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Entrevista especial

- Publicada em 26 de Junho de 2022 às 19:54

A cada 10 famílias, 6 vivem insegurança alimentar, afirma coordenador do Consea-RS

"Em 2018, o IBGE apontava a volta ao mapa da fome. Houve um desmonte de políticas públicas e a pandemia", afirma Juliano de Sá

"Em 2018, o IBGE apontava a volta ao mapa da fome. Houve um desmonte de políticas públicas e a pandemia", afirma Juliano de Sá


LUIZA PRADO/JC/fotos: Luiza Prado/JC
“A cada 10 famílias brasileiras, 6 estão passando dificuldades para comer em 2022”, afirma com preocupação o presidente do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) do Rio Grande do Sul, Juliano de Sá. Esse é um dos dados do II Inquérito da Insegurança Alimentar – pesquisa realizada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) – que trouxe à tona dados alarmantes: 33,1 milhões de brasileiros (cerca de 15% da população) não têm nada para comer.
“A cada 10 famílias brasileiras, 6 estão passando dificuldades para comer em 2022”, afirma com preocupação o presidente do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) do Rio Grande do Sul, Juliano de Sá. Esse é um dos dados do II Inquérito da Insegurança Alimentar – pesquisa realizada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) – que trouxe à tona dados alarmantes: 33,1 milhões de brasileiros (cerca de 15% da população) não têm nada para comer.
“Cerca de 10% da população brasileira já não almoça mais; 15% abre mão do café da manhã; e praticamente 20% dos brasileiros não jantam mais. Além disso, 15% da população brasileira não têm nada para comer”, detalha o presidente do Consea, ao citar a pesquisa.
Embora os números detalhados de cada estado ainda não tenham sido divulgados, as estatísticas por região dão uma noção do cenário no Rio Grande do Sul. Na Região Sul, quase metade da população está passando por algum grau de insegurança alimentar.
“Aproximadamente, 48,2% da população vive com algum grau de insegurança alimentar e nutricional (nos três estados da Região Sul). Desses, 26,5% não têm a garantia da próxima refeição; 11,8% estão abrindo mão de uma das refeições; e 9,9% não tem nada para comer – o que significa que, mais ou menos, 1,1 milhão de gaúchos e gaúchas não teriam nada para colocar na mesa”, citou Sá.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, o presidente do Consea-RS também explica os motivos que levaram ao alto índice de insegurança alimentar. Os principais, conforme Sá, são as alterações no Programa de Aquisição de Alimentos (rebatizado de Programa Alimenta Brasil) e no Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Ele comenta ainda o impacto da pandemia no aumento da fome.

Jornal do Comércio – No início de junho, saiu o resultado do II Inquérito da Insegurança Alimentar, que é possivelmente o maior estudo sobre a fome no Brasil. Os dados revelam que 33,1 milhões de brasileiros – 15% da população – não têm o que comer. Qual a importância desse estudo?

Juliano de Sá – Além dos 33,1 milhões de pessoas que estão passando fome, o estudo mostra 125 milhões que estão em algum grau de insegurança alimentar e nutricional. Isso significa que, a cada 10 famílias, 6 estão passando dificuldade para comer. Esse relatório é feito pela Rede Penssan. São professores e professoras renomadas do Brasil, de diversas organizações, com prestígio internacional, que têm trazido essa discussão desde 2020, quando iniciaram os estudos do I Inquérito da Insegurança Alimentar.

JC – O que significa “algum grau de insegurança alimentar”?
Sá – Existe mais de um grau. Por exemplo, uma parcela da população (de 125 milhões de brasileiros) não tem a garantia da próxima refeição. São pessoas que não sabem se conseguirão o próximo almoço, jantar ou café da manhã. Essas pessoas frequentam as cozinhas solidárias e os programas de assistência que estão distribuindo alimentos. Outra parcela significativa é composta pelas pessoas que vivem com um grau leve de insegurança alimentar nutricional, que se refere às pessoas que estão abrindo mão de alguma refeição do dia. Nesse caso, não se trata da incerteza sobre a próxima refeição, elas já sabem que não conseguirão o próximo almoço, jantar ou café da manhã, então elas já abriram mão. O inquérito detalha esse grau de insegurança alimentar: cerca de 10% da população brasileira já não almoça mais; 15% abre mão do café da manhã; e praticamente 20% dos brasileiros não jantam mais. Além disso, 15% da população brasileira – ou seja, 33,1 milhões de brasileiros e brasileiras – não têm nada para comer. Somando o percentual das pessoas que abrem mão de alguma refeição e as que não tem nenhuma, chegamos a 60% da população vivendo em insegurança alimentar.
JC – Qual o cenário no Estado?
Sá - Ainda não temos disponível o detalhamento territorial por estado, com os municípios pesquisados. Mas o recorte regional já nos dá um prognóstico do RS, porque não há grande disparidade entre os estados da Região Sul. Segundo a pesquisa, nossa região é a que menos sofre com a fome. Mesmo assim, os dados são assustadores. Por exemplo, 48,2% da população vive com algum grau de insegurança alimentar e nutricional. Desses cerca de 48%, 26,5% não têm a garantia da próxima refeição seguinte; 11,8% estão abrindo mão de uma das refeições; e 9,9% não têm nada para comer – o que significa que, mais ou menos, 1,1 milhão de gaúchos e gaúchas que não têm nada para colocar na mesa. No total, quase metade dos gaúchos está em situação de insegurança alimentar.

