No Congresso Nacional, o partido Novo busca instalar a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do abuso de autoridade. Iniciativa capitaneada pelo deputado federal gaúcho Marcel van Hattem, a proposta visa investigar possíveis interferências do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em prerrogativas que seriam do Congresso Nacional, segundo aponta o parlamentar.
O ponto de partida para o pedido seria o inquérito das fake news, conduzido pelo ministro Alexandre de Moraes. Para Van Hattem, o Brasil vive um "estado de exceção" na "ditadura do Judiciário". O deputado também comenta casos de julgamento no STF que, em sua visão, deveriam estar sendo decididos por Câmara e Senado, como a descriminalização da maconha, o vínculo empregatício para motoristas de aplicativo e a questão do aborto.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Van Hattem também diz ver a reforma tributária como uma oportunidade desperdiçada, avalia a condução dos presidentes das casas legislativas nacionais e fala sobre os planos do Partido Novo para as eleições.
Jornal do Comércio - O Novo busca a abertura da CPI do abuso de autoridade. Qual é a motivação?
Marcel van Hattem - Não tenho nenhuma restrição em dizer que hoje vivemos uma ditadura do Judiciário. Estamos num Estado de exceção. A lei e a Constituição não valem igualmente para todos. Quem inaugurou isso foi o Supremo com o inquérito dito das fake news, o chamado fim do mundo, no ano de 2019, ao perseguir e censurar um meio de comunicação e depois ampliar isso indefinidamente, sem limites, censurando, bloqueando contas bancárias, perseguindo pessoas e investigando e julgando sem a prerrogativa de foro. Temos uma série de ações realizadas por ministros do STF, sob a liderança de Alexandre de Moraes, que é relator desses inquéritos, que extrapolam os limites da lei, infringem a lei de abuso de autoridade e também a própria Constituição. A CPI do abuso de autoridade obteve 171 assinaturas e é uma resposta do Parlamento a esses abusos que merecem ser efetivamente investigados. E a relação entre os Três Poderes precisa ser normalizada. Não pode um Poder se achar acima da lei da Constituição.
JC - Qual o status da CPI, o que precisa para ela sair?
Van Hattem - Depende do despacho do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP). São cinco as CPIs que podem funcionar concomitantemente. Nesse momento, não há nenhuma em funcionamento. A CPI do abuso de autoridade está em terceiro numa fila que precisa ser respeitada. É possível que ela seja instalada imediatamente. Agora que foram instaladas as comissões da Câmara, é hora de o presidente debruçar-se sobre os pedidos de CPI.
JC - A CPI mira desdobramentos do inquérito das fake news ou o STF de forma geral, incluindo questões como as investigações sobre o 8 de janeiro e a minuta do golpe, por exemplo?
Van Hattem - Ela iniciou com o requerimento apresentado em 2022, que foi repetido no ano de 2023, ipsis litteris, tratando dos abusos cometidos contra cidadãos brasileiros sem prerrogativa de foro. Empresários, manifestantes pacíficos que tiveram contas bancárias bloqueadas, redes sociais censuradas, também meios de comunicação censurados em virtude de uma resolução do TSE no período do segundo turno eleitoral; Brasil Paralelo, Jovem Pan e outras redes de comunicação. Inclusive, toda a mídia foi impedida pelo TSE de dizer uma verdade, que era a relação de Lula com ditadores da América Latina. Na época da campanha, o TSE proibiu que essa notícia pudesse ser divulgada. Nasceu o pedido a partir daí, mas ele não se limita a isso. É uma CPI. Há um ditado recorrente que a gente sabe como começa, mas não como termina. Não é apenas o STF e TSE que estão cometendo abuso de autoridade. Precisamos também investigar até que ponto a Polícia Federal (PF) está sendo instrumentalizada para isso, até que ponto o Ministério Público (MP) está abrindo mão de suas prerrogativas.
JC - Qual o objetivo do seu projeto que revoga atribuições do TSE de expedir instruções?
