Apesar do arquivamento do pedido de licenciamento ambiental da Mina Guaíba, a presidente da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), Marjorie Kauffmann (PSDB), afirma que a empresa responsável pelo empreendimento, a Copelmi, pode solicitar o desarquivamento do processo. Entretanto, adverte que, para isso, a empresa teria que refazer os estudos ambientais.
O empreendimento seria instalado entre os municípios de Charqueadas e Eldorado do Sul, a 16 quilômetros do centro de Porto Alegre. Ocuparia uma área de 4.373,37 hectares (equivalente a 4.373 campos de futebol), sendo classificada como a maior mina a céu aberto de carvão da América Latina. A Fepam arquivou o processo depois que o então governador Eduardo Leite (PSDB) anunciou intenção de encerrar as atividades das usinas a carvão no Rio Grande do Sul.
Para a presidente da Fepam, "a palavra é 'transição' e não 'cessar' imediatamente o uso (de carvão)". "Existe um movimento mundial com relação à desativação do carvão para uso energético. Participamos e assinamos acordos internacionais, inclusive na COP 26, realizada na Escócia. Mas todos os países trabalham com uma linha do tempo que vai até 2030, pelo menos."
Ela também avalia o novo Código Estadual do Meio Ambiente, que alterou mais de 480 normas da legislação ambiental em 2020. Quanto à Licença por Adesão e Compromisso (LAC) - um dos pontos mais polêmicos do novo código - ela revelou que, em mais de um mês, a Fepam recebeu apenas dois pedidos. Esse procedimento dispensa a vistoria prévia do empreendimento.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, ela explica a importância em introduzir a descrição do bioma Pampa no código ambiental, mesmo que as regras de proteção ainda dependam de regulamentação. Também projeta a realização neste ano de um concurso da Fepam.
Jornal do Comércio - Após a COP 26, na Escócia, o governador manifestou a intenção de encerrar as atividades das usinas a carvão no RS. Isso influenciou no arquivamento do pedido de licença da Mina Guaíba?
Marjorie Kauffmann - Existe um movimento mundial com relação à desativação do carvão para uso energético. Nós participamos e assinamos acordos internacionais, inclusive na COP. Mas todos os países trabalham com uma linha do tempo que vai até 2030, pelo menos. O mundo ainda vai precisar dessa energia por um tempo. Também precisamos desmistificar a questão da extração e do uso do carvão. De nada adianta não termos minas para extração de carvão no Rio Grande do Sul, se comprarmos carvão de outro estado para produzir energia. O carvão não polui na hora que é extraído, ele polui no momento da queima, quando os gases (poluentes) são liberados. Claro que temos projetos, intenções do governo de incentivar energias renováveis e cada vez mais limpas. Mas precisamos pensar de forma coerente sobre a transição energética. A palavra é "transição" e não cessar imediatamente o uso (de carvão).
JC - Por que o projeto da Mina Guaíba foi arquivado?
Marjorie - Fizemos um processo de licenciamento que teve várias etapas, dentro da licença prévia. Em uma delas, a Fepam solicitou alguns documentos. Depois da realização de audiência pública, houve a solicitação de novos documentos. O empreendedor não trouxe essa complementação. O descumprimento do prazo para complementações acarreta no arquivamento do processo. Foi exatamente o que ocorreu no caso da Mina Guaíba.
JC - O arquivamento significa a mesma coisa que uma negativa?
Marjorie - Não. Existem três possibilidades. O deferimento seria a concessão da licença ambiental. O indeferimento seria a negativa da licença, que ocorre quando, após ter todos os elementos para avaliar, identificamos que não há viabilidade ambiental. E o terceiro caso é o arquivamento, quando não temos elementos suficientes para se posicionar por um deferimento ou indeferimento. Nesse caso, o processo não segue.
JC - No futuro, a Copelmi pode pedir o desarquivamento desse processo e fazer o complemento das informações que ficaram pendentes?
Marjorie - Ela poderá pedir o desarquivamento e reintegrar os estudos. Embora o arquivamento permita esse desarquivamento e complementação, no momento que for feita a análise ambiental, os estudos precisam estar atualizados. Então, deverão ser refeitos os estudos ambientais, se for solicitado esse desarquivamento, o que é muito similar a um novo processo de licenciamento.
JC - Como avalia o novo Código Estadual do Meio Ambiente, aprovado em 2020?
