O Tribunal de Contas do Estado (TCE) retirou o sigilo dos documentos do processo de privatização da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) para deputados que integram a Comissão de Economia. Junto aos demais parlamentares, o proponente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Corsan, Jeferson Fernandes (PT), relata que se sente pressionado a prevaricar, após documentos serem enviados com aviso de possíveis sanções em relação ao vazamento de informações.
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Na hipótese de serem encontradas irregularidades na venda da companhia, a CPI deve ser o caminho que o Parlamento seguirá para investigar o contrato que está para ser assinado entre Estado e Aegea, vencedora do leilão de lance único.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, o petista também relata o que definiu como "crise" entre o TCE e a Assembleia Legislativa.
Jornal do Comércio - Como foi o processo para derrubar o sigilo e ter acesso aos documentos?
Jeferson Fernandes - Foi dentro da Comissão de Economia que começou esse questionamento sobre o sigilo para nós, deputados. Os deputados Miguel Rossetto (PT) e Gustavo Victorino (REP) foram importantes nesse questionamento, o que levou a comissão a enviar um pedido de informações por escrito. Isso passou pelo presidente da casa, que assinou e mandou para o presidente do Tribunal de Contas. E aí começou uma crise institucional. Não foi só a conselheira-substituta Ana Cristina Morais, que subscreveu a resposta negativa. O presidente do Tribunal de Contas enviou para o presidente da Assembleia a compreensão de que não poderia. Acabou resultando na convocação da conselheira que estava patrocinando esse posicionamento. Foi justamente depois dessa decisão que gerou a crise mesmo. O presidente do tribunal veio acompanhado de outros três conselheiros e disseram para nós: se vocês desistirem de convocar a conselheira, nós abriremos os dados. Concordamos. Agora, finalmente, estamos com acesso aos dados. Só que tem um porém. No despacho, tem um alerta que se nós usarmos, para qualquer fim, as informações que obtivemos, estamos sujeitos a ter uma um registro policial na Polícia Civil ou uma denúncia para o Ministério Público. Então, imagina se a gente vai diagnosticar algo e fica impossibilitado de usar aquela informação. Estaríamos, de certa forma, pressionados a prevaricar. Porque a gente vai ver o erro, mas tem que ficar quieto. E uma autoridade é proibida de ficar quieta se ela vir uma coisa errada. Estamos estudando como sair desse problema sério que o tribunal nos colocou.
JC - Qual era o principal argumento do TCE para manter o sigilo dos deputados?
Fernandes - Aí que está o detalhe. Fomos pesquisar isso no próprio processo, perante o que está aberto. Como era um negócio primeiro na Bolsa de Valores, com o IPO, e por último o leilão, tinha que preservar as informações porque isso poderia gerar problemas à livre concorrência. Regras de mercado. Até aí nós tivemos uma tolerância. Todavia, esse processo IPO foi suspenso por ser irregular. Até hoje não sabemos os motivos. Agora vamos saber. O leilão já saiu e já tem uma vencedora. Então não há mais motivo. Por que, depois de todo o processo de venda realizado, manter o sigilo?
JC - O TCE só permitiu acesso aos documentos depois que a conselheira foi convocada. O tribunal não queria que ela prestasse esclarecimentos?
Fernandes - O presidente do tribunal alegou que seria a primeira vez na história republicana do Brasil que um conselheiro de tribunal de contas seria convocado. Na visão deles, seria um constrangimento. A própria conselheira estaria muito desconfortável com a hipótese de vir aqui sem saber ao certo o que teria de responder. Então, para evitar qualquer judicialização, qualquer problema, foi o movimento que eles resolveram fazer.
JC - Essa crise entre TCE e Assembleia ocorre agora, por causa da situação da Corsan, ou é um afastamento que já ocorre há algum tempo?
Fernandes - Eu acho que os parlamentos, incluindo as câmaras de vereadores, se colocam timidamente na sua função de fiscalizar o Executivo. Somos eleitos pela população, mas não temos os instrumentos técnicos que os tribunais dispõem para checar se determinada informação procede ou não. Por isso a Constituição do Estado diz que o nosso ato de fiscalizar tem como apoio, como órgão auxiliar, o Tribunal de Contas. Não significa também que o TCE deva satisfação para a Assembleia. Mas, naquilo que nós formos buscar de informações, ele deve ajudar. Com a Lei de Acesso à Informação (LAI) melhorou, mas tempos atrás, era uma luta um vereador conseguir descobrir determinada informação do município, às vezes até tributária, que deveria ser pública, e não era. O vereador, na sua função de fiscalizar, pedia para o tribunal e muitas vezes também não tinha resposta. Essa relação tem que ser mais cristalina. Acho que essa relação passa a ser melhor a partir da crise que aconteceu.
