Para o coordenador do Gabinete de Assessoramento Eleitoral (Gael) do Ministério Público (MP) do Rio Grande do Sul, Rodrigo Zilio, o pleito presidencial de 2014 foi uma marco no Brasil. A polarização criada pela disputa dos então candidatos Aécio Neves (PSDB) e Dilma Rousseff (PT), e depois intensificada pelo choque entre petismo e bolsonarismo nas corridas de 2018 e 2022, é algo com pouca margem de arrefecimento e que o brasileiro deve passar a se acostumar, segundo avalia o promotor.
De acordo com Zilio, a realidade política eleitoral posta hoje é de eleições polarizadas, com presença massiva de desinformação e de ataques ao próprio sistema eleitoral. Enquanto organiza o pleito municipal para as 497 cidades gaúchas em 2024, admite que a Justiça não está preparada para lidar com níveis mais profundos de desinformação, como as deepfake e a inteligência artificial (IA).
Membro auxiliar da procuradoria-geral do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Zilio também acompanha de perto a minirreforma eleitoral que traz ajuste à legislação e corre com celeridade no Congresso Nacional, pois precisa necessariamente ser aprovada por Câmara e Senado até o início de outubro.
Jornal do Comércio - Como o MP se prepara para as eleições municipais de 2024?
Rodrigo Zilio - São duas questões que preocupam o MP eleitoral, basicamente: assédio eleitoral, que acaba ocorrendo muito nas eleições gerais, mas não é uma realidade a ser esquecida nas municipais. São as empresas se valendo dos vínculos hierárquicos para de alguma forma constranger, interferir, aliciar seus empregados. A segunda é uma coisa que a gente viu em 2020: em alguns municípios - não é generalizado - que é a interferência de milícias e do crime organizado em algumas candidaturas. Houve aporte de recursos financeiros e interferência de atividade criminosa.
JC - Que experiências tem obtido como membro auxiliar da procuradoria-geral do TSE?
Zilio - A minha função é fazer minutas de pareceres sobre os casos de todo o Brasil que chegam no TSE para o procurador-geral. Todos os casos que têm controvérsia, que têm alguma necessidade de manifestação do Ministério Público.
JC - Como foi estar em Brasília nas eleições de 2022, com esse nível acirrado de polarização?
Zilio - Foi uma experiência única, ímpar, que todos que trabalham nessa área deveriam ter. Foi uma eleição bastante diferente. Acompanho eleições desde 1996. Desde então foram seis eleições, mas nada parecido com a de 2022. A gente teve no centro da disputa presidencial duas personalidades políticas fortes, que evocam sentimentos, tanto de apreço como desapreço, ambos. Foi a primeira vez que a gente teve um candidato à reeleição contra um ex-presidente da República. Fizemos essa eleição num contexto de domínio de desinformação cada vez mais massiva, com disfuncionalidades das redes sociais. Houve uma grande dificuldade de conseguir se dar uma resposta jurídica nesse turbilhão, porque as pessoas não estavam muito abertas a receber opiniões jurídicas equidistantes e imparciais. Foi uma experiência intensa, mas riquíssima.
JC - Acredita que esse clima de polarização permaneça em 2024, mesmo sendo municipais?
Zilio - Costumo dizer que a eleição de 2014 foi um marco. Na eleição presidencial de Aécio (Neves, PSDB) com Dilma (Rousseff, PT) tivemos uma ruptura que nunca mais cicatrizou, só acelerou. Acho que o clima de polarização ele permanece numa eleição em 2024, mas em níveis muito menores. A polarização é algo que vamos ter que aprender a conviver. Não vejo como simplesmente desligar esse botão, sobretudo porque há esse modelo de democracia de eleição a cada dois anos, municipal e geral, há uma entrelaçamento entre elas. O partido que fizer mais prefeitos, que ganhar as grandes cidades, que ganhar São Paulo… de alguma forma tem um rearranjo de forças, que reflete necessariamente nas eleições gerais. A realidade da circunscrição municipal é muito diferente de uma nacional, vai dar uma arrefecida. Não vai ter níveis de beligerância tão grandes. Não obstante, vamos ter que conviver com ela.
JC - Se discute em Brasília uma minirreforma eleitoral para ajustar algumas regras para eleição no ano que vem. O senhor tem acompanhado esse debate?