Marjorie - O código que estava vigente no início da gestão (Eduardo Leite) datava do ano 2000. Ele trazia várias situações que já não eram praticadas pela fundação e que já não condiziam com a realidade. Por exemplo, exigia cinco cópias impressas de cada documento do processo de EIA/Rima. Estamos falando de documentos de mais de mil páginas. Na era digital, isso não cabe mais. O antigo código também não trazia a descrição do bioma Pampa, que é um bioma importantíssimo, exclusivo do Rio Grande do Sul. Da mesma forma, não tínhamos outras situações de licenciamento, propriamente ditas. Por exemplo, não tinha a possibilidade de uma operação de regularização, que é aquele empreendimento que ocorre sem licenciamento prévio, ter uma regularidade ambiental que se adequara a condicionantes. Nada disso estava previsto. O novo código conseguiu fazer com que a qualidade ambiental fosse mantida, tirando o que era burocracia, que não trazia nenhum resultado direto para preservação e proteção ambiental. A ideia principal (do novo código) também buscou facilitar para o empreendedor o seguimento das regras. Como o código anterior havia sido feito antes de alguns regramentos federais, tínhamos duas regras para um mesmo fato. Além de isso causar confusão para quem opera na parte ambiental, tanto para quem emite quanto para quem busca o licenciamento, causava insegurança jurídica. Então, a ideia foi limpar, passar a limpo.
JC - A Associação dos Servidores da Fepam (Asfepam) foi contra o novo código. Os funcionários argumentavam, entre outros pontos, que o novo código flexibilizava algumas normas de proteção ambiental, ao se equiparar com a legislação federal, que é mais permissiva. Como avalia essa crítica?
Marjorie - O texto novo também foi proposto por funcionários da Fepam, mas não intitulados pela Asfepam. Como em qualquer meio, tínhamos um grupo a favor e grupos contrários. Então, tivemos algumas manifestações da associação e dos funcionários, dizendo que não estavam de acordo com aquelas (mais de 480 alterações) defendidas por alguns membros. (Ao falar dessas manifestações contrárias) Parece que estamos tratando da casa inteira, mas não foi isso que ocorreu. Além disso, o código ficou em debate interno. Recebemos todas essas observações (de quem era contrário) e, inclusive, verificamos a legalidade e a possibilidade delas. Então, todos foram ouvidos e considerados, mas avaliamos que as colocações feitas de forma mediana não mereciam atenção naquele momento, porque, de fato, não representavam retrocessos ambientais.
JC - Uma novidade do novo código foi a Licença por Adesão e Compromisso. Como funciona? Quais empreendimentos se encaixam nessa modalidade de licenciamento?
Marjorie - A licença ambiental por compromisso também foi uma inovação nas possíveis formas de licenciamento da Fepam. Esse tipo de licenciamento já acontecia em outros estados (como Ceará e Paraná). Primeiro, tivemos a previsão dela no novo código. Depois, regulamentamos quais as atividades e quais as condicionantes dentro de uma resolução do Consema. A partir dessa resolução, fizemos os tramites burocráticos dentro da Fepam, para a questão de valor e tudo mais. (A nova modalidade de licenciamento) Foi disponibilizada no dia 25 de fevereiro deste ano, para uma lista de 49 atividades, como açude para irrigação e fornecimento de água; criação de aves e suínos de corte até o potencial poluidor médio; usinas de produção e concreto; armazenamento de pescado; torres anemométricas etc. Hoje a Fepam licencia mais de 500 atividades, então, menos de 10% podem ser licenciadas por LAC. De qualquer forma, é importante mencionar que não podem ser licenciadas nessa modalidade as atividades que tenham a previsão de supressão de vegetação, atividades que tenham um estudo profundo de EIA/Rima.
JC - Quantas licenças por compromisso foram solicitadas até agora? Quantas foram emitidas?
Marjorie - Em mais de um mês com esse tipo de licenciamento, tivemos dois pedidos de Licença Ambiental por Compromisso. Uma das solicitações foi deferida no dia 24 de março, para um empreendimento de draga. A outra, para a atividade de fabricação de calçados, foi rejeitada na fase de triagem. Identificamos que um documento não condizia com o que era pedido. Por esse motivo, o empreendedor foi orientado a trazer novas documentações ou a encaminhar o licenciamento ordinário. Hoje, quando é feito o protocolo digital, temos uma equipe que verifica se os documentos estão corretos. Por exemplo, se uma planta baixa é, de fato, uma planta baixa; se um laudo foi assinado pelo responsável técnico. Então, não há um recebimento indiscriminado dos documentos, eles são avaliados para verificar se realmente são válidos.