Van Hattem - Não é de hoje que o TSE tem avançado sobre as prerrogativas do Parlamento, emitido resoluções que na verdade são colocadas em prática como se leis fossem. Isso é desrespeitar o Parlamento, é intervir no devido processo legislativo, desde o número de vereadores que foi definido por resolução do TSE nas câmaras municipais, para depois ser pacificado por meio de uma emenda constitucional, até a apócrifa resolução de setembro de 2022, em pleno curso do segundo turno eleitoral, que jamais poderia ter sido assinada. A lei é clara, o TSE só pode expedir resoluções até 6 meses antes das eleições. Agora, no caso mais recente e ainda mais gritante, o TSE legisla ao adotar praticamente todos os pontos mais delicados do projeto de lei conhecido como PL das Fake News, ou PL da censura, dentro de uma resolução e aprová-lo para vigorar durante esse período com efeitos imediatos na utilização de redes sociais nas campanhas e que vão atingir as empresas de comunicação, as redes sociais e também candidatos, sem que tivesse sido feito pelo devido processo legislativo, pela Câmara, pelo Senado. Essa não é a função do TSE.
JC - Ainda no âmbito da Justiça, o STF está debatendo a descriminalização da maconha...
Van Hattem - Não é tema do STF. Está avançando em mais um tema que é do Parlamento, definindo até a gramatura que é considerada como legal ou ilegal para porte. Isso não é tema do STF. Para que temos deputados e senadores? São os representantes do povo para decidir drogas, aborto, marco temporal (das terras indígenas). O STF, com base na legislação criada pela Câmara ou pelo Senado, decide uma disputa entre indivíduos ou entre indivíduos e o Estado. Mas não é sua vocação inovar, criar lei. Se fosse, não seria necessário o Congresso. Em outras palavras, com essa decisão, o STF apequena e enfraquece o Congresso.
JC - Já existe legislação diferenciando o usuário do traficante. Não seria atribuição, então, do STF...
Van Hattem - Não, porque a legislação já está diferenciando. O STF, vai fazer o quê? Decidir novos parâmetros? Por quê? Quem decide os novos parâmetros é a Câmara e o Senado, os dois em conjunto.
JC - Como o Novo vê esse debate? Seria a favor da descriminalização da maconha?
Van Hattem - O Novo é a favor de uma discussão dentro da Câmara e no Senado, com uma grande maioria dos filiados, pelo que eu percebo, para manter a legislação exatamente como está.
JC - STF também debate um vínculo empregatício entre motorista de aplicativo e empresa. Como o Novo se posiciona?
Van Hattem - Essa é outra discussão que chegou no Poder Judiciário e agora o também o Poder Executivo está querendo regular. Somos contra qualquer alteração que limite a possibilidade do trabalhador brasileiro ganhar o seu pão no dia a dia. Essa legislação proposta pelo governo Lula é temerária. É negativa para quem trabalha porque o motorista não vai poder trabalhar mais de um determinado número de horas por dia, limita a possibilidade de auto remuneração e ainda cria um sindicato. Somos completamente contrários a essa proposta.
JC - E a questão do aborto?
Van Hattem - Eu sou pessoalmente o contrário ao aborto. Entendo que essa deva ser uma decisão do Parlamento. E quando o Parlamento decide que não vai deliberar sobre esse assunto além daquilo que já está dentro da lei, ele já deliberou. Então, o Parlamento é a favor de manter a lei como ela está.
JC - Qual sua opinião sobre o texto final da reforma tributária e quais pontos carecem de atenção na regulamentação?
Van Hattem - A reforma tributária foi uma grande oportunidade perdida. Obviamente que há avanço no sentido da simplificação para o setor privado, mas há muito retrocesso no que diz respeito ao número de exceções à regra que foram criadas. Ou seja, benefícios setoriais que implicarão em maior imposto para quem não teve acesso aos corredores de Brasília e que pagará mais imposto por esse motivo. Temos um grande desafio agora com as leis complementares, que são leis aprovadas por uma maioria absoluta, não é mais por um quórum constitucional. Então o governo terá mais facilidade de aprovar determinadas medidas, o que me faz temer que o espírito arrecadatório desse governo acabe prevalecendo.
JC - O senhor teve uma discussão com o Arthur Lira no final do ano passado, no plenário. Está descontente com a condução da Câmara?
Van Hattem - Tanto a condução da Câmara como a condução do Senado não têm representado aquilo que se espera de um Congresso Nacional que represente de fato o povo brasileiro e represente o seu papel dentro da estrutura de Poderes que hoje nós temos no Brasil. Temos um Congresso que vive basicamente de emendas, conchavos, troca de favores com o Poder Executivo ou de relações indesejáveis com o Poder Judiciário, em virtude do foro privilegiado. Ambos presidentes das casas não têm se comportado à altura dos cargos que ocupam. Espero que essa atitude mude. A Câmara está, a cada dia que passa, perdendo relevância no debate institucional, permitindo que o STF legisle, censure deputados, que o TSE casse ilegalmente deputados, como foi o caso do (ex) deputado Deltan Dallagnol, hoje no Novo.
