Uma assembleia formada a partir de sorteio pode propor políticas públicas para atender demandas da sociedade, especialmente as de longo prazo, sem preocupação com as amarras que o tempo eleitoral da política representativa impõe. O modelo não se confunde nem substitui o Legislativo, e difere de práticas conhecidas no Brasil, como os conselhos e o Orçamento Participativo. Nas assembleias cidadãs, já realizadas em países da Europa, os membros são sorteados a partir de critérios que consideram a representação estatística da sociedade.
Quem explica o conceito é o cientista político e professor francês Yves Sintomer, que pesquisa o tema e traça comparações com outros modelos de participação no sistema democrático. Ele inclusive avalia que globalmente estamos enfrentando, pelo menos desde o início do século XXI, uma crise da democracia, e aponta como uma das rotas para a saída dessa situação a ampliação de espaços na política institucional para que cidadãos possam participar mais da tomada de decisões.
Sintomer esteve em Porto Alegre no início deste mês para participar de atividades acadêmicas, entre elas uma conferência para apresentar a ideia do "sorteio de cidadãos", realizada pelo Observatório das Metrópoles em parceria com os Programas de Pós-Graduação em Sociologia, Ciência Política e Políticas Públicas da Ufrgs. Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, ele explica o conceito da conferência e compartilha suas impressões sobre a democracia liberal.
Jornal do Comércio - O senhor aponta que a democracia está em crise. O que caracteriza essa crise e desde quando?
Yves Sintomer - De duas décadas pra cá a crise fica mais clara. Sintomas, temos vários, e depende do país. Um aparece nas pesquisas e nas eleições, uma distância crescente da cidadania com os dirigentes políticos e a classe política, que é bastante forte nos EUA, na França e na Europa, mas também nas novas democracias. Essa é a questão central. Mas também tem o poder crescente da extrema-direita com uma visão xenófoba e autoritária da democracia no sistema político, o que o primeiro-ministro da Hungria (Viktor Orbán) chama de democracia iliberal. Houve também um fracasso das transições democráticas em muitos países. Podemos pensar no mundo árabe, em alguns países da África, além da China, que não evoluíram na direção de uma democracia no modelo norte-americano e sim num sistema muito diferente, mas exitoso para o país. Então, quando se pinta este quadro, nota-se que a situação não é boa. E quando pensamos nos fatores que produzem esta crise, pode-se pensar que é uma questão estrutural e não somente um momento difícil em que depois tudo voltará para a normalidade.
JC - Quais as possíveis saídas para essa crise da democracia?
Sintomer - Bem, existe uma saída autoritária, que é crescente no momento e tem sido vista em vários países, incluindo o Brasil. Outra saída é a que um colega inglês, Colin Crouch (sociólogo e cientista político), chama de pós-democrática. É dizer que o jogo eleitoral se move como um teatro: aparentemente, nada muda, mas as decisões maiores acabam acontecendo nos bastidores; porém, não se consegue ir muito adiante, porque a população percebe a perspectiva autoritária. Penso que, para as forças progressistas, falamos de três possibilidades. Uma é o populismo progressista, no qual a capacidade de figuras carismáticas ou de partidos fortes podem dar para as pessoas normais, das classes populares, uma esperança, uma direção, um sonho, mas sem ir contra a racionalidade das políticas públicas, como vemos na Venezuela, por exemplo.
JC - Quais as outras?
Sintomer - Outra possibilidade é a democratização da democracia através do modelo de democracia participativa, como foi, parcialmente pelo menos, o caso do Orçamento Participativo (OP) de Porto Alegre. O OP se desenvolve bastante na Europa no momento, mas de forma mais "domesticada". O que ocorre, basicamente, é deixar a população decidir e opinar sobre temas que são importantes para a sua vida cotidiana, mas sem poder intervir nas relações de forças mais estruturais. Além disso, no momento na Europa se discute bastante o modelo de democracia deliberativa, que se apoia naquilo que os norte-americanos chamam de mini-públicos ou assembleias cidadãs, selecionadas por sorteio, feitas para os cidadãos proporem e discutirem, e às vezes decidirem, sobre assuntos públicos.
JC - Como funciona o modelo de sorteio dessas assembleias cidadãs? Como se define quem vai participar e que tipo de decisões são tomadas nessas assembleias?