Zilio - Sim. Foi criado um grupo de trabalho (GT) para fazer essa minirreforma. Sempre temos reformas antes de anos eleitorais. O ponto diferente é que esse ano demorou muito. O Congresso foi se dar conta que havia eleição e, portanto, necessidade de reforma muito em cima da hora. Esse GT foi criado para ser concluído em 15 dias. A ideia é fazer reformas não estruturais e ajustes pontuais, alguns aperfeiçoamentos. Sempre digo que infelizmente a reforma política nunca está no centro do debate. Se fala de reforma previdenciária, administrativa, tributária, mas a eleitoral sempre fica, de alguma forma, postergada. O pouco tempo me faz crer que dificilmente serão alteradas regras sensíveis.
JC - Que pontos considera que devam ter mais atenção?
Zilio - Algumas questões de propaganda pública eleitoral. Por exemplo, o tratamento da desinformação, que tem sido um grande problema desde 2018, merece uma atenção especial. Vamos dar alguma sugestão em nome do MP para um melhor tratamento normativo desse fenômeno que esgarça a democracia e prejudica a livre autodeterminação dos eleitores. Além disso, é ponto central antecipar o momento do registro das candidaturas. Temos um calendário de campanha muito apertado. Os partidos pedem registro para os candidatos em 15 de agosto e no primeiro domingo de outubro é a eleição. A necessidade é de antecipar o registro para maio ou junho para que tenhamos tempo de decisão definitiva sobre a condição daquele candidato.
JC - Acredita que a redução do tempo de campanha prejudicou o debate de propostas?
Zilio - Particularmente, sim. Antes de 2015, a campanha eleitoral tinha três meses. Perdemos 40 dias, metade de campanha. A redução do tempo de campanha teve como mote a redução de custos. Acho que 90 dias era um tempo razoável de campanha, porque quanto menor o tempo de campanha são menores as chances de haver uma espécie de rotatividade ou de mudança no poder político constituído. O que quero dizer com isso é que quanto menos campanha, mais o status quo atual fica preservado. Quem quer ingressar no mundo político fica com muito pouco tempo de exposição. O pouco tempo de campanha beneficia duas categorias: os atuais políticos e personalidades que querem entrar no mundo público, como influenciadores digitais, cantores, jogadores de futebol e apresentadores de televisão. E quando o legislador permite a propaganda eleitoral, vale dizer que só a partir de 16 de agosto nesse caso de 2024, tem uma série de restrições e limitações. Tem limitação de tipo de propaganda. É quase um fetichismo proibitivo no período de campanha. Em contrapartida com o período de pré-campanha de 1º de Janeiro até 15 de agosto - oito meses em que não tem controle de gastos e não tem forma proibida ou permitida. Não tem regra nenhuma e quase tudo é possível, menos pedir voto. Isso só beneficia aqueles que já estão no jogo.
JC - Acredita que a Justiça eleitoral está preparada para lidar com níveis de desinformação como deepfake e IA?
Zilio - A desinformação sempre ocorreu nas campanhas eleitorais, mas era analógica. Tinha efeito e difusão muito menos impactantes. O problema de hoje é que temos ferramentas nas redes sociais e no mundo digital que permitem essa difusão instantânea. O problema da desinformação se centra, justamente, nesse ambiente virtual, com disparos em massa, as pessoas se valerem do anonimato e da monetização. E qual é o desafio? Na verdade, são dois. O primeiro é, na rapidez do jogo eleitoral, você definir o que é desinformação. Nem sempre é fácil. Estamos tratando de um valor muito relevante que é a liberdade de expressão, uma conquista histórica da humanidade. O segundo é controlar por meio jurídicos o fenômeno da internet, porque no momento que você vê a desinformação e derruba uma determinada postagem, já está proliferando em outras 10, quando não vindo do exterior, de um IP que não está submetido à lei brasileira.
JC - Hoje há tecnologia acessível à população em que é possível simular vozes, vídeos.
Zilio - Deepfake, que pode estragar qualquer candidatura. Acho que esse é um ponto central e a legislação não está preparada. O TSE, em outubro do ano passado, na véspera do segundo turno, criou uma resolução que é uma instrução normativa feita para combater a desinformação no processo eleitoral. A Resolução 23.714 traz alguns avanços para combater a desinformação, mas acho que temos que trazer para nível legislativo. Uma coisa é certa: sempre o mundo do Direito vai correr atrás da internet, porque a internet tem uma velocidade muito maior que o Direito.