JC - A crise foi causada por conta do processo da Corsan?
Fernandes - Já teve outros episódios, mas nenhum tão forte quanto esse. A privatização de uma empresa tão importante quanto a Corsan, se eu não me engano, está na mão do quarto relator já. A cada seis meses temos uma troca de conselheiro-substituto. Em segundo lugar, o sigilo. Outras privatizações que foram feitas não tinha sigilo. Na CEEE, por exemplo, era tudo aberto. Protestamos pelo preço mínimo, mas sabíamos os critérios. A gota d'água foi quando o parecer técnico, que também estava sob sigilo, vazou para a mídia. E o governo se utilizou do parecer técnico vazado para dizer que, no Tribunal de Contas, estava tudo ok. Nós nos insurgimos, dizendo que também queríamos acesso àquele documento, e foi negado, sendo que o documento já estava público. A PGE (Procuradoria-Geral do Estado) pegou esse documento e levou para o Tribunal de Justiça como prova que estava ok no Tribunal de Contas e derrubou uma liminar. Isso gerou uma crise na casa. Nós insistimos, aumentamos o tom. Convocamos a conselheira. Esse processo que gerou todo esse fato agora da convocação e abertura dos dados.
JC - O senhor está com os documentos em mãos?
Fernandes - Estamos. São mais de 3 mil páginas. Todos os deputados da Comissão de Economia estão tendo acesso, titulares e suplentes.
JC - O que consta nesses documentos?
Fernandes - O Tribunal de Contas é diferente da Justiça comum. Fazer uma tomada de contas sobre determinado procedimento de uma empresa é abrir um processo e investigar a fundo o que está acontecendo. Desde os contratos com os municípios, por exemplo. As prefeituras contratam a Corsan para prestar serviço de fornecimento de água e tratamento de esgoto. A maioria dura 20, 25 anos. No momento que o governo decidiu vender a Corsan, fez um aditivo aos contratos. Dos 307 municípios que têm contrato com a Corsan, apenas 108 assinaram. Esse é o ponto que gera até hoje uma insegurança jurídica, porque tem ação de vereadores na Justiça dizendo que não passou pelas câmaras. Ponto dois: há uma dúvida imensa sobre os critérios que o governo usou para medir a cobertura de esgoto do Estado, que acaba afetando o preço final da companhia. Tem uma informação que eu considerei absurda. O governo divulgou, na audiência pública, o percentual de 20% de cobertura de esgoto sanitário, mas para fins de cálculo para definir o preço da Corsan ele considerou 17%. Então, já há uma contradição pública. Mas há estudos que comprovam que é bem maior porque tem obras em andamento. Outro ponto são as informações privilegiadas para a Aegea.
JC - A empresa poderia ter sido beneficiada?
Fernandes - Ela fez um estudo em 2013 sobre 112 municípios cobertos pela Corsan. Um estudo minucioso sobre como é a rede de esgoto, quanto precisava para investir. A empresa já é parceira da Corsan. Ela tem PPP (Parceria Público-Privada) na Região Metropolitana. O leilão aconteceu, e só a Aegea tinha essas informações. Isso não é informação privilegiada? Por último, o valuation. Qual é o critério para definir que é R$ 4,1 bilhões? Eles não levaram em consideração o aumento do lucro da empresa nos últimos anos. O (governador Eduardo) Leite (PSDB) decretou que todo o dinheiro que a Corsan arrecada deve ficar no caixa da Corsan. Só que esse dinheiro está ficando no caixa para ser entregue para a compradora. E, na hora de definir o preço, não consideraram isso. Vai comprar por R$ 4,1 bilhões, mas pega um caixa com fluxo de R$ 2 bilhões.
JC - O valuation seria a principal questão para se analisar nos documentos?
Fernandes - Sim, é esse o ponto nevrálgico. Obviamente estou falando coisas que não são secretas. Porque a gente quer ver como trabalhar as informações que porventura sejam ilegais ou até criminosas.