Sintomer - A ideia é criar um espaço onde haverá cidadãos de cada parte da sociedade numa amostra representativa, de forma semelhante à que ocorre em pesquisas eleitorais, com a diferença de que eles não dão somente uma resposta e sim discutem juntos o assunto por bastante tempo. Para alcançar um modelo quase ideal, quando o tema for muito técnico, pode haver uma formação para os cidadãos numa audiência pública de experts, com a perspectiva de várias áreas e tendências (políticas) para o pluralismo da informação. A audiência pública contará também com stakeholders, associações, membros da sociedade e partidos políticos. Os grupos propõem soluções distintas ao tema que se discute. Depois há uma alternância entre discussão com pessoas de fora, que chegam com suas propostas, discussões gerais com todos os membros da assembleia cidadã e, também, discussões em pequenos grupos, para favorecer uma participação igual de todas as pessoas. Dito isso, não é somente um sorteio (de quem irá participar), mas um misto de sorteio e de cotas, para permitir uma boa representação estatística da população, além de atrair pessoas que não estão muito engajadas na política. Também é possível pensar numa remuneração, algo equivalente ao pagamento por um dia de trabalho proporcional ao tempo da participação. E, além disso, há pessoas que são formadas para facilitar a discussão e organizar para que seja de forma igualitária entre os membros da assembleia cidadã.
JC - Em que lugar da política institucionalizada se situam as assembleias cidadãs? Elas não surgem para substituir o Legislativo, mas como complemento, certo?
Sintomer - Sim, é um complemento. Existem pessoas muito radicais que defendem que deveria ser a nova representação política, mas são poucos. Podemos mencionar o exemplo da Irlanda, na qual o governo e o parlamento têm dado à assembleia cidadã a possibilidade de discutir e propor reformas constitucionais ou legislativas. Duas delas foram muito importantes: sobre o aborto (em 2018) e sobre o casamento homoafetivo (em 2015).
JC - Como foi a participação da assembleia cidadã nestes casos?
Sintomer - Foi feita uma proposta de emenda constitucional e transmitida ao Legislativo, que por sua vez repassou ao povo através de um referendo e foi aprovado.
JC - Onde mais este modelo é praticado?
Sintomer - Podemos mencionar Paris como outro exemplo, onde há uma assembleia cidadã permanente que pode decidir os temas do orçamento participativo. A ideia não era ter um OP em cada área temática, mas eleger a cada ano ou dois, duas ou três temáticas. Então, a assembleia definida por sorteio é que decide quais serão os temas atendidos pelo orçamento participativo. Além destes casos, há também a possibilidade de fazer intervenções no Legislativo de uma cidade ou região nas políticas públicas.
JC - Aqui em Porto Alegre, o Legislativo municipal não se entendeu muito bem com o OP quando ele surgiu. Houve receio de que pudesse substituir o papel dos parlamentares, o que nunca aconteceu. Também não é a ideia das assembleias cidadãs, certo?
Sintomer - Não é a ideia proposta. Mas tem sim um temor forte nos Legislativos Europeus de que poderia substituir o Legislativo eleito. Mas a política não é um jogo de soma zero. A política na Europa enfrenta um momento de descredibilidade. Portanto, introduzir um novo espaço seria um modo de dar mais credibilidade à política em seu conjunto, e o Legislativo também poderia se aproveitar desta renovação para conseguir mais legitimidade.
JC - Como uma experiência participativa como a assembleia cidadã pode fazer isso?
Sintomer - Quando digo legitimar, é no sentido de que as pessoas podem acreditar que os políticos decidem pelo bem comum e pela cidadania, não por eles (políticos) como pessoas ou como partidos. Quando se fazem pesquisas, na Europa, a resposta das pessoas é que os políticos se preocupam com sua própria carreira e não com os interesses das pessoas. A ideia é de que, se as pessoas pudessem ser representadas por assembleias cidadãs que se parecem com o povo e, pelo menos em alguns assuntos importantes, o Legislativo e o Executivo seguirem as proposições da assembleia, poderia dar credibilidade de novo.
JC - Na palestra o senhor comentou que o atual modelo de democracia liberal não atende a todos, e fez uma analogia com um condomínio, em que alguns estão dentro e outros estão fora. A democracia liberal não está atendendo toda a sociedade?
