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Entrevista Especial

- Publicada em 20 de Agosto de 2023 às 13:00

Biodiversidade é fator para conter crise climática, defende Rodrigo Perpétuo, secretário-executivo de rede de governos pela sustentabilidade

Secretário-executivo do Iclei América do Sul, Rodrigo Perpétuo avalia que o setor privado precisa entender a importância da biodiversidade para o desenvolvimento dos negócios

Secretário-executivo do Iclei América do Sul, Rodrigo Perpétuo avalia que o setor privado precisa entender a importância da biodiversidade para o desenvolvimento dos negócios


fotos: EVANDRO OLIVEIRA/JC
As cidades precisam preservar a sua biodiversidade como parte das medidas de adaptação ao impacto dos fenômenos climáticos extremos. Cuidar da natureza na cidade é também uma estratégia de mitigação dos impactos climáticos causados pela dinâmica urbana - a exemplo dos gases poluentes emitidos pelo setor de transportes e pelas indústrias.
As cidades precisam preservar a sua biodiversidade como parte das medidas de adaptação ao impacto dos fenômenos climáticos extremos. Cuidar da natureza na cidade é também uma estratégia de mitigação dos impactos climáticos causados pela dinâmica urbana - a exemplo dos gases poluentes emitidos pelo setor de transportes e pelas indústrias.
É isso que defende Rodrigo Perpétuo, secretário-executivo do Iclei América do Sul. O Iclei - Governos Locais pela Sustentabilidade é uma rede global que representa estados e municípios (no caso brasileiro) perante o Acordo do Clima (também conhecido como Acordo de Paris), e a Convenção da Diversidade Biológica.
De passagem em Porto Alegre para participar do 2º Encontro Regional Iclei Sul, Perpétuo falou, nesta entrevista ao Jornal do Comércio, sobre o Plano de Ação Climática que está sendo elaborado pela prefeitura da Capital e exemplifica, a partir dele, medidas a serem adotadas pelos municípios nesta área.
Ele também chama atenção da iniciativa privada para a preservação ambiental, citando alertas presentes nas cartas do Fórum Econômico Mundial em anos recentes, que citam as crises do clima e da biodiversidade como fatores de risco ao desenvolvimento dos setores financeiro e de investimentos. Isso, avalia Perpétuo, impacta "a atração de investimentos e dinâmica econômica local".
Jornal do Comércio - O Iclei está desenvolvendo, junto com a prefeitura de Porto Alegre, um Plano de Ação Climática. Do que se trata?
Rodrigo Perpétuo - O Plano de Ação Climática tem dois grandes componentes. Um é o de mitigação, que são as ações que a prefeitura vai empenhar para promover a redução das emissões de gases de efeito estufa diretamente causadas pelo poder público ou pelas dinâmicas da cidade. E tem a dimensão da adaptação às mudanças climáticas, que são as medidas que a prefeitura vai precisar empenhar, diretamente ou no âmbito da regulação das dinâmicas da cidade, para que a cidade tenha mais resiliência, ou seja, esteja mais preparada para os impactos dos eventos extremos que venha a sofrer e possa sempre se recompor de maneira mais rápida. Essas ações de adaptação têm sempre correlação com as dinâmicas de gestão da natureza urbana - a proteção de nascentes; a conectividade ecológica por meio de parques, inclusive parques lineares; a aplicação de soluções baseadas na natureza, como jardins de chuva, jardins filtrantes... Medidas que vão valorizar, de fato, a relação da cidade com os seus ativos ambientais.
JC - E a partir do momento em que se tem o plano, o que o poder público precisa fazer? Como é que se traduz isso para a prática?
Perpétuo - Vou dar exemplos de alguns setores no campo da mitigação e de algumas medidas no campo da adaptação. O inventário de gases de efeito estufa de Porto Alegre apontou o setor de mobilidade de transportes em primeiro lugar em emissões. Então a prefeitura vai ter que revisitar a sua política de mobilidade, introduzir critérios de redução de emissões para o concessionário e estimular outros modais de transporte integrados ao principal, que é predominante, no caso de Porto Alegre, por meio de ônibus. Por exemplo, estimular a mobilidade ativa - melhorar calçadas e deixar a cidade mais adequada para aquela população que pode dispor da caminhada, e ter ciclofaixas ou ciclovias que estejam conectadas com o transporte público, com bicicletários seguros para que o cidadão utilize a bicicleta como um modo de transporte de maneira significativa. Também olhar para a frota de ônibus e introduzir outros tipos de combustíveis, seja o biodiesel, seja a eletromobilidade, de forma que o transporte por ônibus não contribua tanto (na emissão de poluentes) e seja carbono neutro. O ideal é que em 2050 se consiga neutralizar essas emissões. São exemplos do setor de mobilidade e de redução de emissões.
JC - Isso é a mitigação, certo? E de adaptação?
Perpétuo - Se vamos para o campo da adaptação, vamos hierarquizar todas as áreas da cidade onde a população está exposta a um risco que venha a derivar de um evento extremo da natureza. O evento extremo da natureza, per si, faz parte da natureza. Ele está se tornando mais frequente e mais intenso pela ação humana, mas, se acontece numa zona não habitada, não oferece risco algum (aos seres humanos). A vulnerabilidade de uma cidade decorre da presença da população em lugares onde o risco está ocorrendo. No caso de Porto Alegre, os riscos mais graves são alagamentos, inundações e as ondas de calor. E aí têm medidas que a prefeitura vai precisar hierarquizar, como a retirada da população de área de risco - as encostas ou perto de algum curso de água. Isso demanda obras de reassentamento e habitação social, obras de drenagem e macrodrenagem, que vão requerer investimentos de médio e de longo prazo para que a cidade esteja, aí sim, adaptada para conviver com esta nova realidade dos eventos extremos com maior frequência e mais intensos.