JC – Em 2014, a Organização das Nações Unidas (ONU) tirou o Brasil do mapa da fome mundial. Em 2021, quando saiu o relatório do I Inquérito da Insegurança Alimentar, o número de pessoas sem ter o que comer girava em torno de 19,1 milhões no país. Agora, são 33,1 milhões. O que explica a volta da fome?
Sá - Em 2014, o relatório da ONU para a Alimentação e Agricultura (FAO) anunciou que o Brasil tinha saído do mapa da fome. O próprio relatório indicava os principais fatores que permitiram essa saída: de um modo geral, foi uma política pública transversal, articulada e sistêmica, combinada com o controle social, através do Consea. De lá para cá, o que nos trouxe a esse retrocesso? O desmonte das políticas públicas foi central. Isso iniciou em 2016, quando ocorreu o golpe contra a ex-presidente Dilma Rousseff (PT, 2010-2016). E eu digo golpe, porque a própria Justiça reconheceu que ela foi tirada injustamente (o Tribunal Regional Federal da 2ª Região extinguiu por unanimidade a ação que pedia que Dilma ressarcisse os cofres públicos pelas pedaladas fiscais, por não haver comprovação de prejuízo ao erário). Ainda em 2016, foi aprovada (no Congresso Nacional) a PEC que congelou por 20 anos os gastos e os investimentos públicos. Depois dessa PEC, veio o desmonte das políticas públicas e o fim de ministérios estratégicos que ajudaram o Brasil a sair do mapa da fome. Em 2018, o IBGE já apontava que o Brasil estava rumando de volta para o mapa da fome: naquele ano, 10 milhões de pessoas não tinham o que comer. No início do governo Bolsonaro, houve a extinção do Consea, que causou a desarticulação das organizações, tanto da sociedade civil quanto governamentais, que faziam parte do nosso sistema nacional de segurança alimentar e nutricional. Então, tivemos um agravamento do desmonte de políticas públicas e uma pandemia.
JC – Quais as políticas públicas relacionadas à segurança alimentar que foram desmontadas?
Sá – Principalmente, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA, rebatizado pela gestão atual do governo federal de Programa Alimenta Brasil, PAB).
JC – Como funcionava o PAA?
Sá - O PAA iniciou ainda na primeira gestão do governo (Luiz Inácio) Lula (da Silva, PT, 2002-2010), com o objetivo de garantir a compra da produção de alimentos da agricultura familiar. Os agricultores e agricultoras recebiam o pagamento antes de plantar (alimentos), como uma forma de incentivo. Dentro do programa, tinha duas modalidades. Uma delas era de doações simultâneas. Ou seja, o agricultor familiar podia mandar os alimentos direto para a rede de assistência social ou creche comunitária mais próxima da sua propriedade. Então, era uma forma de garantir a produção (de alimentos), de fortalecer a agricultura familiar e de entregar comida a quem precisava. É importante lembrar que a agricultura familiar é responsável por 70% dos alimentos que chegam à mesa da população.
JC – E a outra modalidade do programa?
Sá – Era destinada à formação de estoque, operado pela Conab (Companhia Nacional de Abastecimento). A formação do estoque tinha o papel estratégico de ajudar a regular o preço dos alimentos.
JC - Era o que acontecia com o arroz, por exemplo? No período de safra, a Conab estocava grande quantidade; e, nos de baixa produtividade, a companhia colocava mais arroz no mercado, puxando o preço para baixo...
Sá – Exatamente, pressionava o preço para baixo. Inclusive, em 2014, a FAO reconheceu o PAA como um dos principais programas que ajudaram o Brasil a sair do mapa da fome.
JC – O que mudou nessa política pública ao longo do tempo?
Sá – Em 2013, o ex-juiz Sergio Moro (União Brasil) começou uma investigação em Curitiba sobre o PAA (dentro da Operação Agro-Fantasma, que não conseguiu provar os supostos desvios no PAA; até 2019, todos os acusados julgados haviam sido inocentados em primeira instância). Em 2014, por meio da intervenção da Justiça, começa a diminuição de investimentos públicos nesse programa. De 2016 para cá, o programa começou a perder investimentos de forma muito drástica. No ano passado, o presidente da República (Jair Bolsonaro, PL) extinguiu o PAA, substituindo-o pelo Programa Alimenta Brasil.
JC – O que mudou, na prática?
Sá – (O PAB) tem outro viés. Ele não pensa na estratégia da formação de estoque, nem na estratégia de integrar os programas sociais com a produção de alimentos da agricultura familiar. Ele simplesmente foca na assistência mais pontual e emergente. O PAB está mais voltado para o assistencialismo do que para as estratégias integradas. Transformou uma política pública em caridade, lamentavelmente.
