Famurs contesta peso da regra populacional na reforma tributária

"Nosso cuidado é para aqueles que são industrializados, produzem muito, mas que não têm grande população, não sejam penalizados", afirma Luciano Orsi

Por Diego Nuñez

Luciano Orsi, Presidente da Famurs e prefeito de Campo Bom
Se aprovada pelo Senado Federal na forma como passou na Câmara dos Deputados, a reforma tributária vai alterar o modelo de arrecadação para os municípios com os novos impostos: Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS, federal) e Imposto sobre Bens e Serviços (IBS, estadual e municipal). A Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs) defende alterações na divisão do bolo arrecadatório.
A proposta aprovada na Câmara prevê que 85% da parte do IBS destinada aos municípios sejam definidos com base no critério da população, enquanto 10% seriam definidos com base em lei estadual, e 5% de forma igualitária a todas as cidades. Presidente da entidade e prefeito de Campo Bom, Luciano Orsi (PDT) defende que 60% da cota dos municípios seja definida por lei estadual, preservando a autonomia de cada estado para resguardar suas respectivas características regionais.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Orsi também defende a discussão sobre um novo pacto federativo no País, relata a situação vivida pelos municípios atingidos pelas enchentes e critica a dificuldade de acesso a programas do governo do Estado que são condicionantes para o recebimento de recursos.
Jornal do Comércio - A Famurs se posiciona favoravelmente à reforma tributária?
Luciano Orsi - A Famurs é favorável, sim. Existe a necessidade de uma reforma tributária no Brasil. A simplificação pode gerar tranquilidade, facilitação no ambiente empresarial, principalmente. É solicitada há muitos anos no Brasil que possa ter legislações que valham para todos os municípios. Ela tem muitos aspectos positivos. É claro, como tende a ser uma questão impactante, alterando impostos municipais e estaduais, também trazendo uma mudança na questão federal e na própria Constituição, a gente fica apreensivo. Porque a realidade, normalmente, é mais encargos para os municípios e menos recursos. Infelizmente, isso é uma lógica. A Famurs é a única federação que teve audiência pública com o relator da reforma tributária e pudemos levar duas propostas de alteração.
JC - Quais alterações?
Orsi - Entendemos que existem duas questões que podem trazer graves prejuízos aos municípios. Uma delas seria a redução do critério de distribuição dos recursos. Hoje, a previsão que veio da Câmara é que 85% da distribuição seja pelo critério de população. Estamos sugerindo uma mudança que pode parecer drástica, mas na verdade não é tão drástica assim. Pedimos que estes 85% que seriam do critério de população, fiquem 25%, e esses 60% sejam feitos por uma lei estadual, dialogada com os municípios, como o governo do Estado e Assembleia Legislativa, em que a gente possa ver as nossas particularidades em cada uma das regiões. Temos medo que essa reforma possa desestimular a atividade produtiva, concentrando recursos só no critério população, desvalorizando todo aquele trabalho que os municípios já fizeram dentro do setor empresarial.
JC - O Rio Grande do Sul é caracterizado por pequenos municípios.
Orsi - Com certeza; 90% dos municípios têm menos de 10 mil habitantes, embora tenham grande produção agrícola e industrial. Qual é a nossa preocupação? Municípios que criaram toda a sua matriz econômica trabalhando tanto na produção primária quanto na questão industrial, mas que têm pouca população e pouco consumo por consequência, acabem ficando com uma fatia menor da divisão de recursos. Enquanto municípios que não têm essa estrutura fiquem com mais recursos, desequilibrando o que temos hoje no Estado.
JC - Como a regra está hoje, existe a possibilidade que os municípios menores percam arrecadação logo após a reforma?
Orsi - Sim, temos esse receio porque os critérios vão ser baseados, basicamente, no consumo e na população. Nesse ponto, a tendência é que os municípios pequenos, produtores, que são a grande maioria dos municípios no Rio Grande do Sul, vão perder recurso. Isso é o que enxergamos. Estamos buscando equilíbrio para que isso seja minimizado. Queremos reservar um percentual alto para uma legislação estadual para olhar cada região e não tirarmos potenciais importantes que temos construído ao longo de muitos anos.
JC - Qual é a segunda proposta?
Orsi - Diz respeito ao imposto seletivo que está sendo criado para produtos, digamos, insalubres, como bebidas alcoólicas. Ainda não tem um critério bem definido, mas existe a tendência de que ele possa, inclusive, afetar um setor nosso muito forte, que é vitivinicultura. A nossa proposta é para que a arrecadação com esse imposto seletivo seja responsável por garantir aos municípios o retorno do que eles perdem com a extinção do IPI. E se esse recurso do imposto seletivo for insuficiente, que a CBS seja utilizada como fonte de custeio para esse recurso que os municípios possivelmente perderão. Tivemos um exemplo muito claro e doloroso com a Lei Kandir, com a qual existia a possibilidade de todo setor de exportação ter esse recurso, e isso nunca aconteceu. Estamos aí discutindo perdas de 20 anos atrás que até hoje não foram repostas, e os municípios perderam muito.
JC - Mesmo municípios que no início possam perder arrecadação, acabam ganhando ao longo do tempo?
Orsi - Existe um prazo nessa transição, em que há mecanismos, fundos criados para que não percam recursos. Esse fundo tem mais de 40 anos. Há uma certa garantia. Porém, há uma preocupação grande com o futuro. O que o governo está falando é de compensação, mas é uma mudança, que não teria retorno na nossa visão. Teria uma compensação por muitos anos, mas a reforma mexeria profundamente com todas questões já estruturadas nos municípios, das suas matrizes econômicas, sua produção agrícola. Esse é o nosso receio. Não perderíamos porque existiria uma compensação, mas aquela atividade, desempenhada daquela forma, investida por tantos anos, poderia deixar de ser atrativa.
JC - Há divergências entre os municípios em relação à reforma?
Orsi - A parte em que o município tinha todo o protagonismo da produção, da tecnologia, dos investimentos e parcerias com setores empresariais… como a tendência é o imposto ser no consumo, tem toda uma produção que está gerando imposto que vai ser levado para outros municípios. O resultado daquele trabalho feito vai acabar gerando para outros pelo critério do consumo. Por isso, há uma certa divergência entre grandes municípios e os menores. Os grandes, além de terem grande parte da população, têm grande parte do consumo. Eles têm dois fatores. Nosso cuidado é para aqueles que são industrializados, produzem muito, mas não têm uma grande população e nem grande consumo, não sejam penalizados. Isso pode acabar com cadeias produtivas. Um município de produção primária tem produção altíssima, mas não tem consumo. E aqui no Estado, trabalhamos com o setor primário sendo responsável por mais de 40% de toda nossa produção.
JC - A Famurs se posiciona a favor da mudança da cobrança da origem para o destino ou manter como está hoje?
Orsi - A reforma já caminha nesse sentido. O ideal é que a origem também fosse valorizada. Fazer um meio tempo. De certa forma, estamos tentando repor com a proposta de manutenção desses 60% para que seja possível estabelecer outros critérios dentro de cada estado, trabalhando questões regionais. Com a preservação desse índice deslocado do critério população e definido dentro de cada estado, poderíamos valorizar essas questões. Com o arcabouço que está hoje, infelizmente, os estados do Sul e do Sudeste serão prejudicados nessa divisão de recursos.
JC - Existe uma crise fiscal generalizada nos municípios hoje?
Orsi - Existe. O município ainda é aquele ente que cobra a menor tarifa e tem a menor arrecadação. Ficamos apenas com 17% do total de tributos, enquanto a União fica com mais de 60%. Há uma distorção muito grande no pacto federativo. Nós estamos a favor de uma discussão ampla sobre isso. A saúde está cada vez mais cara. A população tem cada vez mais necessidades. Os municípios estão financiando muito mais que a União e o Estado. Isso é um dado. Os governos estadual e federal investem em torno de R$ 100 bilhões na saúde em todos os níveis. Os municípios têm investimento de R$ 233 bilhões. Esse dado foi trazido pela CNM (Confederação Nacional dos Municípios) e levado, inclusive, para o TCU (Tribunal de Contas da União), para a CGU (Controladoria-Geral da União) como um pedido de socorro. Na prática, quando falta recurso na ponta, nos hospitais, nas unidades de saúde, quem coloca é o município. Somos o último ponto, o cidadão procura o prefeito, secretário ou vereador. É no município que as coisas acontecem.
JC - O que poderia envolver o debate sobre um novo pacto?
Orsi - Por exemplo, temos aqui um hospital. Ele tem alta e média complexidade, assim como temos as unidades básicas que fazem parte da atenção primária. Nós arrecadamos um X de impostos, mandamos 60% para a União. Depois volta o recurso para pagar o mesmo hospital que está aqui. Por que esse recurso já não fica no município? Acaba por gerar possibilidade de perda de receita. Muitas vezes o município tem que estar implorando por uma coisa que é realizada no próprio município.
JC - Como está a situação atual dos municípios mais atingidos pelas enchentes no Estado?
Orsi - Temos uma realidade muito difícil ainda naqueles municípios, cidades como Maquiné, Caraá, naquela região litorânea. Eles receberam apenas 40% dos auxílios previstos. Está avançando, mas ainda muito lento. A preocupação dos prefeitos dessas cidades, principalmente no Vale do Taquari, Muçum, Roca Sales, Arroio do Meio, é porque eles tiveram a destruição de toda a atividade econômica do município, seja agrícola, industrial, comercial. Como é que vai reiniciar a atividade econômica daqueles que perderam tudo? Muitos deles não querem mais, vão mudar de ramo, não vão reabrir a empresa ou se mudaram para outra cidade. O receio dos prefeitos é não ter mais arrecadação nos municípios, que no momento não têm nenhuma atividade produtiva, que as empresas não voltem a produzir. Estamos buscando em Brasília agilizar. O retorno que temos é de que 40% do que foi trazido como possibilidade de recuperação foi liberado. Ainda faltam 60%, uma grande parte dos recursos que os municípios contam para se reconstruírem e convencerem o setor empresarial a também reiniciar as atividades.
JC - Prefeitos gaúchos têm relatado dificuldade para acessar recursos de programas no governo do Estado, como iluminação e asfaltamento.
Orsi - É uma questão que a gente tem debatido, procurado ter diálogo possível com o governo do Estado. Temos essa questão específica, que vem do Decreto 56.939, publicado no início do ano, que fixa como uma necessidade de implantação seis programas que o governo do Estado preconiza para serem absorvidos e implantados nos municípios. São programas como O Primeira Infância Melhor (PIM), como o que diz respeito ao transporte escolar. São programas que estão sendo colocados para que os municípios façam a adesão. E esses municípios têm que fazer a adesão obrigatoriamente para poder ter o que se chama de certidão de habilitação de convênios, para poder conveniar. A maioria desses programas como o Pavimenta, o Avançar na iluminação e no esporte, em vários setores a gente sempre elogiou a retomada da capacidade de investimento na cidade. É um grande feito. Mas o esse condicionamento, sob pena de não ganhar essa certidão de habilitação… se eu não implantar os seis programas, não recebo o recurso nem para pavimentação, para iluminação, mesmo que eu tenha projetos da minha cidade já em andamento, torna-se impossível acessar esses recursos. Tem sido difícil. A maioria dos municípios aderiram aos seis programas - alguns por convicção, outros por pura obrigação para poder acessar os recursos. É uma espécie de coação. Não estamos dizendo que os programas não são bons, mas o condicionamento é como se fosse uma venda casada e acaba interferindo na autonomia municipal. Nos foi colocada a possibilidade de fazer uma argumentação, consta no decreto que poderia obter uma justificativa e ser dispensado de cumprir determinados programas, mas não está acontecendo. Os municípios fizeram várias justificativas que não foram aceitas pelo órgão competente.
 

Perfil

Luciano Libório Baptista Orsi (Campo Bom, 1966) é professor de Educação Física, advogado e empresário do setor farmacêutico filiado ao PDT. Em 2012, foi candidato a vice-prefeito, mas não se elegeu. Em 2016, foi eleito prefeito de Campo Bom. Em 2020, foi reeleito com 61,2% dos votos. Foi premiado duas vezes como prefeito empreendedor, pelo Sebrae-RS, e presidiu, por dois anos, a Associação dos Municípios do Vale do Rio dos Sinos (Amvars), agora Vale Germânico (Amvag). Em maio de 2023, foi eleito presidente da Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs) para a gestão 2023/2024. Sua indicação obedece a um acordo de rodízio firmado entre os partidos com mais prefeitos no Rio Grande do Sul.