JC - Com acesso dos deputados, qual a responsabilidade da comissão? Tem alguma prerrogativa, algum prazo?
Fernandes - Se eu não me engano, é de 10 a 15 dias que nós temos para fazer essa leitura. O processo está na fase final. Inclusive, o doutor (Geraldo) Da Camino (procurador-geral do Ministério Público de Contas) também tem poucos dias para fazer uma última manifestação. Aí volta para essa conselheira, que decide. A decisão dela não é de mérito. Ela decide se mantém ou não a liminar que evita a entrega da Corsan para a Aegea, a assinatura do contrato. Na prática, a conselheira relatora está segurando essa liminar, que foi gerada por um pedido do doutor Da Camino. Se essa liminar cai, só restaria mais uma liminar na Justiça do Trabalho. Mas a do Tribunal de Contas é fundamental.
JC - Como vai ser a análise de documentos na comissão? Vai ser produzido um relatório?
Fernandes - Não, porque nós não podemos publicizar nada. Não temos resposta ainda. O que estamos fazendo é: cada deputado está lendo. Diagnosticando se tem irregularidade, informalmente vamos ter que nos aconselhar com os colegas e localizar se tem acordo na mesma compreensão, tendo todo o cuidado para não vazar nada e ver qual é a medida que vamos tomar. Por enquanto, é tudo muito novo. Ao constatarmos que existe a irregularidade, que o processo mesmo assim está andando, não descartamos em hipótese alguma ter uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI).
JC - Acredita que ainda pode sair a CPI?
Fernandes - Sim. Por enquanto, temos 14 assinaturas (de 19 necessárias). Percebendo uma postura do Tribunal de Contas, de julgar o que não vem ao encontro do interesse público, se justificaria termos uma CPI. Porque a CPI tem poderes amplos. Não tem sigilo. CPI é para investigar. Foi muito forte nossa última reunião (na Comissão de Economia) no sentido de todos os colegas, de direita, de esquerda e de centro, de criticar o tribunal e, quem não assinou ainda ficou balançando sobre a hipótese de assinar a CPI.
JC - Acredita que esses outros partidos estão mais receptivos à CPI?
Fernandes - A tese do PL, por exemplo, é que estariam observando o posicionamento do Tribunal de Contas. Só que agora estão vendo que uma parcela do tribunal não agiu com total isonomia. Então há um desconforto, no mínimo, com tudo que está acontecendo. Conversamos em particular também com os colegas, e ficou explícito que admitem a possibilidade.
JC - A CPI pode sair mesmo com o contrato assinado?
Fernandes - Pode. Em qualquer momento.
JC - Nem todos os deputados têm acesso ao documento.
Fernandes - Sim, isso até gerou uma indignação entre os colegas. Se eu não fosse da comissão, eu ajuizaria uma ação para ter acesso também. É desconfortável. Somos proibidos de baixar, de salvar, de printar qualquer documento. O máximo que faço é ler e anotar à mão.
JC - Como o senhor vê a troca de comando da Corsan nesse momento?
Fernandes - Ouvi várias teses. Houve deputados dizendo que ele (Roberto Barbuti, diretor-presidente da Corsan) saiu porque teremos acesso aos dados e vamos ver que tem irregularidades, outros dizem que talvez ele queira ter uma quarentena. Falo isso com base na experiência da Equatorial. Os mesmos dirigentes políticos do Leite que estavam na CEEE pública, hoje estão na Equatorial. Para mim, é imoral.
Perfil
Nascido em Santo Ângelo em 1970, Jeferson Oliveira Fernandes é advogado, mestre em Direitos Humanos, casado e pai de quatro filhos. Militou em movimentos sociais, na Pastoral da Juventude e foi assessor parlamentar do então deputado Elvino Bohn Gass (PT). Eleito deputado estadual, presidiu a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos por duas vezes. Também presidiu a Comissão de Segurança e Serviços Públicos por duas gestões. Atualmente está no quarto mandato na Assembleia Legislativa. Em 2022, foi reeleito com 60 mil votos. Faz parte da Comissão de Economia, Desenvolvimento Sustentável e Turismo e obteve acesso aos documentos do processo de privatização da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan). É proponente e articula para instalar a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Corsan.