduzindo' o Parlamento?
Luiz Afonso - A função dos vereadores é representar os anseios da cidade. A função da diretoria é administrar a burocracia do processo legislativo. Nas sessões, ajudamos na orientação da mesa. Os vereadores têm muita confiança no nosso trabalho. Antigamente, vereadores eram especialistas em regime. A forma de fazer política mudou muito. Em 2020, quando entrou um novo grupo de vereadores, essa eleição trouxe características. Entrou um grande número de vereadores mais jovens. Essa coisa das redes sociais tornou tudo mais rápido, muito fluido, líquido. Isso pegou na política também. Agora essa é a forma de fazer política.
JC - O que o motiva a continuar na Câmara depois de 45 anos?
Luiz Afonso - Podem não acreditar, mas gosto muito disso. A Câmara é a minha vida. Estou desde os 19 anos aqui. Tudo que eu sou eu devo à Câmara e procuro retribuir à Câmara essa gratidão toda. Eu acordo de manhã e penso: o que será que vai acontecer hoje? E isso é fascinante. Apesar do processo legislativo ser uma coisa estática, regrada, formal, a política incide muito. E a política muda a toda hora. Agora, por exemplo, estávamos em um momento de grande efervescência por causa da janela partidária. Essas coisas me motivam a levantar e vir para cá.
JC - Nesses 45 anos, quais momentos marcantes destacaria?
Luiz Afonso - Destaco dois momentos que foram próximos, mas que foram muito importantes. O primeiro foi a volta do pluripartidarismo. Fui um sujeito que cresceu, tive minha adolescência e juventude toda praticamente dentro do regime militar. Um regime em que dizem qual é o livro que tu podes ler, qual é a música que tu podes escutar e qual é o filme que tu podes assistir. Ditaduras são assim. E aí isso foi uma coisa importante para mim. A outra foi quando veio a anistia. Dois vereadores tinham sido cassados em 1977 de um mandato que estava em curso quando eu entrei. E o presidente da Câmara então reempossou eles. E isso para mim foi um fato muito importante. O terceiro fato que eu registraria foi a pandemia. Que teve desafios grandes.
JC - Como assistiu a invasão à Praça dos Três Poderes, com o Parlamento sendo depredado, e como vê as críticas ao Legislativo, de forma geral, no período recente?
Luiz Afonso - Essa questão das críticas ao Legislativo com o passar do tempo aumentam e diminuem. Depende muito do contexto político. Sou uma pessoa que preza muito pela democracia. Todo ato que tente abolir a democracia, eu particularmente não concordo. O que parece que aconteceu no dia 8 de janeiro de 2023 foi um movimento para tentar abalar a democracia, para permitir a continuidade de forças políticas que não haviam sido consagradas nas urnas. O 8 de janeiro foi uma coisa que eu jamais pensei que veria de novo na minha vida. O Brasil, desde a Constituição de 1988, desde a redemocratização, vinha em um período de democracia estável. É verdade que a nossa democracia resistiu por um fio. Pelo que estamos vendo, uma das coisas fundamentais foi que uma parte majoritária da área militar não apoiou a iniciativa de tentar dar continuidade ao governo. Isso prova que a democracia é um regime que tem que estar sempre alimentado, sempre regado e sempre cuidado. Porque sempre há uma ameaça pairando.
JC - Acredita que foi o momento mais frágil da democracia enquanto esteve na Câmara?
Luiz Afonso - Sim, foi. Eu nunca havia assistido um movimento público assim, felizmente minoritário. A população não apoiou. Mas todos os outros períodos que eu peguei foram períodos em que a democracia foi se consolidando.
JC - Quais são os planos agora daqui para a frente? Pretende chegar aos 50 anos de Câmara?
Luiz Afonso - Meu plano é permanecer na Câmara. Ocupo cargo de confiança e todo ano isso pode ser alterado. Vamos ter uma nova eleição, novos vereadores e a administração da Câmara vai ser escolhida de novo. Eu, obviamente, gostaria de ficar. Tenho um desejo de completar 50 anos de serviços e aí completaria também 20 anos na Diretoria. Seria uma honraria pessoal.
JC - Qual é a melhor memória nesses 45 anos, uma memória afetiva?
Luiz Afonso - É recente, mas recebi duas homenagens que me deixaram muito comovido. Uma no ano passado, durante os 250 anos da Câmara, e recebi agora essa quando eu completei 45 anos. Isso para mim foi muito emocionante do ponto de vista afetivo, porque mostrou um reconhecimento por uma coisa que eu dei a minha vida.
JC - Qual foi o período mais difícil?
Luiz Afonso - Na pandemia. Foi terrível. Tinha desafios internos e todo o problema da doença na rua.
JC - Um arrependimento?
Luiz Afonso - Eu sou um homem que não se arrepende de nada. Não chega a ser um arrependimento, mas talvez eu devesse ter cuidado mais de mim. Eu roubei o tempo da minha família para me dedicar à Câmara. Talvez devesse dosar melhor. Quando tu é mais novo, tu não enxerga isso. Sou casado há 35 anos e tem um longo período que eu roubei muito da minha família.
JC - Um presidente que o senhor destacaria...
Luiz Afonso - Eu citaria um presidente que pra mim foi importante: o vereador Cleom Guatimozin. Foi presidente da Câmara quando eu entrei, mas não foi por isso. Ele foi o presidente que reempossou vereadores cassados quando veio a anistia. Esse foi um ato muito corajoso, porque em 1979 o regime militar ainda estava vigente. Não nos esqueçamos que ele só terminou em 1985. Ele se destacou dos demais pela coragem cívica.
JC - Qual foi a decisão mais difícil que teve que tomar?
Luiz Afonso - Todos os dias tomo uma decisão difícil aqui.
JC - Qual foi a decisão mais acertada?
Luiz Afonso - Ficar na Câmara. Eu fiz outros concursos públicos, mas eu decidi ficar.
JC - Uma vez que o senhor sente que fez a diferença no Legislativo?
Luiz Afonso - Foi na pandemia. Porque ficaram muito a meu encargo as soluções para a Câmara funcionar. Claro que tenho uma equipe que me ajuda, mas para mim foi o momento que mais me destaquei, digamos assim.