JC - O pleito de 2024 será o terceiro sem possibilidade de coligações proporcionais. Como observa o funcionamento das eleições após essa regra?
Zilio - A vedação da coligação acabou sendo um avanço. As coligações jamais foram formadas por coerência ideológica, mas sim por pragmatismo político. Se fazia coligação quase com uma calculadora, a partir do que era preciso para ter mais quociente, candidatos eleitos e tempo no horário gratuito, não por uma perspectiva ideológica. De certo modo, as federações vêm para fazer uma compensação. Têm um caráter de mais perenidade, perdurar por quatro anos no mínimo. Enquanto a coligação era só para a campanha, a federação procura resgatar a possibilidade de alianças entre partidos diferentes sob uma perspectiva de afinidade ideológica mínima. Só que ela traz algumas dificuldades. Acho que o laboratório vai ser, justamente, 2024.
JC - Como funcionarão as coligações nos municípios, que têm suas particularidades?
Zilio - A coligação tem um requisito: só se faz em nível nacional. É muito tranquilo fazer uma federação em nível nacional, se você desprezar ou não ponderar que temos 5.568 municípios e cada um com uma realidade absolutamente diferente. Por isso a expressão laboratório para 2024, é se esse caráter nacional que foi exigido das federações de 2022 que vai conseguir ser observado na integralidade em 2024. Temos outras situações interessantíssimas: para os partidos participarem nas eleições em 2024, têm que ter diretórios municipais ou no mínimo comissões provisórias municipais vigentes. Vamos imaginar que a federação seja dos partidos A, B e C. Num determinado município do Brasil, o partido A não tem diretório. Essa federação pode concorrer naquele município ou não pode? Hoje não temos resposta para isso. Uma das ideias que pode-se fazer nessa minirreforma é que não seja afetada a federação participar daquele município, por força de um óbice que existe apenas num dos partidos que a compõem. Mas isso não está na lei. É algo que deve ser objeto de preocupação pelo congresso.
JC - O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) foi declarado inelegível após um parecer do MP eleitoral apontando abuso de poder. Essa decisão pode aumentar a cobrança para que o MP seja mais rígido em questões dessa natureza?
Zilio - O MP eleitoral sempre teve uma atitude proativa, vigilante, de fiscalização em relação aos abusos eleitorais. O ex-presidente foi reconhecido como inelegível em uma ação em que o TSE reputou que ele agiu com abuso de poder político e usou indevidamente os meios de comunicação social em promover aquele encontro com os embaixadores, tendo uma finalidade eleitoral para promover desinformação. Foi a resposta que o TSE achou adequada para aquele caso, mas esse julgamento em si não pode ser como balizador para dizer que o MP vai ser mais ou menos cobrado.
JC - Essa situação surgiu a partir da tentativa de descredibilizar o sistema eleitoral. Acredita que essa questão permanece?
Zilio - A condenação do ex-presidente foi por desinformação contra o processo eleitoral, assim como já tinha sido uma condenação do deputado (Fernando) Francischini do Paraná em 2018. A desinformação, hoje, é a grande chaga a grande preocupação da Justiça Eleitoral. Existe uma desinformação contra o processo eleitoral que questiona as urnas eletrônicas, que questiona a idoneidade da Justiça Eleitoral, que é absolutamente grave porque coloca em risco o próprio Estado Democrático de Direito. Existe uma outra desinformação, que é aquela entre os atores do processo eleitoral. Os candidatos se manifestam de forma absolutamente inverídica para atentar contra a honra dos seus adversários. Há um nível de gravidade maior evidentemente naquela contra o sistema eleitoral, porque pode comprometer a própria democracia.
Perfil
Rodrigo López Zilio, natural de Encantado, é graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs) e mestre em Direito pela Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP). Foi analista Judiciário do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do Rio Grande do Sul entre 1996 e 2002, quando passou a exercer o cargo de promotor de Justiça. É professor de Direito Eleitoral (FMP e Instituto Brasileiro de Ensino IDP/DF) e também autor de diversos livros de Direito Eleitoral (Direito Eleitoral, Decisão de Cassação de Mandato, Crimes Eleitorais, Inelegibilidade e Lei da Ficha Limpa), alguns escritos em coautoria. Atualmente, é coordenador do Gabinete de Assessoramento Eleitoral do Ministério Público (MP) do Rio Grande do Sul e, desde 2019, também atua como membro auxiliar da Procuradoria-Geral Eleitoral com atuação junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE).