Brasil tem elementos que protegem a democracia, opina Hofmeister

Representante da Fundação Konrad Adenauer veio a Porto Alegre a convite da Ordem dos Advogados do Brasil

Por Lívia Araújo

Entrevista especial com Wilhelm Hofmeister, diretor da fundação Konrad Adenauer
Apesar das imperfeições da política brasileira, com excesso de partidos, candidatos que entendem pouco de políticas públicas e a existência do chamado orçamento secreto, a democracia no País "tem elementos bastante estáveis" que o protegem do perigo de rupturas. É no que crê o cientista político alemão Wilhelm Hofmeister, que representa a Fundação Konrad Adenauer, ligada à União Democrata-Cristã (CDU) da Alemanha, partido da ex-chanceler Angela Merkel.
Para Hofmeister, que esteve em Porto Alegre a convite da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), porém, os partidos devem investir em formação política de seus membros, e fazer uma mudança em métodos internos para atrair mais participantes e diversidade. Para ele, a crise dos partidos políticos reside no próprio reflexo da fragmentação da sociedade.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Hofmeister também fala sobre o cenário das democracias no mundo e na América Latina, e critica a proposta de reforma eleitoral no Brasil, que tenta importar, inclusive, o modelo alemão de votação distrital mista. "Você pode trazer partes de um carro da Alemanha e fabricar aqui o mesmo carro, que vai funcionar. Mas você não pode simplesmente copiar o regime político de outro país", pontua.
Jornal do Comércio - Qual o panorama político atual na América Latina, em sua visão, principalmente quanto à situação de nossas democracias?
Wilhelm Hofmeister - Infelizmente temos que constatar que em nível mundial, a democracia está numa situação bastante complicada. Em muitos países, toda essa esperança da chamada terceira onda da democracia, que ela seria o regime dominante no futuro, está frustrando bastante muitos países. E o número de países que podemos denominar como democracias diminuiu consideravelmente. Dados como o do Latinobarômetro indicam que se, até recentemente, muitas populações latino-americanas eram favoráveis à democracia, embora criticassem muito as performances de seus governos, os indicadores atuais mostram uma crítica ao próprio regime democrático, ainda que não haja outra alternativa.
JC - E isso acontece por quê?
Hofmeister - Pela falta de desenvolvimento econômico e social. As taxas de desemprego são muito altas, as perspectivas de desenvolvimento social estão muito frustrantes e não têm muita capacidade de satisfazer as necessidades das pessoas. Podemos ver que um país que até agora era considerada uma das democracias mais consolidadas da região, o Chile, tem essa confusão completa. Embora, economicamente, o país tenha se desenvolvido bem, há essa brecha tradicional da distribuição de recursos, do sistema previdenciário. A desigualdade é um dos grandes problemas da América Latina, é bastante elevada, em comparação ao resto do mundo. Os números mostram uma capacidade de gestão bastante limitada dos governos democráticos. E mesmo que as pessoas votem, a frustração os leva a votar na próxima eleição em outros partidos, partidos pequenos, novos, minoritários. E eles podem chegar ao poder, mas no final não resolvem nada. Aqui no Chile, o mesmo. O (presidente Gabriel) Boric, mesmo que tenha partidos tradicionais com ele, praticamente representa uma nova onda, mas já começa a frustrar a população.
JC - Mesmo nas democracias da América Latina há sistemas partidários diferentes entre si, com três partidos no Uruguai, mas no Brasil existe um pluripartidarismo excessivo. Todos esses modelos apresentam defeitos.
Hofmeister - A característica principal da sociedade moderna é a fragmentação, e os partidos também refletem essa fragmentação em todo o mundo, com todas as consequências para a governabilidade. Sempre insisto nesse tema, porque é importante que a democracia tenha um certo nível de governabilidade. Mas não quero dizer que as democracias latino-americanas têm o mesmo nível de problemas. O Brasil, com todas as suas características, é uma democracia que funciona, com certas debilidades. A Argentina, apesar de suas fragilidades, também tem uma democracia bastante estável, assim como o Uruguai. Mas o problema é a fragmentação da sociedade moderna. Já não temos esses perfis tradicionais que estabeleceram os partidos políticos. No Brasil, talvez nunca houve um perfil muito claro. É uma maior fluidez ideológica e social, e regional. Sempre houve grandes partidos fortes, mas nas eleições passadas, vimos que os grandes quatro ou cinco partidos que dominaram até agora o sistema partidário, enfraqueceram bastante. E acho que não vão se recuperar tão facilmente. Aqui no Brasil, o Parlamento tem uma relevância grande na gestão do governo, não somente no controle e na fiscalização, e na discussão das leis. O presidente (Jair) Bolsonaro (PL), mesmo tendo sido parlamentar por quase 30 anos, não entendeu muito bem como o sistema funciona.
JC - A que ponto?
Hofmeister - Não entendeu que precisa fazer alguma forma de entendimento e compreensão com o Parlamento para poder governar. O ministro Paulo Guedes não tinha ideia de como funcionava a política no Brasil, porque temos esse presidencialismo de coalizão que significa que o presidente não é tão forte para dominar todo o processo político. Depois de algum tempo de aprendizagem, ele procurou entendimento com o Centrão e enfim pôde governar, mas não pode fazer o que quiser, porque depende do Parlamento. Mesmo assim, ter 30 partidos no Parlamento é muito complicado chegar a acordos, e é caro, porque infelizmente alguns desses parlamentares exigem muito, tanto em pagamento direto como indireto, com obras em suas regiões etc.
JC - Há muito tempo se discute uma mudança partidária no Brasil, inclusive usando como exemplo o modelo da Alemanha, do voto distrital misto. Esse é um modelo reproduzível em países tão diferentes entre si?
Hofmeister - A engenharia política não funciona. Você pode trazer partes de um carro da Alemanha e fabricar aqui o mesmo carro, que vai funcionar. Mas você não pode simplesmente copiar o regime político de outro país. Para o Brasil ele não funciona, assim como não funcionaria transferir o sistema brasileiro para a Alemanha. Esse tipo de reforma sempre é muito demorada, porque tem que levar em consideração muitos interesses da sociedade, dos partidos, dos grupos sociais, regionais, dos estados federados. Quando se toma uma decisão muito rápida, pode ser um fracasso total como no caso do Chile. É melhor olhar um pouco pelo mundo e fazer um debate sério. Talvez aqui no Brasil não se tome o tempo suficiente para debater as questões essenciais da reforma, e debater essas questões um pouco distante dos interesses partidários. Porque no debate sobre a reforma, cada partido minúsculo vai pensar imediatamente que vai perder seus recursos eleitorais... e isso é realmente disfuncional para o debate.
JC - Um dos problemas no Parlamento é a questão da representatividade em relação às características reais da população brasileira. Há poucas mulheres, negros, exercendo cargos políticos representativos. Como garantir uma melhor representação em termos demográficos?
Hofmeister - O problema da representatividade existe em todo mundo. Um perfil interessante que há no Brasil são os evangélicos, que têm uma ligação bastante direta com alguns partidos políticos, e eles têm uma entrada porque representam interesses importantes desse grupo. Porém, muitos partidos não têm essa capacidade de representação, não chegam à sociedade esses vínculos tradicionais, eles são muito mais fracos e têm a ver com outros aspectos como as formas modernas de comunicação, novamente com a individualização da sociedade. O cidadão tem preferido se comunicar diretamente com um político por meio do Twitter ou Facebook, então as pessoas não pensam mais no partido como um intermediário. Isso afeta os partidos, que infelizmente não sabem responder adequadamente e fazer as reformas internas, adequações para responder isso.
JC - Existe um índice bastante alto de abstenção. Mesmo onde o voto é obrigatório como no Brasil, a abstenção, brancos e nulos chegam a quase 30%. O voto também está em crise?
Hofmeister - Eu diria que não em geral. Os indicadores internacionais não confirmam essa tendência da abstenção. Claro que sempre há eleições com uma abstenção maior, mas em termos gerais podemos ver que há uma participação bastante aceitável nas eleições. Isso indica que a população tem interesse em votar e participar das eleições. Mas os partidos não mantêm consigo um eleitorado final. O voto estável não existe mais, há uma maior volatilidade. Muita gente que vota pela primeira vez é mobilizado por partidos mais populistas, e os partidos tradicionais não sabem o que fazer para fidelizar os eleitores.
JC - Como fortalecer a democracia para além dos períodos eleitorais?