JC - Isso demanda investimentos, mas os municípios detêm a menor parte dos recursos públicos, na divisão com estados e com a União. O que pode ser feito pelos governos locais municipais com os recursos que se tem?
Perpétuo - A prefeitura é, ou deveria ser, a protagonista do seu próprio modelo de desenvolvimento local. Se ela tem uma visão muito clara do que precisa fazer e de como vai fazer, ela consegue articular com outros níveis de governo os recursos para poder implementar estas obras. Estamos vendo o governo federal se movimentando, hoje existe um Ministério de Meio Ambiente renomeado de Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Recursos para este tipo de intervenção vão derivar do sistema internacional cada vez mais. O Rio Grande do Sul tem um exemplo: o Banco Mundial tem uma linha de financiamento com o BRDE destinada para os municípios que têm critérios de resiliência. Isso vai ser cada vez mais comum e eu creio que em pouco tempo, cerca de 5 anos, talvez até 2030, será obrigatório este tipo de critério para desembolso (por parte dos financiadores). O município que entender isso - conseguir se organizar, hierarquizar as obras que precisa fazer, ter os projetos básicos e executivos das obras - vai acessar estes recursos de maneira mais eficaz. O que acontece é que muitas vezes o município protela o investimento nos projetos básicos e no refinamento do projeto executivo, e aí tem realmente mais dificuldade de conseguir acesso aos recursos. Eu recomendaria às prefeituras que invistam nisso. Se não têm recursos imediatamente, invistam no seu projeto, invistam na sua visão de futuro, façam os projetos de forma detalhada - projeto básico, e se possível o executivo. O sistema está organizado para financiar tanto obras que vão endereçar a questão da adaptação - e, portanto, salvar vidas e evitar danos à infraestrutura - como também a redução de emissão de gases do efeito estufa.
JC - Cidades de menor porte muitas vezes não têm nem corpo técnico para fazer isso. Existe alguma rede de apoio nesses casos?
Perpétuo - O instrumento do consórcio pode ser muito útil a estes municípios menores. E esta é uma tarefa dos governos estaduais: organizar, de fato, a possibilidade de oferecer capacitações, instrumentos técnicos e eventualmente até apoio financeiro para que estes municípios menores, que não têm autonomia e uma condição do seu próprio processo de maneira individualizada, possam encontrar caminhos para caminhar nesta boa estrada do desenvolvimento sustentável.
JC - O senhor comentou sobre atender diretamente questões de adaptação da estrutura da cidade aos fenômenos climáticos, mas há também questões indiretas. Em Porto Alegre, há crítica sobre podas indevidas e derrubadas de árvores, que ajudam no equilíbrio de temperatura e no sequestro de carbono, por exemplo. Parece que há um descompasso por parte do poder público: faz um plano de ação climática, mas ao mesmo tempo tem dificuldade para manter o que a cidade já tem.
Perpétuo - Temos uma variável nesta equação que muitas vezes é negligenciada, que é a biodiversidade urbana, a natureza urbana. Quando falamos em ação climática, se pegar, de cara, os orçamentos que as prefeituras têm para a gestão de parques, para a gestão de recursos hídricos, para a gestão da sua natureza, vamos ver que nem vai aparecer em gráficos orçamentários. Um dos componentes do trabalho que o Iclei traz quando apoia um município no seu processo de planejamento climático é sensibilizar o corpo diretivo e capacitar o corpo técnico para que o componente da biodiversidade ganhe protagonismo.
JC - Como isso é feito?
Perpétuo - Em primeiro lugar, as espécies arbóreas que deveriam estar no município são as nativas. Tivemos uma cultura, especialmente na segunda metade do século passado, de introdução de espécies estranhas, exóticas, que respondiam somente à questão paisagística daquele momento, e isso foi uma tragédia. Precisamos ter um projeto de reparação de um equívoco que é de longo prazo, com um trabalho pensado de planejamento da arborização da cidade. Só que, mais que isso, ele precisa estar conectado ao sistema de áreas verdes da cidade: parques, unidades de conservação, áreas de proteção ambiental já designados ou que precisam ser designados. Como estão os planos de manejo onde é requerido, como é a relação da sociedade com esses lugares, e como é que eles podem se conectar formando uma rede de conectividade ecológica na cidade, que contribui para controlar o microclima e contribui para conter, de fato, os eventos extremos quando eles acontecerem? Por outro lado, nesta mesma linha, você deve introduzir a variável alimento: Porto Alegre tem uma relação com o entorno, com o cinturão verde, tem produção agroecológica. Como é que a cidade se relaciona com estes produtores e como é que, priorizando a produção familiar e cooperada, a cidade ajuda também a proteger as áreas verdes que estão no entorno, compondo e agregando valor a estes ativos ambientais? Sistemas alimentares, sistemas de área verde e soluções baseadas na natureza, com uma gestão de arborização integrada, fazendo parte da variável climática no campo da adaptação, são geralmente negligenciadas. Nossa tarefa é cuidar para que isso não aconteça aqui em Porto Alegre.
JC - Isso porque tudo está conectado, não se pode pensar na questão climática sem considerar a preservação da biodiversidade…
Perpétuo - Exatamente. E isso afeta a dinâmica econômica da cidade, porque, em tese, essas medidas devem ir para o licenciamento ambiental, devem ir para o licenciamento da atividade produtiva, devem ir para as dinâmicas de construção e edificação de prédios habitacionais da cidade. E aí o setor privado precisa também entender a importância destas medidas. E eu diria, talvez até por antecipação, porque este é um movimento que demora a chegar na norma, começar a incorporar uma nova cultura e uma nova percepção de desenvolvimento para a cidade. Participar proativamente deste movimento.