JC - O Novo não ultrapassou a cláusula de barreira, o que deixa o partido com algumas restrições, incluindo a participação de debates e apresentação de destaques. Para superar isso, o partido busca atrair novos quadros com mandato?
Van Hattem - A cláusula de barreira foi criada justamente para limitar a participação de tantos partidos políticos como víamos no Brasil no passado em âmbito nacional. Eu não sou contra o Brasil ter muitos partidos políticos. Sou contra o fato de que nós não podemos ter a criação de partidos políticos em âmbito local. Todos os partidos precisam ter âmbito nacional. É por isso que se cria esse balcão de negócios, porque você tem muitos partidos políticos em Brasília e inexistem partidos de base local. O cidadão do município não pode criar um partido político para concorrer a vereador, a vice-prefeito, a prefeito.
JC - Em outros países existe essa previsão?
Van Hattem - Quase todos os países democráticos são dessa forma. Na Espanha, por exemplo, são 5 mil assinaturas para criar um partido político. Na Argentina, pode-se criar um partido local. É uma incoerência o Brasil não ter partidos políticos locais porque nós somos uma federação. E a federação pressupõe autonomia, o máximo possível, no nível local. Essa legislação foi criada por Getulio Vargas e se manteve até hoje com essa previsão de partidos nacionais, porque é do interesse dos partidos políticos existentes não aumentar a concorrência no nível local. O Partido Novo não superou a cláusula na última eleição, mas nossa atividade permaneceu inalterada sob o ponto de vista do que nós fazemos na Câmara dos Deputados, ou no Senado agora, pois nós temos um senador, o que nós não tínhamos no passado. É um prejuízo não termos direito ao destaque, mas o fato de estarmos trabalhando em cooperação com o PL na oposição nos permite às vezes apresentar até mais do que um destaque, porque o PL tem direito. De outra parte, precisamos continuar trabalhando para superar a cláusula de barreira novamente em 2026.
JC - Na semana passada, o Novo lançou como pré-candidato à prefeitura de Porto Alegre, o deputado estadual Felipe Camozzatto. Como o partido vai conseguir se diferenciar no debate eleitoral de uma gestão atual que é caracterizada por reformas estruturantes liberais?
Van Hattem - A candidatura de Felipe Camozzato é uma excelente notícia para Porto Alegre. Ele é preparado, tem formação em Administração pela Ufrgs e pós-graduação pela Universidade Georgetown. Nunca deixou de continuar estudando, tem visão empreendedora e vai significar um acréscimo enorme para o debate. Inclusive, contribuindo para demonstrar os avanços que aconteceram nesses últimos anos na cidade de Porto Alegre, em virtude de não ser mais administrada por partidos de esquerda, em particular pelo PT. Mas também vai ter a capacidade de fazer avaliação crítica de como se poderia ter avançado mais nesse período, no sentido de dar mais liberdade para os cidadãos, de privatizar mais, garantir melhores serviços públicos.
Perfil
Marcel van Hattem (1985, São Leopoldo) é deputado federal gaúcho. Criado em Dois Irmãos, possui dupla nacionalidade, brasileira e holandesa. Evangélico luterano, não é casado e não tem filhos. Desde os 18 anos, dedica-se à política. Formado em Relações Internacionais e especializado em Direito, Economia e Democracia Constitucional pela Ufrgs, possui mestrado em Ciência Política pela Universidade de Leiden e em Jornalismo, Mídia e Globalização pelas Universidades de Aarhus (Dinamarca) e de Amsterdã (Holanda). É egresso do Programa de Liderança Política, Social e Empresarial da Georgetown University (EUA). É deputado federal pelo partido Novo desde 2019. É coordenador-geral da Comissão Externa sobre Danos Causados pelas Enchentes no Rio Grande do Sul. Antes, foi vereador em Dois Irmãos e deputado estadual, tendo sido o parlamentar mais jovem da Assembleia Legislativa. Ganhou relevância política participando ativamente das manifestações pró-impeachment de Dilma Rousseff (PT, 2011-2016). Nas eleições de 2022, foi o segundo gaúcho mais votado na Câmara dos Deputados, com 256,9 mil votos.