JC – E o Pnae?
Sá – O Pnae existe há mais de 50 anos e, ao longo do tempo, foi fortalecido. Em 2009, ele sofreu uma alteração na sua legislação. Entre as mudanças, estava a autonomia para os nutricionistas elaborarem o cardápio nas escolas e a compra mínima de 30% de alimentos produzidos pela agricultura familiar. Essa medida fortaleceu a agricultura familiar. O II Inquérito da Insegurança Alimentar mostra que a má gestão do Pnae é um dos motivos que fez a fome aumentar no Brasil.
JC – Muitas crianças buscam as principais refeições na escola. Como ficou o Pnae na pandemia?
Sá - No primeiro ano da pandemia, quando as escolas gaúchas estavam fechadas, e as crianças e adolescentes tendo aula de modo remoto, o Consea-RS foi o primeiro conselho brasileiro a enviar um documento para o Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação (FNDE), solicitando a realocação dos recursos do Pnae durante a crise sanitária. Em vez de pratos de comida nas escolas, pedimos que o dinheiro do Pnae fosse aplicado em kits de alimentação para as famílias das crianças e dos adolescentes. Outros conselhos do Brasil também entraram nessa campanha, diversas organizações da sociedade civil... até que conseguimos que a Câmara aprovasse essa alteração. Então, rapidamente, pela urgência da pandemia, o FNDE autorizou que os estados e municípios utilizassem os recursos do Pnae dessa maneira.
JC – Os kits de alimentação são cestas básicas?
Sá - Sim, cestas básicas para as famílias usarem em casa, já que os alunos estavam tendo aula remota. E a compra das cestas básicas deveria garantir o mínimo de 30% de produtos produzidos pelos agricultores familiares. Dessa forma, a agricultura familiar também seria beneficiada, visto que ela estava perdendo mercado na pandemia.
JC – No RS, o governo recebeu críticas até de aliados por não ter dado o auxílio necessário aos pequenos agricultores. O Consea-RS acompanhou a aplicação dos recursos do Pnae aqui?
Sá - No primeiro ano da pandemia, recomendamos ao governador Eduardo Leite (PSDB, 2019-março de 2022) que fizesse a compra de cestas básicas, priorizando os 30% da agricultura familiar. Se pudesse, que ampliasse mais esse percentual. O governo não só não comprou, naquele período, nada da agricultura familiar, como também utilizou cerca de R$ 26 milhões do FNDE para uma compra única de uma grande rede atacadista. A compra foi feita sem licitação, porque a situação de emergência do Estado permitia isso. Mas boa parte dos alimentos era ultra-processada, com excesso de açúcar. Ou seja, não recomendado pelo guia alimentar para a população brasileira. Chegou-se a enviar para as aldeias indígenas salsicha em lata. Então, fizemos uma denúncia junto aos órgãos fiscais, ao FNDE, ao Tribunal de Contas e ao Ministério Público. A partir daí, o governo passou a mudar esse perfil e a comprar da agricultura familiar. Em 2021, (o Consea) tinha uma expectativa que o governo aumentaria a cota da agricultura familiar. Mas o conselho descobriu que R$ 26 milhões, recursos do governo federal destinados exclusivamente para o Pnae, não foram utilizados. O fato de esse recurso ter ficado um ano parado foi um dos fatores que agravou a situação de fome no Rio Grande do Sul.

Perfil

Juliano Ferreira de Sá nasceu em Ijuí em 20 de janeiro de 1979. Estudou na cidade natal. Em 1997, iniciou a militância na Pastoral da Juventude, grupo de jovens ligado à Igreja Católica. No mesmo ano, filiou-se ao PT. A partir da militância nos grupos da juventude católica, conheceu outras organizações ligadas à alimentação saudável e à segurança alimentar, como o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Terra (MST) e a Ação da Cidadania, entidade dedicada ao combate à fome, criado pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. No final dos anos 1990, mudou-se para Porto Alegre, em busca de oportunidades de emprego e estudo. Entre 2010 e 2013, graduou-se em Gestão Ambiental na Ufrgs. Em 2015, passou a trabalhar na assessoria do deputado estadual Edegar Pretto (PT). Entre 2017 e 2019, concluiu o mestrado em Desenvolvimento Rural na mesma universidade. Desde 2019, preside o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) do RS, tendo sido eleito presidente duas vezes. Faz parte do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos, que agrega membros de diversas instituições envolvidas com o tema.