JC - Ainda nos deparamos com situações de 'um contra o outro' na questão ambiental. O Iclei trata com governos, mas os governantes precisam tratar com a iniciativa privada. O senhor percebe esse tipo de argumento de que a preservação ambiental atravanca o progresso?
Perpétuo - Sim, infelizmente existe uma parcela importante do setor produtivo que ainda pensa que o progresso se faz em detrimento do meio ambiente. Eu vou recorrer só ao maior evento que leva os CEOs das principais empresas e de fundos de investimento ao mesmo lugar, que é Davos. Eu estou me referindo ao Fórum Econômico Mundial. Se vocês lerem as cartas que saíram dos últimos cinco fóruns, os maiores fatores apontados como de risco para o fluxo global de capitais e de investimentos estão relacionados com os eventos extremos da natureza - o aquecimento global ou a crise climática - e a perda da biodiversidade. E isso pode ser verdade para uma cidade, como Porto Alegre, pela atração de investimentos e a dinâmica econômica local. Então, se os grandes CEOs estão consensuando que dois fatores de risco (à economia global) estão associados a esses dois elementos, no nível local precisamos estar atentos a este aspecto, transportar isto para as decisões estratégicas das empresas. Os ESGs precisam estar incorporados, de verdade, à estratégia das empresas de qualquer porte e precisam chegar ao nível da tomada de decisão. Às vezes você pode suprimir uma árvore para ter um progresso, mas é uma decisão tomada num contexto de um território, numa visão mais ampla. E a prefeitura precisa, de fato, incorporar nos seus critérios restrições um pouco mais rígidas para a emissão de gases do efeito estufa e também para a gestão da biodiversidade local.

Perfil

Rodrigo Perpétuo é secretário-executivo do Iclei América do Sul desde 2016. É doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo (Procam/IEE-USP), economista graduado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e mestre em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). Possui especialização em Gestão de Negócios pela Fundação Dom Cabral e em Cooperação Descentralizada pela Universidade Aberta da Catalunha (Espanha). Em sua trajetória profissional junto ao setor público, foi chefe da Assessoria de Relações Internacionais do governo do estado de Minas Gerais, entre 2015 e 2016, e secretário municipal de Relações Internacionais da prefeitura de Belo Horizonte entre 2005 e 2015. Atuou como professor em instituições como Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec), Fundação João Pinheiro e Centro Universitário de Belo Horizonte (UniBH).