Sintomer - A política liberal, no século XIX na Europa e nos Estados Unidos, era somente para homens brancos e ricos. Depois foi estendida, no século XX, com o sufrágio universal para todos e todas, com o Estado de bem-estar social e, com os partidos políticos de massa, tem sido capaz de incluir no sistema político a grande maioria dos cidadãos e das cidadãs. Mas isso pressupondo que os Estados nacionais do "centro do mundo" (Europa e EUA) podiam desfrutar das matérias primas, do petróleo de todo o mundo, e podiam produzir CO2, que agora tem feito mais difícil a vida no planeta. Então (a democracia liberal) era um "grande condomínio" para quem era cidadão desses países, mas com uma dominação formal ou informal do resto do mundo.
JC - O senhor falou sobre a questão ambiental e como a democracia liberal, da maneira como se desenvolveu no século XX, não considerava como central a questão ambiental. O quanto ela precisa ser considerada nessa busca por um novo modelo de democracia?
Sintomer - Penso que agora é muito claro que a questão ambiental será uma das questões fundamentais do século XXI. Podemos ver a importância nos problemas que se multiplicam, nos desastres que crescem e que provavelmente vão se multiplicar. E o ritmo das eleições é de curto prazo, quatro ou cinco anos. Então o jogo eleitoral acaba pressionando os políticos para pensar para a curto prazo. Não digo que todos os políticos pensem somente dessa forma, mas a pressão para isso é muito forte. Por outro lado, e acredito que por isso, há um desenvolvimento das experiências com assembleias cidadãs com a ideia de que é muito mais fácil pedir para as pessoas pensarem a longo prazo em uma assembleia cidadã selecionada por sorteio, porque as pessoas não estarão ali para defender o próprio interesse a curto prazo (pensando na próxima eleição). Então se pode pensar mais adiante e talvez representar de outro modo as gerações futuras e os seres que não são humanos. Seria provavelmente um dos modos de fazer frente ao desafio ecológico.
JC - Por mais que existam alertas, até mesmo do Fórum Econômico Mundial, para o risco econômico representado pelas crises climática e de biodiversidade, parece que boa parte do setor ainda não incorpora as mudanças necessárias nos seus processos. De alguma maneira essa mobilização social, por meio das assembleias cidadãs, pode fazer uma pressão nos setores político e econômico pela mudança que precisa acontecer?
Sintomer - Sim. Vou dar o exemplo da convenção cidadã sobre o clima da França…
JC - Ocorreu quando?
Sintomer - Dois anos atrás. Não foi perfeita, mas fez uma proposta global e outras 150 propostas que eram mais ambiciosas do que todas as que haviam sido feitas pelos governos e Legislativos antes, fossem de esquerda, de centro ou de direita. Lamentavelmente, o presidente Francês, Emmanuel Macron, que havia prometido implementar as propostas, não fez isso. Porém, dois anos depois ele precisou ir adiante, porque a crise ecológica é cada vez mais forte. Então, teve que retomar as propostas que havia ignorado até esse momento. Penso que, se considerarmos a mobilização da sociedade, de ecologistas que pedem mudanças mais radicais, especialmente entre os jovens, assim como os movimentos não políticos e sociais, talvez os problemas da economia possam ser enfrentados.
Perfil
Entrevista especial com Yves Sintomer, professor de Ciência Política e pesquisador no Centro de Sociologia e Política de Paris.
/fotos: ANA TERRA FIRMINO/JC
Yves Sintomer é francês, natural de Le Raincy, e vive em Paris. Professor de Ciência Política e co-diretor do mestrado em Ciência Política na Universidade Paris 8. É membro honorário sênior do Instituto Universitário Francês e membro associado do Nuffield College, Oxford. Estudou nas universidades de Besançon, Paris 5, Paris 8 e Paris Nanterre, Harvard, Goethe University Frankfurt, e tem PhD em Ciências Políticas e Sociais pelo Instituto Universitário Europeu (Florença, Itália). Seus escritos foram publicados em 20 idiomas e proferiu palestras em 31 países. Nos últimos cinco anos, organizou 10 conferências, workshops ou painéis, incluindo sete eventos internacionais. Entre seus livros estão "O poder ao povo. Júris cidadãos, sorteio e democracia participativa", Editora UFMG, Belo Horizonte, 2010; "Aprendendo com o Sul: O Orçamento Participativo no mundo - um convite à cooperação global" (com C. Herzberg e G. Allegretti) Bonn, 2012; e "Porto Alegre. A esperança de uma outra democracia" (Com M. Gret), Loyola, São Paulo, 2002.