Hofmeister - Os partidos têm que fazer mais esforços para criar organizações estáveis, que não somente sejam dirigidas às eleições mas também às questões políticas propriamente ditas. Um partido não deve ser somente eleitoral, mas trabalhar melhor no seu programa. Ninguém sabe exatamente quais são os eixos programáticos dos partidos no Brasil. Que grandes linhas os partidos têm para os grandes problemas do País, não somente para construir mais casas ou trazer mais eletricidade, mas que projetos para a economia, para a Previdência, etc. E nisso, os partidos deviam trabalhar muito mais, isso lhes facilitaria mobilizar e trazer gente fora do período eleitoral. E aí, teriam que também educar seus próprios membros. Educação política é uma coisa muito importante. A própria preparação dos candidatos... quem está realmente preparado? Eles não sabem muitas vezes como funciona o sistema eleitoral e político, e menos ainda têm uma ideia sobre políticas públicas. E, finalmente, são eles quem tomam decisões sobre as políticas públicas. Os partidos devem se comprometer a atrair mais membros, mais mulheres, por exemplo.
JC - Há só 15% de mulheres no Parlamento no Brasil.
Hofmeister - Na Alemanha também ainda temos uma taxa bastante baixa, de cerca de 30%, mas não faz justiça à participação real das mulheres na vida da sociedade, nas empresas, economia. Hoje em dia é importante oferecer mais possibilidade de participação para as mulheres. Isso não significa somente dar mais cargos de lideranças dentro dos partidos, o que leva a mais candidaturas, mas também repensar algumas formas de participação interna, com reuniões virtuais, com novas metodologias para agregar mulheres e outras minorias dentro do contexto político. Um partido ativo seria atrativo para muita gente no Brasil. Se um ou dois partidos começassem a trabalhar realmente em algumas novas formas de gestão, formação, atrair mulheres, poderiam fazer uma diferença e despertar o interesse das pessoas.
JC - Para onde as nossas disposições democráticas caminham?
Hofmeister - Eu não sou pessimista demais. Posso observar que na Europa temos uma consciência bastante atenta em favor da democracia. Na América Latina, apesar de todos os problemas e debilidades existentes, creio que a democracia continua a ser o modelo predileto das pessoas, os latino-americanos, porque muita gente sabe que as liberdades individuais, a possibilidade de participação são características essenciais, e somente com a democracia isso pode ser alcançado. Mas também temos muitos problemas: a maior democracia do mundo em uma situação muito complicada, polarizada e fragmentada. Tivemos um presidente nos Estados Unidos que atacou o Parlamento, uma pessoa que talvez pudesse ser reeleita e isso significaria uma ameaça para a democracia norte-americana, mas acho que isso também despertaria muita reação na América Latina, Europa, e outras partes, em favor da democracia.
JC - E no Brasil?
Hofmeister - No Brasil estou tranquilo, porque o País tem elementos bastante estáveis que protegem a democracia. Há meios de comunicação independentes, o federalismo brasileiro é uma salvaguarda da democracia. Há um Judiciário independente, um Parlamento bem forte... o presidente não pode simplesmente chamar as Forças Armadas para ocupar o poder. A primeira resistência viria do Parlamento. O que poderia melhorar é a transparência das contas. Um presidente, um governo que tenha um orçamento secreto, milionário, que ninguém sabe onde se gasta, isso é um pouco contra o correto desenvolvimento democrático. Democracia para mim significa, em primeiro lugar, eleição, em segundo lugar, controle do governo. Os governos têm que ser controlados e limitados no tempo. A democracia oferece isso como nenhuma outra forma de governo, e por isso é a forma "menos pior", como disse Winston Churchill.
 

Perfil

Wilhelm Hofmeister tem 66 anos e nasceu em Worms, no Sudoeste da Alemanha. Conselheiro político sênior no campo da cooperação internacional da Fundação Konrad Adenauer, ligada à União Democrata-Cristã (CDU) - partido da ex-chanceler alemã Angela Merkel -, Hofmeister foi diretor do Centro de Estudos da entidade no Brasil e viveu muitos anos na América Latina e Ásia como diretor de consultorias partidárias e projetos de educação política. Também participou de programas de treinamento político na África, na Europa e no Oriente Médio. Hofmeister é doutor em Ciência Política e tem publicado extensivamente sobre o tema de partidos políticos e democracia. No Brasil, em 2021, publicou o livro "Os partidos políticos e a democracia: seu papel, desempenho e organização em uma perspectiva global".