JC - Por que houve apenas dois pedidos até agora? Foi a pandemia?
Marjorie - Não, acredito que é pela proporção mesmo. Das mais de 500 atividades licenciáveis, apenas 49 atividades são por LAC. Então, não vai ser a maioria dos empreendimentos que vai passar por esse licenciamento. Além disso, existem muitas atividades (entre as 49 aptas à Licença por Adesão e Compromisso) que são licenciadas pelos municípios, até porque são atividades com menor impacto ambiental. Então, a Fepam também não vai ser o principal emissor de licenças ambientais por compromisso.
JC - Como a senhora mencionou antes, a descrição do bioma Pampa foi inserida no novo código. Isso se traduz em proteção efetiva para o bioma?
Marjorie - No atlas da preservação de remanescentes de biomas no país, o Pampa não era reconhecido, portanto não tinha nenhuma cota a ser preservada. Da mesma forma, não estando reconhecido, ele não estava apto a ganhar projetos de fomento à preservação. Por isso, reconhecê-lo dentro do Código Estadual do Meio Ambiente é um dos atos mais importantes que se pode fazer para instituir a preservação.
JC - Para a proteção sair do papel, precisa de regulamentação?
Marjorie - Agora trabalhamos para que possamos ter um decreto ou um regulamente para o uso desse bioma, garantindo a sua manutenção. Estamos trabalhando em mais métodos para a preservação dele. Já temos dentro da Secretaria (Estadual de Meio Ambiente e Infraestrutura) programas que incentivam a manutenção desse campo nativo, como o Campos do Sul, que é um programa de certificação desse tipo de vegetação e também da produção (sustentável) da carne nesse ambiente, com o objetivo de agregar valor.
JC - Tem previsão de quando sai a regulamentação com os mecanismos de proteção?
Marojorie - Não, não temos uma previsão exata.
JC - Essa regulamentação passa por um decreto do governador?
Marjorie - Antes do novo código, tínhamos um decreto do (ex-) governador (José Ivo) Sartori (MDB, 2015-2018), só que ele sofreu uma judicialização. Por isso, estamos aplicando apenas alguns artigos. Temos uma liminar que determina, por exemplo, a preservação de 20% do pampa. Não sabemos se o melhor caminho é um novo decreto ou, quem sabe, uma resolução do Consema.
JC - Há previsão de concurso para a Fepam?
Marjorie - Em novembro de 2022, tivemos a autorização da abertura de um concurso para a Fepam. Serão oferecidas 56 vagas no quadro permanente de funcionários. Entre eles, teremos analistas, agentes técnicos e administrativos.
JC- Deve sair nesse ano ainda?
Marjorie - Sim, já fizemos um edital (para a contratação da banca que vai realizar as provas) e selecionamos.
JC - O Regime de Recuperação Fiscal (RRF) não veda a contratação de novos servidores?
Marjorie - Esses servidores serão a reposição dos que se aposentaram, não são novas vagas para o quadro da Fepam (nesse caso, o RRF abre uma exceção).
Perfil
Marjorie Kauffmann nasceu no município de Lajeado em 20 de maio de 1982. Concluiu os ensinos Fundamental e Médio na sua cidade natal, no Colégio Madre Bárbara. Em 2005, graduou-se em Engenharia Florestal pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Em 2008, terminou o mestrado em Ambiente e Desenvolvimento na Universidade do Vale do Taquari (Univates). Concluiu o doutorado em Geociências em 2014 na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E o pós-doutorado foi concluído em 2016 na Univates. Desde que se graduou, trabalha com licenciamento ambiental. Sua primeira experiência na área foi como cargo de confiança na Fepam, durante o governo Yeda Crusius (PSDB, 2007-2010). Também trabalhou no licenciamento de projetos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado pelo governo federal em 2007, durante a gestão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT, 2003-2010). Em 2016, filiou-se ao PSDB. Em 2019, a pedido do governador Eduardo Leite (PSDB, 2019-2022), assumiu a presidência da Fepam.